quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Armando Castelar Pinheiro*: O PT e os Bourbon

Valor Econômico

Dúvida sobre o que Lula viria a fazer, se eleito, não tende a desaparecer tão cedo

 “Eles não aprenderam nada, e não esqueceram nada”. A frase, atribuída a Talleyrand, influente político da época, refere-se aos Bourbon, família que retornou ao poder na França, em 1814, com a queda de Napoleão. Para ele, as políticas do rei Luís XVIII (e seu irmão, depois Carlos X) ignoravam as mudanças ocorridas na França com a Revolução Francesa e, depois, com Napoleão.

Não é raro ver essa citação em referência ao Partido dos Trabalhadores (PT). Isso, talvez, por sua tendência a não reconhecer erros e, assim, a não mudar, insistindo sempre nas mesmas políticas. Em certo grau, um padrão presente no artigo de Guido Mantega publicado este mês no jornal Folha de São Paulo.

O artigo só vê méritos nas políticas dos governos do PT e atribui nossos problemas apenas àqueles que vieram depois. Porém, já ao parecer datar em 2014 o fim das administrações petistas, ignorando a brutal recessão de 2015-16, gerada no governo Dilma, a maior da nossa história, o artigo, por ausência, chama a atenção para os erros, que não foram poucos, da gestão petista.

As políticas defendidas para um novo mandato do PT são uma volta ao passado. Além da reversão do teto de gastos e da reforma trabalhista, propõe-se mais gastos públicos, mais política industrial e uma revisão dos objetivos de política monetária, para darem menos peso à inflação e mais à atividade econômica e ao impacto sobre as despesas com juros. Em suma, um retorno à Nova Matriz Econômica, ainda que esse termo não seja citado no texto.

Mantega foi, de longe, a principal autoridade econômica do governo do PT, chefiando o Ministério da Fazenda de 2006 a 2014. Mas, em artigo que saiu neste espaço faz uma semana, Nilson Teixeira argumenta que propostas como essas visam apenas a campanha eleitoral, servindo “para agradar as bases mais aguerridas”, e não são “uma sinalização (...) sobre a linha a ser adotada” em um eventual terceiro mandato de Lula.

Para Nilson, de fato, houve aprendizado: o “ex-presidente Lula conhece as vantagens de uma inflação baixa e da responsabilidade fiscal”. E, após “oito anos como presidente, Lula sabe que” as medidas defendidas pelos segmentos radicais do partido “são pouco eficazes ou insuficientes e não afastam a necessidade de reformas”.

Afinal de contas, se eleito, que Lula irá governar? Como pergunta Bolívar Lamounier, em artigo no jornal Estado de São Paulo deste domingo, 16 de janeiro, irá ele “assumir a postura do argentino Menem, tentando levar o PT para o neoliberalismo?”, ou “fincará pé no (...) intervencionismo populista, muito mais do agrado de suas hostes arraigadamente intervencionistas”?

Os Bourbon acabaram sendo expulsos outra vez da França em 1830, quando nova revolta depôs Carlos X, que pouco antes suspendera a liberdade de imprensa e dissolvera o parlamento. O argumento central de quem defende que, se eleito, Lula será um Dr. Jekill, e não um Mr. Hide, na imagem usada por Bolívar, é exatamente que é mais racional para o PT aprender com o passado e adotar boas políticas do que permitir que o mau desempenho da economia leve ao fracasso de seu governo. Argumento que, porém, não funcionou para os Bourbon, Dilma ou, parece, Jair Bolsonaro, por exemplo.

É, porém, um argumento forte, ainda que haja um risco considerável de que esse cenário não se realize. Em especial, é preciso reconhecer que o desafio que se colocará para o novo governo, quem quer que seja eleito, é bem maior do que o enfrentado por Lula em 2003-10. As reformas serão mais custosas e os resultados vão custar mais a aparecer. Isso pode mudar o racional político de que caminho seguir.

O PT herdou de FHC um governo com elevado superávit primário e uma dívida que era alta, mas por ser em grande parte indexada ao dólar e ter havido forte desvalorização cambial no período eleitoral. Com o novo governo abandonando o discurso heterodoxo e abraçando o tripé de política econômica de FHC, o real se valorizou e a dívida caiu. O cenário externo também ajudou muito. O dólar despencou internacionalmente - a taxa de câmbio efetiva real dos EUA caiu 21% em 2003-10. Isso elevou o preço em dólar das commodities, facilitando o ajuste de nossas contas externas, a valorização do real, o controle da inflação e a aceleração do crescimento. A forte expansão chinesa também ajudou bastante.

Hoje a dívida pública é bem mais alta e não vai cair só com a valorização do real. De fato, ela vai subir em 2022, com o setor público tendo déficit primário, a alta da Selic elevando as despesas públicas com juros e a economia crescendo pouco, ou nada. O cenário externo tende a piorar, com o crescimento global desacelerando, inclusive na China, e o Fed (e outros BCs) elevando os juros e reduzindo seu balanço, o que já pressiona o risco-país dos emergentes. Nesse cenário, dificilmente o dólar se desvalorizará e é mais provável que o preço das commodities caia do que suba.

A incerteza eleitoral só deve se dissipar mais para o meio do ano, quando se saberá se a atual polarização entre o atual e o ex-presidente se manterá. Com isso, a dúvida sobre o que Lula viria a fazer, se eleito, não tende a desaparecer tão cedo.

*Armando Castelar Pinheiro é professor da FGV Direito Rio e do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador-associado do FGV Ibre.

 

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