O Estado de S. Paulo
Referendo de domingo foi o ponto culminante
de um longo e civilizado processo que revitaliza as instituições políticas
deste pequeno grande país
O drama da guerra na Ucrânia fez passar
despercebido um evento político cheio de significado, bem perto de nós. No
domingo, 27 de março, realizou-se no Uruguai um referendo popular sobre um
amplíssimo conjunto de matérias, da educação pública ao direito penal, passando
pela presença do Estado na economia. À primeira vista, poderia parecer um surto
plebiscitário. Nada disso. Foi o ponto culminante de um longo e civilizado
processo que revitaliza as instituições políticas deste pequeno grande país.
Menos que seu resultado, sobre o qual
falarei mais adiante, interessa o processo que levou ao referendo, em reação a
uma iniciativa do recém-empossado governo do presidente Luiz Alberto Lacalle
Pou, de centro-direita. Em abril de 2020, o novo presidente recorreu à previsão
constitucional que autoriza, dentro de certos limites, o Executivo a declarar
“de urgente consideração” projetos de lei que considera decisivos. Até então, o
mecanismo havia sido utilizado com extrema parcimônia (só 13 vezes, desde o
retorno do país à democracia, em 1985) e nunca antes com tamanha abrangência.
Contendo nada menos do que 435 mudanças legislativas, criando, modificando ou revogando normas preexistentes, o projeto avançou dentro das regras constitucionais que preveem, nesses casos, tramitação mais acelerada (decisão final no prazo máximo de 100 dias, prevalecendo as mudanças propostas pelo Executivo em caso de não decisão). Com maioria parlamentar, o governo conseguiu transformá-lo em lei em julho de 2020. Mas o Congresso não deixou de modificar o projeto original (caiu, por exemplo, o fim do monopólio da empresa estatal de petróleo). A história não terminou aí.
Se, por um lado, a Constituição uruguaia dá ao Executivo o poder de acelerar o processo legislativo, por outro, oferece à sociedade o contrapoder de convocar referendos populares para derrogar total ou parcialmente leis aprovadas pelo Congresso, desde que a convocação do referendo esteja respaldada por pelo menos 25% dos eleitores, em até no máximo um ano depois da promulgação da lei. Com base nesse dispositivo constitucional, sindicatos, organizações sociais e partidos ligados à oposição coletaram em tempo hábil cerca de 800 mil assinaturas, representando quase 30% do eleitorado, o que equivaleria, no Brasil, a nada menos do que 45 milhões de eleitores.
Confirmada a convocação do plebiscito, as
forças do governo e da oposição se mobilizaram em torno das opções “não” e
“sim”, respectivamente, à derrogação das modificações aprovadas pelo Congresso.
Em vez de partir para o tudo ou nada, a oposição decidiu se concentrar em 136
das 435 mudanças introduzidas pela nova lei. Reconheceu, assim, se não o mérito
de grande parte do projeto defendido pelo governo, o fato de que, numa
democracia, ninguém pode se arvorar a ser o único e fiel intérprete da “vontade
popular”. Tão ou mais dignos de nota são a forma e o conteúdo da campanha a
favor do “sim”. Em vez da retórica polarizadora, do nós contra eles, a oposição
apostou na mensagem oposta: o referendo não seria uma guerra política, mas o
exercício pleno da liberdade de todos os uruguaios e uruguaias em defesa de
seus direitos. Não acusaram o governo de crime de lesa-pátria nem de inimigo do
povo, nem se ergueram no altar da Pátria (muito menos invocaram o nome de Deus
em vão).
O governo venceu o referendo por margem
muito pequena, com comparecimento de 85% do eleitorado. O resultado não
acarretará um desastre para o país, assim como a vitória da oposição não o
teria salvado de todos os males.
A meu ver, o governo está certo ao querer
desengessar alguns mercados hiper-regulados e colocar limites à expansão do
Estado na produção de bens e serviços. Mas errado ao endurecer o direito penal
em nome da segurança pública, reduzir a proteção dos indivíduos contra
arbitrariedades policiais e adotar normas draconianas contra os inquilinos.
Assim funcionam as democracias consolidadas, com mudanças, mas sem rupturas,
preservando as instituições e a cultura democrática. Vitorioso no referendo, o
presidente Lacalle Pou reafirmou sua crença de que “existem visões diferentes
sobre o país, mas um só Uruguai”, sintetizando o patriotismo democrático que
marcou todo o processo.
A democracia uruguaia demonstra estar
plenamente consolidada, num mundo em que a desconsolidação de democracias que
julgávamos assentadas tem sido cada vez mais frequente. Dá mostras, também, de
vitalidade nova, num momento em que, para fortalecer a democracia, é essencial
torná-la mais permeável às iniciativas da sociedade, sem prejuízo das
instituições representativas e dos mecanismos de freios e contrapesos entre os
Poderes instituídos.
Sim, o Uruguai é um pequeno país, com
níveis de pobreza e desigualdade muito menores que os do Brasil. Nem por isso
deixam de ser valiosas e úteis as lições que “el paisito” dá em matéria de
civilidade e democracia. Ser civilizado e democrático é, também, uma questão de
escolha. No Brasil, ela nunca foi tão decisiva.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do
Gacint-USP
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