Valor Econômico
O comércio entre Rússia e China se afasta
mais do uso do dólar em 2018, após o início da guerra comercial EUA-China
Entre as sanções anunciadas no dia 26 de
fevereiro para isolar a Rússia do sistema financeiro internacional,
concentraram as atenções a remoção de bancos russos selecionados do SWIFT e as
medidas restritivas para impedir o BC russo de usar suas reservas
internacionais.
Não é a primeira vez que o SWIFT é
utilizado como instrumento de poder geopolítico. Em 2006, o sistema foi alvo de
divergências envolvendo EUA e União Europeia, após a descoberta do chamado
“acordo swift”. Por meio de um software, os EUA acessam a base de dados
(informações confidenciais) sobre transferências bancárias, sem o conhecimento
de bancos e seus clientes, em um esforço secreto do “Terrorist Finance Tracking
Program”, criado pela política de “Guerra ao Terror” da administração Bush.
Ainda em 2006, o governo belga (o SWIFT é sediado em Bruxelas) declarou que o acordo violava as leis do país e da UE. Em 11 de fevereiro de 2010 o “acordo swift” foi rejeitado pelo Parlamento Europeu, com a perda de seus efeitos jurídicos na Europa para preservar os direitos dos cidadãos europeus.
Em 2014, após o governo dos EUA ameaçar
desconectar a Rússia do sistema SWIFT como sanção a anexação da Crimeia, o BC
russo se engaja no desenvolvimento de um sistema alternativo, o SPFS (System
for Transfer of Financial Messages). Antes do início do conflito com a Ucrânia,
a autoridade monetária russa buscava integrar a rede SPFS com o Sistema de
Pagamentos Interbancários Transfronteiriços (CBIBPS), com sede na China, e
mantinha negociações para expansão com Turquia, Irã e países da União Econômica
da Eurásia (EAEU), que inclui Armênia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão.
Segundo o site Rússia Briefing, no final de 2020, 23 bancos estrangeiros
estavam conectados ao SPFS, incluindo instituições da Alemanha e Suíça.
A baixa conectividade internacional e, até
agora, o “baixo incentivo” de Pequim aos bancos chineses para aderirem ao
sistema russo, deixam sua viabilidade pendente de questões sobre a rapidez com
que a Rússia é capaz de integrar o SPFS a outros sistemas, e se os Estados
Unidos e a União Europeia vão impor sanções aos países que se conectarem.
A iniciativa russa para reduzir a
influência norte-americana em sua economia é registrada nos movimentos de
desdolarização e aproximação da China. O comércio bilateral entre Rússia e
China se afasta ainda mais do uso do dólar em 2018, após o início da guerra
comercial entre EUA e China, com a imposição de pesadas tarifas sobre produtos
chineses.
Desde 2014 o comércio entre as economias
russa e chinesa expandiu mais de 50% e a China se tornou o maior destino das
exportações da Rússia. A Rússia é uma importante fonte de petróleo, gás, carvão
e commodities agrícolas para a China, e a China vende produtos mecânicos,
máquinas e equipamentos de transporte, telefones celulares, carros e produtos
de consumo para a Rússia.
Em 2013, 80% das exportações totais russas
foram denominadas em dólares americanos. Em 2020 essa participação caiu para
pouco mais da metade. Enquanto apenas 23% das exportações russas para a China
foram liquidadas em dólar em 2020, 60% das exportações chinesas para a Rússia
ainda eram denominadas em dólar. A redução do uso do dólar no comércio entre os
dois países se deu com aumento da participação do euro, moeda hoje dominante no
comércio bilateral entre Rússia e China. A coordenação do Ocidente na aplicação
das sanções, com adesão da União Europeia, comprometeu a esperada proteção à
economia russa pela desdolarização.
Dados do BC Russo de 30 de junho de 2021
informavam que suas reservas internacionais eram compostas 32% em euros, 16% em
dólares americanos (caindo de 46,3% em 2017), cerca de 7% em libras esterlinas,
13% em renminbi chinês (em 2017 era de 0,1%), 22% em ouro e o restante mantido
em outras moedas. Segundo o jornal Financial Times, cerca de US$ 300 bilhões
dos US$ 630 bilhões de reservas internacionais mantidas pela Rússia foram
bloqueadas pelas sanções. Já a União Europeia declarou que as sanções bloqueiam
mais da metade das reservas do Banco Central da Rússia.
Jim O'Neill, que ocupa desde 2001 o cargo
de chefe de pesquisa em economia global do Goldman Sachs, afirmou que “o efeito
imediato das sanções à Rússia foi destacar a continuidade do domínio dos EUA.
Mas também pode forçar muitas economias emergentes a reconsiderar a abordagem
de livro texto na construção de reservas em moeda estrangeira para se
protegerem contra crises econômicas”.
Falando no podcast Odd Lots da Bloomberg, o
chefe global de estratégia de taxas de juros de curto prazo do Credit Suisse
observou que as guerras tendem a transformar as conjunturas para as moedas
globais, e a perda da Rússia do acesso às suas reservas em moeda estrangeira
enviou uma mensagem a todos os países: “Eles não podem contar com esses
estoques de dinheiro como seus, em caso de tensão. Pode fazer cada vez menos
sentido para os gestores de reservas globais reter dólares por segurança, já
que eles podem ser retirados quando são mais necessários”.
Em dezembro de 2021, a participação do
renminbi chinês nos pagamentos internacionais era de apenas 2,7%, (muito) atrás
do dólar americano com 40,5%, euro com 36,7% e libra esterlina com 5,89%. A
participação do rublo russo foi de 0,21%.
Os impactos econômicos de longo prazo dos
eventos históricos que se desenrolam ainda serão conhecidos. Só o tempo
revelará suas consequências.
Keynes publicou as “Consequências
Econômicas da Paz em 1919”, alertando que as reparações de guerra visando
esmagar a vida econômica da Alemanha, derrotada na Primeira Guerra, não
proporcionariam o sistema económico equitativo necessário à prosperidade da
Europa. Vinte anos separam o texto do início da II GM na Europa. Em 1925,
Keynes escreve as “Consequências Econômicas do Sr. Churchill”, onde adverte
sobre os riscos para Inglaterra de retornar ao padrão ouro, com restrições de
liquidez, perda de renda e competitividade da economia inglesa. Vinte anos
depois são ratificados os acordos de Bretton Woods, com o fim da hegemonia
inglesa.
“Há décadas em que nada acontece e há
semanas em que décadas acontecem”.
*Gabriel Galípolo, mestre em
Economia Política pela PUC-SP, é sócio da Galípolo Consultoria.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é
professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.
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