O Globo
A chuva é o imprevisto mais rotineiro de
nossas vidas. Maviosa como um adorável chuvisco, pode virar furiosa tempestade
que não acaba, como a TV ou a luz, por meio do botão controlado por nossa
vontade. Teimosa e inesperada, obriga a usar o guarda-chuva e impede grandes e
pequenas coisas como ir à praia ou dar um passeio.
Nos bairros pobres, ela destrói e
rotineiramente leva nas suas enxurradas as posses de grupos familiares
inteiros. O que nos obriga a recitar a ladainha da ausência de políticas
públicas...
O “tempo”, mesmo com “previsão”, tem seu
imprevisível.
A Operação Lava-Jato foi morta, mas a
corrupção continua viva. O sistema legalizante foi feito para ela. Seria a
roubalheira um mecanismo ligado ao que chamamos de “política” no Brasil e
noutros lugares? Ou seria simplesmente um hábito ou costume de certos grupos e
classes sociais, um aproveitar-se de cargos — um “arranjar-se”, como no
atualíssimo livro de Manuel Antônio de Almeida...
Disse e repito: roubar o que é de todos (a “verba”, o dinheiro impessoal que é de todos) não é uma fraude, é uma pilhagem suscitada por uma oportunidade ou, quem sabe, um direito. Uma cota-parte: os fiscais têm direito a uma parcela do imposto pago pela população. A questão é o controle de um velho hábito aristocrático e republicanicamente legitimado?
Ficar velho é redescobrir que certos órgãos
tinham múltiplas funções...
Num filme antigo, um ditador
latino-americano ensina para o mocinho (naturalmente americano e democrata,
cuja ética médica obriga a operá-lo) a razão do seu autoritarismo: no seu país,
explica, quando uma pessoa vê uma placa ordenando “não cuspa na calçada”, não
há problema; aqui, porém, eles cospem na placa!
Como explicar que desobedecemos à lei sem
compreender que, no Brasil, a lei não é feita para todos, mas para alguns
grupos, categorias ou pessoas. Os negros e índios, os mestiços com cara de
bandidos...
Quantas vezes você ouviu que a regra não
havia sido feita para você? E quantas vezes verificou que a posição social
(dada por dinheiro, cargo político, relação familiar, aparência e cor da pele —
o tal “jeito”) não era coerente com a lei porque era incoerente com essa
posição?
A lei, do mesmo modo que o trabalho, lido
como castigo e pouco como vocação, foi feita “para negros”, como uma categoria
geral que podia abrigar quem duvidasse de certos padrões e expectativas.
Você se lembra do samba carnavalesco de 1946 “Trabalhar, eu não”, cuja letra explica: Eu trabalhei como um louco / Até fiz calo na mão / O meu patrão ficou rico / E eu pobre sem tostão / Foi por isso que agora / Eu mudei de opinião? Foi composto por Aníbal Alves de Almeida. Almeidinha — sem Hegel, Marx e Engels — decifrou e carnavalizou o segredo do capitalismo nacional.
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