terça-feira, 8 de março de 2022

Carlos Andreazza: Contra o jogo

O Globo

Está no Senado o projeto que legaliza o jogo no Brasil — inclusive o do bicho, hoje inconfundível com a exploração de máquinas caça-níqueis. Um disparate, obra do tipo de ganância que desconhece a realidade do chão, o campo minado, em que se quer dar as cartas.

Pergunto: o businessman a fim de entrar na parada estará disposto a concorrer com os mafiosos?

Nem precisa rolar os dados. Costuma dar em sangue. Ou em sociedade. Conhecemos a história. Outro dia mesmo, o Supremo trancou processo em que um bicheiro respondia por homicídio. A ideia, então, é formalizar o jogo ora explorado por criminosos perfeitamente livres para explorá-lo criminosamente?

O problema é criminal. Produto de meio século da experiência que desaguou no escritório do crime miliciano. Penso num cassino na Zona Sul do Rio de Janeiro. O investidor pedirá licença a Bernardo Bello, dono do jogo na região, réu pelo assassinato de Alcebíades Garcia, fulminado — o filho do notório Miro — por tentar reaver território familiar perdido após a morte do irmão Maninho, também assassinado?

Recomendo aos senadores que leiam a reportagem de Rafael Soares, publicada no último domingo, neste GLOBO. Está tudo lá. O título nos lembra que o mundo real sempre se impõe: “Dinâmica do jogo do bicho é obstáculo para aplicação da lei”. Reproduzo dois trechos:

— No final de 2017, o policial militar reformado Anderson Cláudio da Silva recebeu uma ordem: juntar um grupo de comparsas, invadir a Vila Vintém, na Zona Oeste do Rio, e destruir as máquinas caça-níqueis instaladas nos bares da favela. O responsável pela determinação foi o bicheiro Fernando Iggnácio, genro e um dos herdeiros do espólio criminoso de Castor de Andrade, capo do jogo do bicho do Rio morto em 1997. (...) Com o quebra-quebra, Iggnácio queria mandar um recado para seu maior rival, Rogério Andrade, sobrinho de Castor e dono das máquinas destruídas: Vila Vintém era seu reduto, e ele não toleraria a provocação do desafeto. Seis meses depois, o policial que coordenou o ataque foi executado a tiros. Já em novembro de 2020, Iggnácio também foi assassinado numa emboscada.

Vou além do que propõe a manchete. A cultura do jogo do bicho não será apenas barreira à viabilidade da lei. A lógica operacional do bicho será mesmo a garantia de que a nova lei, se afinal estabelecida, teria como efeito ampliar a superfície de atuação para essa máfia.

O bicheiro não tem a perder. A natureza de sua atividade, que intimida — que intimidará — a execução da (nova) lei, é a mesma que lhe garantirá o domínio sobre o jogo uma vez formalizado, sem que a porção ilegal seja desmobilizada.

Não sei sob que lobby a Câmara aprovou o troço. Sei quem seriam, na prática, os beneficiários do advento: os mafiosos; os mesmos cuja territorialidade, à margem do Estado e, ao mesmo tempo, com o aval do Estado, transfere-se por testamento. O domínio territorial — a guerra entre facções armadas por assegurar o monopólio sobre verdadeiras capitanias hereditárias — é a própria afirmação de que uma empresa desprovida de ligações com os chefões do bicho jamais conseguirá explorar o negócio do jogo nas principais áreas turísticas brasileiras. Vacilam os que pensam ser problema somente do Rio.

Jogo, no Brasil, é atividade do crime organizado. Se crime organizado há, e se à vontade está, sendo o jogo por fora ou por dentro, do crime organizado ser-lhe-á o controle. Legalizar o jogo sem criminalizar os criminosos que o dirigem é lhes ampliar o poder econômico; o poder que os mantém soltinhos na pista.

Estude-se a modelagem do projeto apadrinhado por Arthur Lira. Talvez pudesse prosperar num Brasil que se fundasse agora. No país que temos, em que a exploração do jogo tem mapa próprio, as restrições propostas, ingênuas, não apenas não tocarão no universo paralelo, como oferecerão aos senhores do marginal a gestão — por meio de laranjas — do oficial.

Ou alguém acredita que empresário sério — investidor responsável — se meterá a concorrer com gente que manda matar parentes?

Não há ingênuos.

É fácil prever esse futuro: o jogo clandestino continuaria normalmente, mantida a territorialidade que dá proprietários a bairros e mesmo cidades, enquanto a faixa legalizada serviria a que os criminosos lavassem o dinheiro sujo. Há empresários não sérios.

Fala-se que haveria grupos internacionais interessados em desenvolver a coisa legalmente. Viriam para ser operadores independentes. Avento se conhecem a trajetória — e os métodos — dos que controlam o jogo aqui. No Brasil de verdade, abrir um cassino hoje só será factível, seguro, em parceria com os donos do pedaço, para esquentá-los. O resto é fantasia.

Recordo-me de quando a prefeitura do Rio abriu edital para que se licitasse a gestão do Sambódromo, de baita potencial lucrativo, o que a tiraria da liga das escolas de samba. Ninguém apareceu para disputar.

 

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