A dependência das receitas para gerar resultado primário, no curto prazo, preocupa, mas não anula os efeitos benéficos sobre a dinâmica fiscal derivados do controle do gasto público
O arcabouço fiscal do ministro Fernando
Haddad pode funcionar como uma espécie de freio ABS da dívida pública. Evita
travar as rodas do automóvel para garantir frenagens mais seguras, embora não
se deva prescindir de uma boa condução. A política fiscal também é assim:
combinação de regras e direção. Neste artigo, discuto três pontos: os efeitos
da nova regra de gastos sobre a trajetória da relação dívida/PIB, as
estimativas preliminares para a despesa do governo federal no primeiro ano do
novo modelo e as chamadas metas de resultado primário.
O programa anunciado tem dois eixos: uma trajetória para o resultado primário (receitas menos despesas sem contar os juros da dívida) e uma regra de gastos baseada em 70% da taxa de variação real da receita líquida do governo central. A proposta do governo é começar com um resultado primário igual a zero já em 2024. Isso requereria um esforço fiscal (aumento de receita ou corte de despesa) elevado entre 2023 e 2024. Contudo, mesmo sem ele, a aplicação da regra de gastos nas simulações melhora a trajetória de endividamento estimada.
A dívida/PIB poderia saltar dos atuais 73%
para 95% do PIB, em dez anos, sob premissas de crescimento econômico médio
pouco abaixo de 2% e taxas de juros reais médias em torno de 4,5% ao ano. Na
presença da nova regra para as despesas, a dívida continuaria a subir, mas a um
ritmo muito menor, ficando de 8 a 10 pontos porcentuais do PIB inferior ao
nível do cenário original no fim do período. É o freio em ação.
É possível sondar os efeitos da nova regra
aplicando-a retroativamente. No período de 2011 a 2022, desconsiderando as
despesas realizadas no âmbito do combate à covid-19, nos últimos três anos,
podemos recalcular a despesa primária pela regra do novo arcabouço e compará-la
à despesa efetivamente observada. A diferença entre uma e outra equivale à
economia atribuível à regra. O resultado, a preços de 2022, é um esforço
adicional médio estimado em R$ 64,6 bilhões ao ano.
Sobre a fixação de metas de resultado
primário, as bandas e a inserção da trajetória de saldo primário em lei
complementar são boas inovações. A vantagem da meta de resultado primário, que
existe desde 1999, é a relação direta com a sustentabilidade da dívida/PIB, já
que leva as receitas e as despesas. O problema da nova proposta é o tamanho do
ajuste: sair de um déficit de R$ 107,6 bilhões, em 2023 (estimativa do
governo), para zero, já em 2024. Depois, superávits de 0,5% e 1% do PIB em 2025
e 2026.
Das medidas anunciadas para as receitas,
Fernanda Castro e eu estimamos receita potencial de até R$ 65 bilhões
anualizados derivada da limitação de subvenções originadas em benefícios do
ICMS descontados pelas empresas do lucro apurado para recolhimento de tributos
federais. Isoladamente, mesmo que esses recursos entrassem integralmente em
2024, ainda restaria um déficit. De todo modo, a calibragem da meta de primário
não pode macular a análise da outra parte do arcabouço. Além disso, a contenção
do gasto discricionário (não obrigatório) pode ajudar a conter o déficit de
2024.
Em 2024, as despesas da previdência, hoje
em 44% do gasto primário, crescerão a 2,5% em termos reais; os gastos com
pessoal, em torno de 19%, devem avançar a 2%; o abono salarial, o
seguro-desemprego e o benefício de prestação continuada, uma fatia de 8%,
aumentarão a 2,5%; o Bolsa Família (8,5% da despesa), por sua vez, deve seguir
a inflação. Já as despesas discricionárias (9,6% do gasto), a partir do nível
alto de 2023, podem cair 4% em termos reais. A fatia de gastos remanescente, de
cerca de 11%, deverá crescer a 1,5% além da inflação.
Se confirmadas, essas estimativas levariam
a um aumento da despesa primária total, em 2024, de 1,5% em termos reais,
dentro do intervalo da nova regra: 0,6% a 2,5%. A receita líquida precisaria
crescer a 2,1%, uma vez que 70% disso resultaria justamente em 1,5%. Ocorre que
as projeções indicam um desempenho ruim para a arrecadação federal até o meio
deste ano, provável momento do cálculo da regra. No cenário mais restritivo, o
gasto teria de crescer pelo piso, de 0,6%.
Cabe lembrar que o atual teto de gastos foi
ampliado em R$ 145 bilhões em 2023, com mais R$ 24,1 bilhões por fora das
regras fiscais. Isso explica o nível alto orçado para as despesas
discricionárias, mesmo após a revisão bimestral, de mais de R$ 190 bilhões.
Projetamos uma despesa ao redor de R$ 170 bilhões para 2023, abaixo do
autorizado. Em 2024, se o governo fixar os gastos discricionários em nível
próximo ao de 2022 (cerca de R$ 15 bilhões inferior ao de 2023), a taxa de 0,6%
seria respeitada, tudo o mais constante. Esse crescimento equivaleria a 10% da
taxa média do biênio 2022-2023. No período de 2011 a 2019, a despesa cresceu a
2,3% ao ano em termos reais.
O arcabouço fiscal é bom. A dependência das
receitas para gerar resultado primário, no curto prazo, preocupa, mas não anula
os efeitos benéficos sobre a dinâmica fiscal derivados do controle do gasto
público. Daí meu otimismo cauteloso. Se preferir, esperançoso.
*Economista-chefe da Warren Rena, foi secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo e o primeiro diretor-executivo da IFI
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