Disseminar otimismo faz parte de qualquer
plano, inclusive de tentativas de deslegitimar as eleições. Mas até onde a
vista alcança, mesmo com ajuda de bondades e maldades legislativas, uso
eleitoral abusivo de agências de governo, golpes abaixo da cintura em adversários
e um arsenal de transgressões e crimes - de fake news à violência
política – que vençam a vigilância do Judiciário, não se vê cenário de reversão
bastante da rejeição a Bolsonaro, cevada em três anos e meio e turbinada por
agruras sociais do momento. Mas não apenas opositores lidam com essas evidências.
Os russos também. O que farão?
O campo ideológico governista não deve ser subestimado no atributo de raciocinar. No palácio nem só o centrão raciocina, ainda que, com sua razão pragmática, governe mais que todos. Mas não cabem ilusões de que no duro núcleo do capitão se pratique uma razão do tipo razoável, que aceite a derrota sem apelar à subversão das regras do jogo ou, no limite, tentar acabar com ele. Sua razão calculista é cheia de razão. Sendo tosca, tem apetite destrutivo. A hipótese de ela ver as urnas como via principal tem feitio de plano B. O golpismo é a língua falada por uma força social que já tem vida fora do palácio. A eleição poderá virar seu plano A se houver milagre na economia ou suicídio da oposição. Sem isso, setores resilientes do palácio, sem perderem a noção da aritmética, calcularão a iminência da derrota, agirão de acordo com sua razão tosca e nenhum centrão os deterá. Chances de êxito da insensatez são bem duvidosas, mas supor que por saber disso o bolsonarismo recuará é ver ali uma razão razoável que lhe é estranha. Se seu êxito não é provável, os estragos que pode causar à democracia o são.
Nova conjuntura se forma com as mais
recentes pesquisas. Pescar em águas turvas, propensão magna do bolsonarismo, é probabilidade
muito grande, porém, agora mais perigosa, em face da situação desenhada de que
poderá ter apoio bastante para chegar virtualmente competitivo ao segundo turno.
Outra coisa seria sua derrota no primeiro turno, ou chegada ao segundo em
posição de fragilidade explícita. O teor máximo de perigo para instituições será
a combinação incandescente da percepção pública de que Bolsonaro pode se
reeleger com a convicção palaciana de que isso não ocorrerá. Será intuitivo fazer
a percepção pública polarizada acirrar os ânimos para que o segundo turno seja
o palco ideal de encenação de um script golpista. Se essa suposição faz
sentido é hora da oposição democrática tirar atitudes protetoras da democracia do
armário onde dormem desde setembro do ano passado. Seis meses após o fracasso
daquele golpe, as instituições podem estar vigilantes para a possibilidade de a
fera ferida tentar, no desespero, virar a mesa no período pré-eleitoral, antes
de um fracasso no primeiro turno. Mas a conversa começa a ser outra. A fera já não
sangra tanto e pode atacar na hora da decisão. A situação pede mais que a
presença de guardiães institucionais regulares e neutros. Pede compromisso
unitário prático de atores políticos (partidos e candidatos) envolvidos
diretamente na eleição.
Ainda não se enxerga respostas das oposições
a essa nova conjuntura imediata, nem sinais de ação conjunta. O quadro
pré-eleitoral parece reafirmar o nome de Lula como o que tem mais chance de
evitar a reeleição do presidente, mas também o fato dele não atrair forças de
centro e centro-direita para antecipar a decisão no primeiro turno. Evidência
disso é a persistência de monótonas articulações entre partidos daquele campo
prometendo ter candidatura única. Se for para valer, pode atenuar sobressaltos
em relação ao crescimento de Bolsonaro. Se não for, o enterro definitivo da
ideia de uma terceira via agregadora porá a nu a grande distância a que Lula
está de ser o herdeiro indisputado desse espólio.
O PT não tem ajudado na suposta “ida ao
centro”. Se depender do que tem dito e feito, Alckmin será azeitona
conservadora numa empada esquerdista e populista. É potencialmente corrosiva
a política partidária pequena que impera em arranjos estaduais na hora em que
Bolsonaro toma fôlego. Na Bahia, onde não se precisaria ir ao centro pois nele
o PT já estava, parece não haver mais jeito, tudo está desfeito e a aposta é no
umbigo, em ritmo de luta interna. Em Pernambuco, outro bastião a princípio
forte, a divisão parece iminente. No Paraná, o recado da filiação de Requião é
frente de esquerda nacionalista. Torniquetes abundam, limitando a tripulação do
que seria uma arca de Noé.
Lula parece ter perdido a antiga condição
de alinhar o partido às suas preferências. Está engessado na gramática
autorreferente que se tornou língua franca em sua cozinha após o trauma de sua
prisão. Dois anos depois de solto, ainda não se soltou. Numa só semana chamou
Moro a uma briga de rua, espantou liberais com discursos populistas e
nacionalistas e, pior, atacou o Congresso, onde estão boa parte dos atores que
podem facilitar, ou evitar, que a eleição descambe para o golpismo e boa parte
dos políticos que o lendário pragmatismo do Lula lá promete capturar. A
resposta de Rodrigo Pacheco não foi só pertinente e contundente. Sugere uma
pergunta crucial: o
iceberg é invisível ou a cegueira é soberana?
*Cientista político e professor da UFBa
**Publicado originalmente, na Revista Política
Democrática, online, nº 41, março,2022
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