O Globo / O Estado de S. Paulo
Períodos de passagem são problemáticos e
exigem reflexão. São situações de liminaridade quando saímos de um lugar para
outro. Passagens físicas em geral se atrelam a transições morais quando há
mudança de posição social.
O cenário mais banal destas passagens é se
imaginar ganhando uma Mega-Sena e pensar como a fortuna seria dividida para,
finalmente, nos tirar do aperto, ao lado das pessoas que amamos. Na ilusão de
nos “livrarmos” de um mundo repleto de carências.
Toda passagem, até entrar e sair de uma condução, oferece seus riscos. Algumas, como passar de estudante a doutor ou entrar ou ser rebaixado num emprego, acarretam choques e preocupações que, em toda sociedade humana, são ritualizados ou dramatizados. No nosso mundo moderno, usamos contratos quase sempre indignos, que implicam brutais perdas salariais. No caso extremo dos condenados à morte, há o direito a uma caprichada “última ceia”.
Quando me tornei professor emérito da
Universidade Notre Dame, escolhi não só o restaurante, como também a comida.
Dramatizei a morte social, confirmando que os condenados têm certas regalias.
No Brasil, seguimos o modelo da humilhação.
Carnavalescamente, cuidamos de nossas vidas, usamos e tiramos muitas máscaras
que nos permitem, como manda o figurino, “tirar vantagem de tudo”.
Convenhamos que é complicado ser de tudo um
pouco, num mundo que, quanto mais fica transparente, mais encolhe na
polarização.
Na minha introdução ao livro que descobre
os “ritos de passagem” como mecanismo sociológico, problematizando as
transições e soleiras, escrito em 1909 por Arnold Van Gennep, afirmo que a
elaboração ritual dos períodos intermediários inclui tanto vestir o pijama e
tomar a anestesia para a cirurgia quanto as declarações oficiais de fuzilamento
com a devida venda nos olhos das vítimas porque, piedosos, não deixamos o
condenado ver sua própria morte como exemplo-espetáculo.
Tanto entrar na vida quanto dela sair exige
cerimônia e um mínimo de justificativa documentada, que juristas e sociólogos
chamam de “legitimação”. Temos certificados de nascimento e de morte — sem os
quais uma vasta e, em geral, confusa e injusta burocracia protetora de brancos
e ladrões não faria o menor sentido no Brasil.
O limite relativo à soleira e aos espaços
fronteiriços nos processos eleitorais mostra claramente as dificuldades da
competição pelo poder no Brasil. Nossa índole — aristocrática, escravocrata e
gradualista, autoritária ao extremo — detesta “largar o poder”, que tem facetas
grandiosas e ilimitadas, para dizer o mínimo.
Mas como “tirar” sem problemas pessoas do
“poder” — justamente o objetivo de uma eleição —, sobretudo se elas recusam a
regra da mudança irrecorrível e periódica?
Eleições são tempos liminares e duvidosos
até mesmo nas mais “estabelecidas” democracias, como acentuam os especialistas,
porque a invariante do regime democrático é o risco de uma perigosa
alternância: a alternância do mandão.
No Brasil, períodos pré-eleitorais são
estações em que combinações inimagináveis se realizam, cálculos kafkianos se
escrevem e carnavalizações entram em cena, pois a lógica do carnaval, como
chamei a atenção num livro de 1979, é justamente colocar de ponta-cabeça
cargos, gêneros, etnias e idades para permitir o que fazem muitos candidatos: o
uso cínico de máscaras — as esperadas promessas que, de tão boas, nem Cristo
ousaria fazê-las...
Daí as inversões “carnavalesco-eleitorais”
que vão do “roubo, mas faço” e do roubei, mas fui inocentado por geografia; ou
da balela segundo a qual no meu governo — a despeito de uma imoral desigualdade
— haverá paz, honestidade, bom senso e concórdia.
Não é por acaso que, em todo período
pré-eleitoral — esse carnaval do poder —, assistimos ao Batman concorrer a
prefeito tendo como vice o Coringa. E ao velho Zorro fazer campanha para o
índio Tonto, cuja tribo ele ajudou a liquidar.
Parece fábula, mas, nesta próxima disputa,
nos confrontaremos com os mesmos atores e promessas, e todos pensaremos nos
dinheiros roubados (e devolvidos) e no papel intolerável da ausência de bom
senso e da presença do contrassenso de Don Carnal. A menos que Nossa Senhora
Aparecida se apiede desta reprise.
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