O Estado de S. Paulo
País não pode ignorar problemas que poderão
afetar seus interesses concretos, prejudicando seu desenvolvimento e sua
segurança nacional
A pandemia e, agora, o conflito entre a Rússia e a Ucrânia expuseram de forma dramática as vulnerabilidades de todos os países em áreas estratégicas. A dependência da China em muitos setores da cadeia produtiva fez com que os países desenvolvidos passassem a enfrentar essa questão com novas políticas industriais para reduzir os riscos dessa dependência. No caso do Brasil, a magnitude dos problemas – em especial na economia (baixo crescimento, inflação, taxa de juros), na sociedade (desigualdade, aumento da pobreza, desemprego), na destruição da Amazônia e no isolamento e na perda de espaço do mundo – deixa para um longínquo segundo plano a questão das vulnerabilidades que perpassa diversos setores estratégicos para a segurança alimentar e a segurança nacional.
Vou limitar o tratamento desta matéria a
quatro aspectos: comércio exterior, áreas estratégicas, inovação e segurança
cibernética.
O comércio exterior brasileiro está acima
de US$ 0,5 trilhão. As exportações superam US$ 100 bilhões, porém com crescente
vulnerabilidade. O agronegócio representou 43%. Deste total, mais de 70% das
exportações estão representadas por dois produtos de proteína vegetal (soja e
milho), 87,7% em valor concentrado no mercado chinês. O mercado asiático
absorveu 46,4%, com destaque para a China, que representou 31,3%. Nos últimos
cinco anos, mais de 90% da soja brasileira foi exportada para a China. E, com a
redução das compras de soja e carne por esse país, nos meses recentes a
participação chinesa registrou pequena redução.
Essa dependência deixa o setor muito
exposto às oscilações do comportamento da economia chinesa e das políticas do
governo de Beijing (restrições sanitárias, autossuficiência, diversificação de
fontes de suprimento, negociações com os EUA). Além disso, a precariedade da
infraestrutura e a dependência externa dos defensivos agrícolas se somam às
crescentes ameaças de restrições externas (lei do desmatamento na Europa), em
razão das políticas ambientais relacionadas aos ilícitos na Amazônia
(desmatamento, queimadas e garimpo, inclusive em terras indígenas). Os
consumidores e as cadeias de supermercados externos já começaram a boicotar
produtos brasileiros, como retaliação à política ambiental amazônica.
Na indústria, pesquisas indicam que apenas
10% das empresas podem ser consideradas 4.0, o que tem acarretado aumento das
importações e perda de mercado externo nas manufaturas, gerando um déficit de
mais de US$ 110 milhões. A indústria de transformação caiu de 28% do PIB, em
fins de 1980, para ao redor de 10%, no ano passado, e a participação das
manufaturas nas exportações caiu de 59%, em 2000, para 27%, em 2021.
Quanto às vulnerabilidades em áreas
estratégicas, podem ser lembradas, entre outras, a falta dos insumos na área da
saúde para a fabricação de vacinas (IFA); na agricultura, a de fertilizantes
(mais de 80% dos fertilizantes são importados da Rússia e de Belarus); na
alimentação, em que 60% do consumo doméstico de trigo depende de importação
externa e, deste total, 85% são provenientes de um único país, a Argentina; e
na área de semicondutores e terras raras, sem qualquer política até aqui para
reduzir essa dependência externa. Na era do conhecimento, o atraso do Brasil na
educação e em pesquisa e desenvolvimento se reflete em todas as áreas
produtivas, com exceção do agronegócio, que se mantém atualizado nos avanços
tecnológicos no campo.
As transformações globais estão obrigando
os países a atualizarem sua política industrial. A China, em 2017, com sua Made
in China 2025, deu prioridade a dez setores considerados estratégicos para
evitar a dependência externa e industrializar-se de forma competitiva. Mais
recentemente, a Alemanha, a França e parcialmente os EUA adotaram políticas e
incentivos para modernizar suas indústrias. Pronunciamentos, na semana passada,
dos presidentes Joe Biden e Emmanuel Macron indicaram uma mudança de política
pela qual, em vez de depender da cadeia produtiva estrangeira, EUA e França vão
buscar uma autonomia soberana, aumentando a capacidade produtiva da economia em
áreas estratégicas. No Brasil, tornou-se urgente a definição de uma estratégia
entre o governo e o setor privado para reindustrializar o parque nacional, que
poderia ser acelerada pela introdução de redes privadas de 5G e dos novos
instrumentos da inteligência artificial.
Por fim, na área cibernética, o Brasil é um
dos cinco países mais visados por hackers. Instituições governamentais como o
TSE e o Ministério da Saúde foram atacadas e paralisadas em áreas sensíveis.
Empresas privadas, desde bancos até cadeias de bens de consumo, também sofreram
interferências externas. Claramente, o País não está preparado para responder a
esta nova ameaça. Governo e empresas deveriam juntar esforços e recursos para
melhorar a capacidade de defesa contra ataques à segurança e a proteção de
dados sensíveis e que, como se viu em outros países, podem afetar a
infraestrutura de energia e de transporte das cidades.
Um país com mais de 213 milhões de
habitantes e dimensões continentais não se pode dar ao luxo de ignorar essas e
outras vulnerabilidades que poderão afetar seus interesses concretos,
prejudicando seu desenvolvimento e sua segurança nacional.
*Presidente do Irice, foi embaixador em Washington
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