terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Edu Lyra - Feliz recorrência pra você

O Globo

Ações pontuais têm a sua importância, mas elas jamais terão o mesmo impacto que o trabalho recorrente

Qual é a importância da recorrência quando falamos de iniciativas solidárias? O assunto é tão decisivo para quem atua no terceiro setor e, por extensão, para o futuro do país, que vale a pena começar o ano dedicando uma coluna a ele.

Os problemas mais graves da sociedade brasileira são todos recorrentes. A pobreza, a fome, o racismo e a desigualdade nos acompanham há séculos. A violência urbana é uma velha conhecida de quem habita as grandes metrópoles. As enchentes que atingem periferias país afora, especialmente agora no verão, não são um fenômeno que começou há um ou dois anos. Nossa presença recorrente na lanterna dos rankings internacionais de educação, como o Pisa, já não surpreende ninguém.

Problemas sistêmicos, persistentes, não são uma exclusividade brasileira. Basta pensar em temas como mudanças climáticas, subdesenvolvimento no chamado “Terceiro Mundo”, guerras ou a desigualdade no acesso a medicamentos, vacinas e demais tecnologias para perceber que os grandes problemas globais, muitos deles acentuados durante a pandemia, também são recorrentes.

Desafios desse tipo só podem ser superados com ações também regulares, ininterruptas, persistentes. Num país cuja educação pública é, em média, mal avaliada, o que explica os ótimos resultados de Sobral, no Ceará? A cidade é um exemplo, dentre vários outros, de que o trabalho recorrente dá frutos.

Essa é a mentalidade que precisa nortear as ações solidárias. Seu engajamento em alguma causa, seu trabalho voluntário, sua presença em conselhos de ONGs, suas doações e contribuições financeiras, sua cobrança por melhores políticas públicas são recorrentes? Faço essas perguntas a você porque, antes de tudo, eu mesmo reflito sobre elas todos os dias.

O amigo e filantropo Elie Horn me contou certa vez que um dos motivos que o levam a continuar trabalhando é o seu compromisso com algumas ONGs.

— Edu, elas precisam de contribuições recorrentes para seguir transformando a vida das pessoas, então eu preciso honrar esse combinado — disse ele.

Ações pontuais têm sua importância, especialmente em momentos de crise aguda, mas elas jamais terão o mesmo impacto que o trabalho recorrente. A constância é o que cria legado. Perceber essa verdade talvez seja um dos maiores desafios culturais do Brasil, tão acostumado a criar soluções aos trancos e barrancos para problemas estruturais.

Em 2023 — e nos anos seguintes — precisamos aprender o valor da recorrência no campo social. Nenhum dos problemas brasileiros será resolvido da noite para o dia. É preciso, como se diz, manter a faca entre os dentes e atacar, dia sim, dia também, cada uma de nossas mazelas.

Aprendi com um dos meus mentores, William Ury, antropólogo e negociador em conflitos de todos os tipos, que aquela sensação de que você já tentou de tudo para resolver um problema é ilusória. Ela indica, na verdade, que você terminou de explorar a “ponta do iceberg”. Só então é chegada a hora de descobrir as alternativas até o momento ocultas, inusitadas, disruptivas, mais complexas e ainda não testadas.

É preciso muita paciência e resiliência para alcançar essa zona. Neste ano novo, que a sociedade brasileira possa se engajar no trabalho social recorrente, de formiguinha, aquele que, no fim das contas, é o que provoca as mudanças mais radicais.

 

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