O Estado de S. Paulo.
A indústria da desinformação a serviço dos regimes de força não precisa construir credibilidade, apenas semeia o descrédito generalizado
Num artigo publicado no dia 11 de março no
The Washington Post, a colunista Margaret Sullivan expôs com clareza singular
uma das táticas mais insidiosas dos líderes autoritários. Especialista em mídia
e imprensa, temas de suas colunas no Post, a jornalista demonstra que, para
autocratas como Vladimir Putin, há algo de mais valioso do que fazer com que as
pessoas acreditem neles: este algo de mais valioso é fazer com que as pessoas
não acreditem em mais nada e em mais ninguém. Resumida assim, a fórmula parece
um contrassenso. Como, afinal de contas, um tirano pode arregimentar apoio
popular, se não faz por merecer a confiança irrestrita das multidões?
Antes de responder, lembremos que nós, aqui no Brasil, conhecemos de perto esse tipo de mando. Neste ponto, vamos nos afastar da linha de argumentação de Margaret Sullivan. Olhemos para o nosso país e vamos entender o contrassenso. Não temos aqui, nos trópicos, um sósia perfeito de Vladimir Putin, mas é inegável que anda nestas terras um personagem que almeja virar Putin quando crescer. Pois então: como é que esses sujeitos agregam seguidores?
Agora a resposta é fácil. Eles não ganham
corações selvagens e mentes turvas porque se apresentem como cidadãos
confiáveis, íntegros e de boafé. Definitivamente, não é assim que eles se
apresentam. Eles mentem, e não precisam esconder que mentem. Eles mentem, todo
mundo sabe que eles mentem, mas, como suas mentiras – às vezes cínicas, às
vezes perversas – ostentam um potencial destruidor, é com eles mesmos que as
falanges ressentidas cerram fileiras.
Líderes como Putin (e seus imitadores) não
precisam ser dignos de crédito irrestrito. Eles não precisam construir laços baseados
na verdade e na honradez da palavra – basta que se mostrem brutais o suficiente
para destruir todas as instituições do saber e do conhecimento que florescem na
democracia (como a universidade, a ciência, a justiça, as artes e a imprensa),
pois, como não se cansam de repetir – e nisso seus adoradores acreditam
fervorosamente –, essas instituições não passam de um amontoado de mentiras.
Mentindo em nome de combater a mentira, eles arrebanham seus fiéis.
Para os tiranos, a prioridade não é
conquistar a credulidade dos incautos, mas fazer com que o maior número de
incautos não deposite mais um pingo de confiança em nenhuma instituição da
democracia. Vieram para destruir. Seus apelos mais inflamados repousam não em
projetos afirmativos, positivos, construtivos, mas na promessa de devastar
qualquer resistência que encontrarem pela frente. É verdade que esses apelos
costumam vir camuflados em retóricas aparentemente edificantes em torno de
entidades mágicas como a “Pátria”, a “Grande Rússia”, “Deus”, “família” ou
qualquer Shangri-lá que simbolize idílio ou virtude (sua fantasia de futuro é
sempre a restauração de uma glória mística e militar que teria existido no
passado), mas, no fundo, o que leva as sociedades a se entregarem a estes
demagogos da força bruta é a paixão por dizimar o que, na democracia, tem parte
com a verdade.
Voltemos, agora, à jornalista Margaret
Sullivan. Ela nos lembra que a filósofa Hannah Arendt (1906-1975) já havia nos
alertado, numa entrevista concedida há cinco décadas, para este truque maligno
dos líderes autoritários. Em seu artigo A nova tática de controle da Rússia é
aquela que Hannah Arendt apontou há cerca de 50 anos, ela recupera uma frase
mais do que luminosa da pensadora alemã: “Se todo mundo sempre mente para você,
a consequência não é que você acredite nas mentiras, mas sim que ninguém mais
acredite em nada”.
É por isso que a indústria da desinformação
a serviço dos regimes de força não se envergonha de espalhar falácias e
fraudes. Ela não constrói credibilidade em ponto algum, não precisa disso,
apenas semeia o descrédito generalizado. As fake news servem exatamente para
incinerar as vias de acesso à verdade factual. O próprio conceito de verdade
dos fatos vai se perdendo. As correntes de apoio ao presidente da República não
falam em fatos, mas apenas em “narrativas”. Para elas, a verdade dos fatos não
existe, só o que existe são versões. No credo das milícias virtuais, não há
mais diferença entre juízo de fato e juízo de valor (entre fatos e opiniões).
No lugar do pensamento objetivo e do debate racional, quem entra em cena é o
fanatismo. Assim, a indústria da desinformação consegue, pouco a pouco, fazer
com que, nas palavras de Hannah Arendt, “ninguém mais acredite em nada”.
Pronto: aí está o canteiro ideal para que
modelos de inspiração fascista venham a florescer. “Com um povo assim”, dizia a
filósofa (conforme lemos no artigo de Margaret Sullivan), “você pode, então,
fazer o que quiser”. Se o povo se convencer de que todo enunciado que tinha o
estatuto de verdade factual se reduz a impostura e manipulação, aclamará o
primeiro maluco facínora que prometer atear fogo em tudo.
Logo, os pregadores das tiranias só
precisam produzir confusão e mais confusão. O resto virá como consequência.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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