quarta-feira, 30 de março de 2022

Roberto DaMatta: Eleições são tempos liminares

O Globo / O Estado de S. Paulo

Períodos de passagem são problemáticos e exigem reflexão. São situações de liminaridade quando saímos de um lugar para outro. Passagens físicas em geral se atrelam a transições morais quando há mudança de posição social.

O cenário mais banal destas passagens é se imaginar ganhando uma Mega-Sena e pensar como a fortuna seria dividida para, finalmente, nos tirar do aperto, ao lado das pessoas que amamos. Na ilusão de nos “livrarmos” de um mundo repleto de carências.

Toda passagem, até entrar e sair de uma condução, oferece seus riscos. Algumas, como passar de estudante a doutor ou entrar ou ser rebaixado num emprego, acarretam choques e preocupações que, em toda sociedade humana, são ritualizados ou dramatizados. No nosso mundo moderno, usamos contratos quase sempre indignos, que implicam brutais perdas salariais. No caso extremo dos condenados à morte, há o direito a uma caprichada “última ceia”.

Quando me tornei professor emérito da Universidade Notre Dame, escolhi não só o restaurante, como também a comida. Dramatizei a morte social, confirmando que os condenados têm certas regalias.

No Brasil, seguimos o modelo da humilhação. Carnavalescamente, cuidamos de nossas vidas, usamos e tiramos muitas máscaras que nos permitem, como manda o figurino, “tirar vantagem de tudo”.

Convenhamos que é complicado ser de tudo um pouco, num mundo que, quanto mais fica transparente, mais encolhe na polarização.

Na minha introdução ao livro que descobre os “ritos de passagem” como mecanismo sociológico, problematizando as transições e soleiras, escrito em 1909 por Arnold Van Gennep, afirmo que a elaboração ritual dos períodos intermediários inclui tanto vestir o pijama e tomar a anestesia para a cirurgia quanto as declarações oficiais de fuzilamento com a devida venda nos olhos das vítimas porque, piedosos, não deixamos o condenado ver sua própria morte como exemplo-espetáculo.

Tanto entrar na vida quanto dela sair exige cerimônia e um mínimo de justificativa documentada, que juristas e sociólogos chamam de “legitimação”. Temos certificados de nascimento e de morte — sem os quais uma vasta e, em geral, confusa e injusta burocracia protetora de brancos e ladrões não faria o menor sentido no Brasil.

O limite relativo à soleira e aos espaços fronteiriços nos processos eleitorais mostra claramente as dificuldades da competição pelo poder no Brasil. Nossa índole — aristocrática, escravocrata e gradualista, autoritária ao extremo — detesta “largar o poder”, que tem facetas grandiosas e ilimitadas, para dizer o mínimo.

Mas como “tirar” sem problemas pessoas do “poder” — justamente o objetivo de uma eleição —, sobretudo se elas recusam a regra da mudança irrecorrível e periódica?

Eleições são tempos liminares e duvidosos até mesmo nas mais “estabelecidas” democracias, como acentuam os especialistas, porque a invariante do regime democrático é o risco de uma perigosa alternância: a alternância do mandão.

No Brasil, períodos pré-eleitorais são estações em que combinações inimagináveis se realizam, cálculos kafkianos se escrevem e carnavalizações entram em cena, pois a lógica do carnaval, como chamei a atenção num livro de 1979, é justamente colocar de ponta-cabeça cargos, gêneros, etnias e idades para permitir o que fazem muitos candidatos: o uso cínico de máscaras — as esperadas promessas que, de tão boas, nem Cristo ousaria fazê-las...

Daí as inversões “carnavalesco-eleitorais” que vão do “roubo, mas faço” e do roubei, mas fui inocentado por geografia; ou da balela segundo a qual no meu governo — a despeito de uma imoral desigualdade — haverá paz, honestidade, bom senso e concórdia.

Não é por acaso que, em todo período pré-eleitoral — esse carnaval do poder —, assistimos ao Batman concorrer a prefeito tendo como vice o Coringa. E ao velho Zorro fazer campanha para o índio Tonto, cuja tribo ele ajudou a liquidar.

Parece fábula, mas, nesta próxima disputa, nos confrontaremos com os mesmos atores e promessas, e todos pensaremos nos dinheiros roubados (e devolvidos) e no papel intolerável da ausência de bom senso e da presença do contrassenso de Don Carnal. A menos que Nossa Senhora Aparecida se apiede desta reprise.

 

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