O Globo
A insistência do governo na tese de que as
urnas eletrônicas foram fraudadas é estranha. As evidências apresentadas são
muito frágeis, e os mecanismos adotados pela Justiça de supervisão e escrutínio
parecem mais que suficientes. Por isso analistas supõem má-fé do governo, que,
sabendo que a alegação é falsa, insistiria nela apenas com o intuito malicioso
de preparar um golpe de Estado. Mas há motivos para supor que ele pode
acreditar na tese na forma de uma teoria da conspiração.
O maior estudioso das teorias da
conspiração, Joseph Uscinski, as define como a crença, contrariada pela
autoridade epistemológica (a ciência, o jornalismo profissional ou a Justiça),
de que fenômenos complexos que prejudicam o bem comum são explicados de modo
adequado pela ação de um pequeno grupo de indivíduos poderosos agindo em
segredo.
Embora a teoria da conspiração precise de algum tipo de evidência para sustentá-la, ela não aceita ser contestada pelos fatos, não admite ser “falseada”. Pistas, indícios e suspeitas, não importa quão frágeis, são capazes de manter a crença viva. Evidências contrárias, mesmo que contundentes, são rejeitadas. Os fatos se moldam à convicção.
A investigação aberta pela Polícia Federal
para apurar as alegações de Bolsonaro, feitas numa live, de fraude nas eleições
mostra como o governo age segundo a lógica de uma teoria da conspiração. O
inquérito da PF descreve como, mesmo diante de evidências escassas e frágeis,
contrariado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pelos mecanismos de
supervisão e pelas pesquisas de intenção de voto, Bolsonaro mantém todas as
alegações e segue resolutamente buscando mais “provas”.
A investigação descobriu que, ainda no
final de 2019, o general Luiz Eduardo Ramos, então ministro-chefe da Secretaria
de Governo, procurou o empresário de informática Marcelo Abrileri para se
reunir com o presidente e outros ministros e apresentar seus indícios de que a
eleição de 2014 tinha sido fraudada. Abrileri tinha produzido uma apresentação
mostrando aumento súbito na contagem dos votos em favor de Dilma Rousseff, o que
bolsonaristas interpretavam como “forte indício” de fraude (o salto se deu, na
verdade, pela atualização do sistema central, que recebeu um lote novo de dados
dos tribunais regionais do Nordeste).
Também em 2019, o perito criminal da
Polícia Federal Ivo Peixinho foi procurado pela Abin para produzir um relatório
com todas as ocorrências envolvendo as urnas eletrônicas. Embora o relatório
não trouxesse indício algum de fraude, os elementos foram apresentados pelo
ministro da Justiça, Anderson Torres, na live presidencial, com as suspeitas de
Abrileri. No fim da live, não foram apresentadas evidências, como o presidente
mesmo reconheceu:
—Não tem como se comprovar que as eleições
não foram ou foram fraudadas. São indícios.
Mesmo depois de reconhecer que não havia
nenhum indício que em todos esses anos tivesse sido provado, Bolsonaro seguiu
sustentando a suspeita. Com o convite para um representante das Forças Armadas
fazer parte da Comissão de Transparência das Eleições do TSE, ele
instrumentalizou essa participação. Transformou as intervenções desse
representante num esforço obsessivo de suspeição. Embora todos os
questionamentos tenham sido esclarecidos pela Justiça Eleitoral, a desconfiança
do presidente não foi aplacada.
Vale a pena notar a sequência. Não houve
uma denúncia, seguida de investigação e, depois de fatos apurados e
corroborados, uma acusação formal pela autoridade constituída. Houve o inverso:
primeiro foi feita a acusação — grave, embasada em suspeitas frágeis, não
apuradas; em seguida, o esforço para tentar corroborar a tese com a busca de
mais indícios. É a forma da teoria da conspiração como definida por Uscinski.
Não temos como saber se Bolsonaro acredita
mesmo na teoria da conspiração da fraude nas urnas ou se apenas a usa em seu
projeto autoritário. Mas o fato de ter feito tantos movimentos internos de
investigação com base em indícios frágeis sugere que acredite. De todo modo,
ainda que não a subscreva, seus apoiadores — ou parte deles — provavelmente o fazem.
Não será fácil combater a difusão politicamente organizada de uma teoria da
conspiração que, pela própria natureza, resiste à apresentação de evidências
contrárias. Podemos apenas torcer para que ela não se espalhe além do gueto dos
radicalizados.
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