Valor Econômico
Visita de Macron, que precedeu a de Lula,
vacinou reaproximação; e Brasil, além de investimentos, busca saída para a
crise Argentina
Se a sorte conspirou contra o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva no adiamento da viagem à China, veio agora em seu
socorro ao fazê-lo suceder ao presidente da França, Emmanuel Macron.
Depois de uma visita de três dias à China,
durante a qual permaneceu seis horas com o presidente Xi Jinping, Macron
embarcou de volta à França na companhia de três jornalistas.
Disse-lhes que a Europa não pode se enredar
em crises que não lhe pertencem sob pena de ferir sua autonomia e que a pior
coisa que poderia acontecer seria tornar os europeus meros seguidores dos
Estados Unidos em temas como Ucrânia e as relações entre China e Taiwan.
As declarações de Macron aconteceram em meio à escalada de tensões na ilha defendida pelos americanos e cuja soberania a China reclama. E não parou por aí. Também disse que a Europa deveria diminuir a dependência dos Estados Unidos em armas, energia e do que chamou de “extraterritorialidade” do dólar.
Macron foi além na aproximação com a China
mas o “Político” suprimiu partes da entrevista a pedido da assessoria do
presidente francês, não sem antes revelar o acordo, incomum na imprensa
americana e firmado a contragosto.
Lula não poderia desejar melhor missão
precursora. Macron tocou pelo mesmo diapasão da não ingerência e da multipolaridade
que, historicamente, pautam a diplomacia brasileira. Até no escanteio do dólar
nas transações comerciais com a China, que deve ser o principal resultado da
visita de Lula, o presidente francês convergiu.
A convergência das duas chancelarias vem
desde a campanha, quando Lula, candidato, teve recepção de chefe de Estado no
Palácio do Eliseu. E continuou a se estreitar depois da eleição. O bate-volta
do assessor especial da Presidência, Celso Amorim, a Moscou, na semana passada,
teve escala em Paris.
Depois do rolo compressor com o qual passou
nova reforma da Previdência, Macron valeu-se dos holofotes da política externa
para desviar-se das crises domésticas que enfrenta. Com uma fala dessas, a
principal liderança da União Europeia ofuscaria qualquer um, mas o serviço
prestado por Macron ao Brasil foi outro.
Ao tocar pelo mesmo diapasão, o presidente
francês “normaliza” a reaproximação do Brasil com a China. Funciona como uma
vacina contra a interpretação de que os resultados da visita de Lula a Xi
Jinping sejam vistos como uma “capitulação” do Brasil à China.
O fôlego proporcionado pelo desalinhamento
dos líderes europeu e sul-americano da rota das hostilidades sino-americanas
pode baixar a guarda também nas relações comerciais. Um empresário brasileiro
que tem negócios com a China há mais de duas décadas diz que a pandemia e a
guerra da Ucrânia tornaram os chineses mais ressabiados com os ocidentais. Na
relação com o Brasil acresça-se a esta equação o governo Jair Bolsonaro.
Além disso, o terceiro mandato de Xi
Jinping tem coincidido com uma concentração de poderes inaudita no Partido
Comunista. É a nova geração do partido, formada nas melhores universidades do
mundo, que está dando as cartas nas empresas. Ao alijar o dólar dos negócios
entre os dois países, o acordo a ser firmado aduba a confiança. Lula vai
precisar dela para além dos negócios da China.
Do início de março, quando a visita se
realizaria, para cá, Lula superou as desconfianças em torno do arcabouço fiscal
- inclusive as suas. Viu ainda os 100 dias de seu governo coincidirem com um
momento em que dólar, juro e inflação se curvam para baixo e o Centrão se
dividir em dois blocos que disputam qual deles é o mais governista.
Na conjuntura, a maior ameaça ao Brasil
hoje não parece vir do mercado ou do Congresso, mas da outra margem do rio da
Prata. Ninguém aposta que a Argentina sobreviva sem novo socorro nos sete meses
que a separam das eleições presidenciais.
Como o FMI já se transformou quase num
“banco da Argentina”, pela sucessão de socorros que tem prestado, a avaliação é
que o fundo já chegou no limite. Em sua visita à Argentina, a primeira de seu
governo, Lula sugeriu que não vai assistir à agonia dos ‘hermanos’ de braços
cruzados.
Por outro lado, o presidente do BNDES,
Aloizio Mercadante, já deixou claro que empréstimo para exportações brasileiras
à Argentina só acontecerão com retaguarda do Fundo de Garantia à Exportação,
cujos recursos são providos pelo Tesouro Nacional.
Tem canal aberto entre a Fazenda de
Fernando Haddad e a de Sergio Massa, ministro argentino, só não tem dinheiro.
Aí é que entra a China. Os chineses também aumentaram exponencialmente seus
empréstimos à Argentina, com lastro em petróleo, e firmaram um acordo entre
bancos centrais que permite trocas comercias sem que a Argentina tenha divisas
em dólar para honrá-las.
Não está claro como a China pode expandir
sua exposição na Argentina para tirar o país do atoleiro. Os chineses sinalizam
que pretendem aumentar ainda mais a presença no continente, o que não significa
que se movam pela benemerência.
O lítio, insumo das baterias de carros
elétricos, que tem na Bolívia, no Chile e na Argentina suas maiores reservas
mundiais é um exemplo disso. Apesar de ser seu maior comprador, a China também
desenvolve uma alternativa ao minério, uma das razões pelas quais seu preço
despencou e a Bolívia passasse a defender uma “Opep do lítio”.
O Brasil não tem lítio mas vive um
eletrizante problema na sua fronteira. O governo não tem como pregar
responsabilidade fiscal se despejar dinheiro no vizinho. Nem tem como escapar
da contaminação de uma quebradeira. Até porque a extrema direita avança na
sucessão de Alberto Fernandez.
Fernando Haddad e o secretário-executivo da
Fazenda, Gabriel Galípolo, já defenderam, em artigo, a criação de uma moeda
sul-americana para impulsionar o comércio no continente. Mas hoje a solução
parece convergir para o real como âncora da economia argentina. É tudo menos
simples. Implicaria quase uma terceirização da política monetária argentina
para o BC brasileiro que, na avaliação de Livio Ribeiro (FGV), exporia o real a
ataques especulativos.
Nada disso consta dos memorandos a serem
assinados pelo Brasil, mas a adesão da Argentina aos Brics pode constar da
conversa entre Lula e Xi Jinping. Isso não significa que o banco do bloco, a
ser comandado pela ex-presidente Dilma Rousseff, poderia entrar na equação, mas
atrai a China para a busca de uma solução. Ou, no limite, para evitar que o
Brasil entre nas águas revoltas do Prata sem uma boia de salvação.
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