terça-feira, 8 de março de 2022

Luiz Gonzaga Belluzzo / Gabriel Galípolo*: As consequências econômicas da guerra

Valor Econômico

O comércio entre Rússia e China se afasta mais do uso do dólar em 2018, após o início da guerra comercial EUA-China

Entre as sanções anunciadas no dia 26 de fevereiro para isolar a Rússia do sistema financeiro internacional, concentraram as atenções a remoção de bancos russos selecionados do SWIFT e as medidas restritivas para impedir o BC russo de usar suas reservas internacionais.

Não é a primeira vez que o SWIFT é utilizado como instrumento de poder geopolítico. Em 2006, o sistema foi alvo de divergências envolvendo EUA e União Europeia, após a descoberta do chamado “acordo swift”. Por meio de um software, os EUA acessam a base de dados (informações confidenciais) sobre transferências bancárias, sem o conhecimento de bancos e seus clientes, em um esforço secreto do “Terrorist Finance Tracking Program”, criado pela política de “Guerra ao Terror” da administração Bush.

Ainda em 2006, o governo belga (o SWIFT é sediado em Bruxelas) declarou que o acordo violava as leis do país e da UE. Em 11 de fevereiro de 2010 o “acordo swift” foi rejeitado pelo Parlamento Europeu, com a perda de seus efeitos jurídicos na Europa para preservar os direitos dos cidadãos europeus.

Em 2014, após o governo dos EUA ameaçar desconectar a Rússia do sistema SWIFT como sanção a anexação da Crimeia, o BC russo se engaja no desenvolvimento de um sistema alternativo, o SPFS (System for Transfer of Financial Messages). Antes do início do conflito com a Ucrânia, a autoridade monetária russa buscava integrar a rede SPFS com o Sistema de Pagamentos Interbancários Transfronteiriços (CBIBPS), com sede na China, e mantinha negociações para expansão com Turquia, Irã e países da União Econômica da Eurásia (EAEU), que inclui Armênia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão. Segundo o site Rússia Briefing, no final de 2020, 23 bancos estrangeiros estavam conectados ao SPFS, incluindo instituições da Alemanha e Suíça.

A baixa conectividade internacional e, até agora, o “baixo incentivo” de Pequim aos bancos chineses para aderirem ao sistema russo, deixam sua viabilidade pendente de questões sobre a rapidez com que a Rússia é capaz de integrar o SPFS a outros sistemas, e se os Estados Unidos e a União Europeia vão impor sanções aos países que se conectarem.

A iniciativa russa para reduzir a influência norte-americana em sua economia é registrada nos movimentos de desdolarização e aproximação da China. O comércio bilateral entre Rússia e China se afasta ainda mais do uso do dólar em 2018, após o início da guerra comercial entre EUA e China, com a imposição de pesadas tarifas sobre produtos chineses.

Desde 2014 o comércio entre as economias russa e chinesa expandiu mais de 50% e a China se tornou o maior destino das exportações da Rússia. A Rússia é uma importante fonte de petróleo, gás, carvão e commodities agrícolas para a China, e a China vende produtos mecânicos, máquinas e equipamentos de transporte, telefones celulares, carros e produtos de consumo para a Rússia.

Em 2013, 80% das exportações totais russas foram denominadas em dólares americanos. Em 2020 essa participação caiu para pouco mais da metade. Enquanto apenas 23% das exportações russas para a China foram liquidadas em dólar em 2020, 60% das exportações chinesas para a Rússia ainda eram denominadas em dólar. A redução do uso do dólar no comércio entre os dois países se deu com aumento da participação do euro, moeda hoje dominante no comércio bilateral entre Rússia e China. A coordenação do Ocidente na aplicação das sanções, com adesão da União Europeia, comprometeu a esperada proteção à economia russa pela desdolarização.

Dados do BC Russo de 30 de junho de 2021 informavam que suas reservas internacionais eram compostas 32% em euros, 16% em dólares americanos (caindo de 46,3% em 2017), cerca de 7% em libras esterlinas, 13% em renminbi chinês (em 2017 era de 0,1%), 22% em ouro e o restante mantido em outras moedas. Segundo o jornal Financial Times, cerca de US$ 300 bilhões dos US$ 630 bilhões de reservas internacionais mantidas pela Rússia foram bloqueadas pelas sanções. Já a União Europeia declarou que as sanções bloqueiam mais da metade das reservas do Banco Central da Rússia.

Jim O'Neill, que ocupa desde 2001 o cargo de chefe de pesquisa em economia global do Goldman Sachs, afirmou que “o efeito imediato das sanções à Rússia foi destacar a continuidade do domínio dos EUA. Mas também pode forçar muitas economias emergentes a reconsiderar a abordagem de livro texto na construção de reservas em moeda estrangeira para se protegerem contra crises econômicas”.

Falando no podcast Odd Lots da Bloomberg, o chefe global de estratégia de taxas de juros de curto prazo do Credit Suisse observou que as guerras tendem a transformar as conjunturas para as moedas globais, e a perda da Rússia do acesso às suas reservas em moeda estrangeira enviou uma mensagem a todos os países: “Eles não podem contar com esses estoques de dinheiro como seus, em caso de tensão. Pode fazer cada vez menos sentido para os gestores de reservas globais reter dólares por segurança, já que eles podem ser retirados quando são mais necessários”.

Em dezembro de 2021, a participação do renminbi chinês nos pagamentos internacionais era de apenas 2,7%, (muito) atrás do dólar americano com 40,5%, euro com 36,7% e libra esterlina com 5,89%. A participação do rublo russo foi de 0,21%.

Os impactos econômicos de longo prazo dos eventos históricos que se desenrolam ainda serão conhecidos. Só o tempo revelará suas consequências.

Keynes publicou as “Consequências Econômicas da Paz em 1919”, alertando que as reparações de guerra visando esmagar a vida econômica da Alemanha, derrotada na Primeira Guerra, não proporcionariam o sistema económico equitativo necessário à prosperidade da Europa. Vinte anos separam o texto do início da II GM na Europa. Em 1925, Keynes escreve as “Consequências Econômicas do Sr. Churchill”, onde adverte sobre os riscos para Inglaterra de retornar ao padrão ouro, com restrições de liquidez, perda de renda e competitividade da economia inglesa. Vinte anos depois são ratificados os acordos de Bretton Woods, com o fim da hegemonia inglesa.

“Há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem”.

*Gabriel Galípolo, mestre em Economia Política pela PUC-SP, é sócio da Galípolo Consultoria.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

 

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