O Globo
Ações pontuais têm a sua importância, mas
elas jamais terão o mesmo impacto que o trabalho recorrente
Qual é a importância da recorrência quando
falamos de iniciativas solidárias? O assunto é tão decisivo para quem atua no
terceiro setor e, por extensão, para o futuro do país, que vale a pena começar
o ano dedicando uma coluna a ele.
Os problemas mais graves da sociedade brasileira são todos recorrentes. A pobreza, a fome, o racismo e a desigualdade nos acompanham há séculos. A violência urbana é uma velha conhecida de quem habita as grandes metrópoles. As enchentes que atingem periferias país afora, especialmente agora no verão, não são um fenômeno que começou há um ou dois anos. Nossa presença recorrente na lanterna dos rankings internacionais de educação, como o Pisa, já não surpreende ninguém.
Problemas sistêmicos, persistentes, não são
uma exclusividade brasileira. Basta pensar em temas como mudanças climáticas,
subdesenvolvimento no chamado “Terceiro Mundo”, guerras ou a desigualdade no
acesso a medicamentos, vacinas e demais tecnologias para perceber que os
grandes problemas globais, muitos deles acentuados durante a pandemia, também
são recorrentes.
Desafios desse tipo só podem ser superados
com ações também regulares, ininterruptas, persistentes. Num país cuja educação
pública é, em média, mal avaliada, o que explica os ótimos resultados de
Sobral, no Ceará? A cidade é um exemplo, dentre vários outros, de que o
trabalho recorrente dá frutos.
Essa é a mentalidade que precisa nortear as
ações solidárias. Seu engajamento em alguma causa, seu trabalho voluntário, sua
presença em conselhos de ONGs, suas doações e contribuições financeiras, sua
cobrança por melhores políticas públicas são recorrentes? Faço essas perguntas
a você porque, antes de tudo, eu mesmo reflito sobre elas todos os dias.
O amigo e filantropo Elie Horn me contou
certa vez que um dos motivos que o levam a continuar trabalhando é o seu
compromisso com algumas ONGs.
— Edu, elas precisam de contribuições
recorrentes para seguir transformando a vida das pessoas, então eu preciso
honrar esse combinado — disse ele.
Ações pontuais têm sua importância,
especialmente em momentos de crise aguda, mas elas jamais terão o mesmo impacto
que o trabalho recorrente. A constância é o que cria legado. Perceber essa
verdade talvez seja um dos maiores desafios culturais do Brasil, tão acostumado
a criar soluções aos trancos e barrancos para problemas estruturais.
Em 2023 — e nos anos seguintes — precisamos
aprender o valor da recorrência no campo social. Nenhum dos problemas
brasileiros será resolvido da noite para o dia. É preciso, como se diz, manter
a faca entre os dentes e atacar, dia sim, dia também, cada uma de nossas
mazelas.
Aprendi com um dos meus mentores, William
Ury, antropólogo e negociador em conflitos de todos os tipos, que aquela
sensação de que você já tentou de tudo para resolver um problema é ilusória.
Ela indica, na verdade, que você terminou de explorar a “ponta do iceberg”. Só
então é chegada a hora de descobrir as alternativas até o momento ocultas,
inusitadas, disruptivas, mais complexas e ainda não testadas.
É preciso muita paciência e resiliência
para alcançar essa zona. Neste ano novo, que a sociedade brasileira possa se
engajar no trabalho social recorrente, de formiguinha, aquele que, no fim das
contas, é o que provoca as mudanças mais radicais.
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