sábado, 21 de maio de 2022

Demétrio Magnoli: A opinião embargada

Folha de S. Paulo

A preferência pelo eufemismo é um traço clássico da linguagem estatal-burocrática

Investigando o "declínio" da língua inglesa, George Orwell escreveu: "ela torna-se feia e imprecisa porque nossos pensamentos são tolos, mas o desmazelo de nossa linguagem facilita-nos desenvolver pensamentos estúpidos". O raciocínio aplica-se ao português e especificamente à Folha, que escolheu a palavra "embargo" para noticiar o advento da censura interna de opinião (13/5).

A preferência pelo eufemismo é um traço clássico da linguagem estatal-burocrática. Num jornal de extensa tradição, é coisa incomum. Não contente com um eufemismo, a Folha dobrou a dose, batizando uma PIP (Polícia Identitária do Pensamento) como Comitê de Inclusão e Equidade, composto por 17 jornalistas anônimos (mas identificados por cor e gênero).

Imprecisa, a notícia nada esclarece sobre a extensão da influência da PIP nas decisões de censura interna. Fica claro, porém, que as duas iniciativas procedem da mesma fonte: o clamor da IRUD (Igreja Racialista dos Últimos Dias) e do grupo auxiliar Jocevir (Jornalistas pela Censura Virtuosa) pela supressão de artigos opinativos não alinhados com a teologia das políticas de raça.

A renúncia ao pluralismo de opiniões, uma violação direta do Projeto Folha, decorre da "reação à publicação de um texto de Antônio Risério, em que o antropólogo acusa negros de racismo contra brancos". O texto não foi selecionado aleatoriamente: proibi-lo cumpre uma função política específica.

Yusra Khogali, fundadora do BLM (Black Lives Matter) em Toronto, escreveu que "pessoas brancas são um defeito genético da negritude" e que "a pele branca é sub-humana". Ainda: "Brancos precisam do supremacismo branco como mecanismo para proteger sua sobrevivência como povo. Negros, simplesmente por meio de seus genes dominantes, podem literalmente aniquilar a raça branca."

Khogali também implorou a Alá para ajudá-la a "não matar essa gente branca hoje" e, mais tarde, classificou o primeiro-ministro Justin Trudeau como "supremacista branco". A supremacista negra continuou na liderança do BLM/Canadá e suas ideias racistas inspiram uma ala minoritária do BLM nos EUA, o que corrói o apoio social a um movimento tão importante na denúncia da violência policial contra negros.

Risério apontava tendências ideológicas relevantes, não detalhes marginais. Seu artigo deveria ser lido pelo movimento negro como um alerta: o antirracismo, para prevalecer, precisa pertencer a indivíduos de todas as cores de pele. A lição, ensinada por Martin Luther King e Wyatt Tee Walker, parece esquecida por uma geração de ativistas que trocam o princípio da igualdade pela reivindicação da diferença.

Nas páginas da Folha, Risério foi submetido a enxurradas de ofensas e, antes de poder replicar, "embargado". Não por acaso, no auge da expedição difamatória, um grão-sacerdote da IRUD cravou-lhe (livre de "embargo", claro) o mesmo insulto lançado por Khogali a Trudeau. Finalidade do cancelamento: proibir a crítica da institucionalização da raça, pedra de toque da ideologia racialista.

A linguagem da diferença biológica, no estilo de Khogali, não é a regra. Contudo, sua matriz ideológica tornou-se parte do discurso identitário corriqueiro: a invocação do "povo negro", um fruto da noção de que brancos e negros formam "povos" separados.

O antirracismo baseia-se no conceito de que todos são cidadão detentores de direitos iguais – e, portanto, a discriminação racial deve ser criminalizada e reprimida. Já o identitarismo racial baseia-se na ideia de que, em lugar de uma nação única assentada no contrato constitucional, o que existe são "povos", definidos racialmente, em conflito latente sob um mesmo poder estatal.

A censura interna cumpre a função de criar um santuário imune à crítica para a ideia de que o Brasil é uma confederação de "povos-raça". De fato, fica vetado falar sobre o que nos une.

 

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