O Globo
Está no Senado o projeto que legaliza o
jogo no Brasil — inclusive o do bicho, hoje inconfundível com a exploração de
máquinas caça-níqueis. Um disparate, obra do tipo de ganância que desconhece a
realidade do chão, o campo minado, em que se quer dar as cartas.
Pergunto: o businessman a fim de entrar na
parada estará disposto a concorrer com os mafiosos?
Nem precisa rolar os dados. Costuma dar em sangue. Ou em sociedade. Conhecemos a história. Outro dia mesmo, o Supremo trancou processo em que um bicheiro respondia por homicídio. A ideia, então, é formalizar o jogo ora explorado por criminosos perfeitamente livres para explorá-lo criminosamente?
O problema é criminal. Produto de meio
século da experiência que desaguou no escritório do crime miliciano. Penso num
cassino na Zona Sul do Rio de Janeiro. O investidor pedirá licença a Bernardo
Bello, dono do jogo na região, réu pelo assassinato de Alcebíades Garcia,
fulminado — o filho do notório Miro — por tentar reaver território familiar
perdido após a morte do irmão Maninho, também assassinado?
Recomendo aos senadores que leiam a
reportagem de Rafael Soares, publicada no último domingo, neste GLOBO. Está
tudo lá. O título nos lembra que o mundo real sempre se impõe: “Dinâmica do
jogo do bicho é obstáculo para aplicação da lei”. Reproduzo dois trechos:
— No final de 2017, o policial militar
reformado Anderson Cláudio da Silva recebeu uma ordem: juntar um grupo de
comparsas, invadir a Vila Vintém, na Zona Oeste do Rio, e destruir as máquinas
caça-níqueis instaladas nos bares da favela. O responsável pela determinação
foi o bicheiro Fernando Iggnácio, genro e um dos herdeiros do espólio criminoso
de Castor de Andrade, capo do jogo do bicho do Rio morto em 1997. (...) Com o
quebra-quebra, Iggnácio queria mandar um recado para seu maior rival, Rogério
Andrade, sobrinho de Castor e dono das máquinas destruídas: Vila Vintém era seu
reduto, e ele não toleraria a provocação do desafeto. Seis meses depois, o
policial que coordenou o ataque foi executado a tiros. Já em novembro de 2020,
Iggnácio também foi assassinado numa emboscada.
Vou além do que propõe a manchete. A
cultura do jogo do bicho não será apenas barreira à viabilidade da lei. A
lógica operacional do bicho será mesmo a garantia de que a nova lei, se afinal
estabelecida, teria como efeito ampliar a superfície de atuação para essa
máfia.
O bicheiro não tem a perder. A natureza de
sua atividade, que intimida — que intimidará — a execução da (nova) lei, é a
mesma que lhe garantirá o domínio sobre o jogo uma vez formalizado, sem que a
porção ilegal seja desmobilizada.
Não sei sob que lobby a Câmara aprovou o
troço. Sei quem seriam, na prática, os beneficiários do advento: os mafiosos;
os mesmos cuja territorialidade, à margem do Estado e, ao mesmo tempo, com o
aval do Estado, transfere-se por testamento. O domínio territorial — a guerra
entre facções armadas por assegurar o monopólio sobre verdadeiras capitanias
hereditárias — é a própria afirmação de que uma empresa desprovida de ligações
com os chefões do bicho jamais conseguirá explorar o negócio do jogo nas
principais áreas turísticas brasileiras. Vacilam os que pensam ser problema
somente do Rio.
Jogo, no Brasil, é atividade do crime
organizado. Se crime organizado há, e se à vontade está, sendo o jogo por fora
ou por dentro, do crime organizado ser-lhe-á o controle. Legalizar o jogo sem
criminalizar os criminosos que o dirigem é lhes ampliar o poder econômico; o
poder que os mantém soltinhos na pista.
Estude-se a modelagem do projeto
apadrinhado por Arthur Lira. Talvez pudesse prosperar num Brasil que se
fundasse agora. No país que temos, em que a exploração do jogo tem mapa
próprio, as restrições propostas, ingênuas, não apenas não tocarão no universo
paralelo, como oferecerão aos senhores do marginal a gestão — por meio de
laranjas — do oficial.
Ou alguém acredita que empresário sério —
investidor responsável — se meterá a concorrer com gente que manda matar
parentes?
Não há ingênuos.
É fácil prever esse futuro: o jogo
clandestino continuaria normalmente, mantida a territorialidade que dá
proprietários a bairros e mesmo cidades, enquanto a faixa legalizada serviria a
que os criminosos lavassem o dinheiro sujo. Há empresários não sérios.
Fala-se que haveria grupos internacionais
interessados em desenvolver a coisa legalmente. Viriam para ser operadores
independentes. Avento se conhecem a trajetória — e os métodos — dos que
controlam o jogo aqui. No Brasil de verdade, abrir um cassino hoje só será
factível, seguro, em parceria com os donos do pedaço, para esquentá-los. O
resto é fantasia.
Recordo-me de quando a prefeitura do Rio
abriu edital para que se licitasse a gestão do Sambódromo, de baita potencial
lucrativo, o que a tiraria da liga das escolas de samba. Ninguém apareceu para
disputar.
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