Valor Econômico
Em vários segmentos, a contribuição do rico
ecossistema de serviços pode ser superior à do chão de fábrica
O iPhone é um produto industrial ou um
serviço? Como o iPhone é produzido com alumínio, plásticos e outros materiais e
é fabricado numa típica linha de montagem, então, muitos diriam, é um produto
industrial. Mas como a maior parte do valor adicionado do iPhone remunera
serviços como P&D, softwares embarcados, funcionalidades, marca, design e
distribuição, então, muitos diriam, é essencialmente um serviço. Do ponto de
vista do usuário, iPhone sem softwares não tem valor, e o mesmo é válido para
softwares sem equipamento físico para acessá-los. Esse aparente imbróglio
conceitual destaca uma das características da moderna atividade industrial,
qual seja, a íntima combinação da indústria com serviços numa relação de mútua
dependência para criar valor e a dificuldade para se identificar a linha
divisória que separa as duas atividades.
Mas nem sempre foi assim. A história econômica de países como Inglaterra e Estados Unidos mostra que, ao longo do século XIX e primeira metade do século XX, a maior parte das etapas da produção de um determinado bem estava concentrada no próprio chão de fábrica, o que ajuda a explicar o então rápido aumento da participação da indústria no PIB. Mas a história econômica também mostra que o aumento da relevância da indústria seria acompanhado da introdução de novas tecnologias e inovações e de novos modelos operacionais.
O outsourcing de etapas da produção
entraria em cena e muito do que até então era próprio da atividade industrial
pouco a pouco se converteria em serviços descentralizados prestados por
terceiros, dando fulcro a uma crescente complementaridade e interação funcional
entre indústria e serviços que elevaria o valor adicionado total, ao tempo em
que reduziria a participação relativa da manufatura no PIB.
O estágio atual do desenvolvimento
industrial em vários países avançados é reflexo daquele padrão: indústria
modesta acompanhada de elevada densidade de laboratórios de P&D,
universidades engajadas com a indústria, serviços avançados de distribuição,
marcas, marketing, serviços financeiros e tantos outros serviços específicos
voltados para a agregação de valor industrial. De fato, em vários segmentos, a
contribuição desse rico ecossistema de serviços pode ser muito superior à
contribuição do chão de fábrica.
Os Estados Unidos são um exemplo
ilustrativo. Muito embora a manufatura representasse apenas 12% do PIB em 2021,
a atividade industrial, incluindo aquele ecossistema, era ao menos 2,5 vezes
maior, respondia por nada menos que 66% dos investimentos privados totais em
P&D e foi uma das principais responsáveis pela recuperação da economia
americana na crise financeira de 2008 e na fase pós-pandemia. O setor industrial
como um todo tem, portanto, grande influência nos destinos da economia
americana.
Países de industrialização tardia, como a
Coreia do Sul, vêm perseguindo aquele mesmo modelo de desenvolvimento
industrial. Embora a indústria ainda participasse com elevados 26% do PIB em
2021, são as tecnolo gias, inovações e outros serviços que estão determinando,
e cada vez mais, a verdadeira influência do setor industrial. Como resultado,
marcas coreanas de produtos tecnologicamente avançados, como autos, chips e
eletrônicos, já competem em nível global e já até assumiram a liderança em
alguns segmentos.
Na China, a indústria responde por 27,5% do
PIB, mas cada vez mais a influência do setor industrial é determinada pelo
desenvolvimento tecnológico, marcas, redes de distribuição e outros serviços. É
provável que a participação da manufatura no PIB de ambos os países diminua nos
próximos anos, mas também é provável que aumente a influência da atividade
industrial.
Essa discussão parece pertinente num
contexto em que a política industrial está retornando, e com força, às
políticas públicas. Até mesmo países desenvolvidos que até pouco tempo atrás se
opunham às políticas industriais estão, agora, buscando aumentar a produção
manufatureira local, inclusive com medidas intervencionistas e protecionistas e
com subsídios generosos. Exemplos não faltam. Considere o Inflation Reduction
Act, o Chips and Science Act, o Buy American Act ou o Reshoring, dos Estados
Unidos; ou considere o Green Deal Investment Plan, o Critical Materials Plan, o
Next Generation EU ou o Made in Europe Partnership, da União Europeia. É
provável que essas políticas sejam bem-sucedidas em promover o aumento da
produção industrial, mas é a disponibilidade de um ecossistema industrial
pujante e inovador que fará a diferença.
Países emergentes também estão buscando
maior protagonismo industrial. Índia, Indonésia, México, Vietnã, Brasil, Costa
Rica, Honduras, Chile e tantos outros perseguem esta trilha. Mas poderão eles
competir com países ricos? A relativamente modesta capacidade financeira para
prover apoio fiscal e a indisponibilidade de um comparável ecossistema de
serviços industriais os colocam em desvantagem e condena alguns países a se
limitarem a acolher maquilas.
A esta altura, para competir e ter um lugar
ao sol na indústria global, será necessário focar e concentrar esforços para
desenvolver tecnologias, inovações, logística, marcas e tantos outros serviços
industriais, bem como trabalhar nos fatores habilitadores que viabilizem a
industrialização das vantagens comparativas e competitivas de cada país.
Afinal, ali residem as melhores e mais plausíveis oportunidades dos países
emergentes.
No caso, da América Latina, por exemplo,
deveriam ser consideradas, dentre outras, a industrialização do agro, pecuária,
pesca, mineração, terras raras, florestas e a bioeconomia, bem como a
industrialização por meio das energias verdes e renováveis e dos
biocombustíveis, tal como defende a estratégia de negócios do powershoring.
Para ter mais chances de sucesso, a
política industrial de países emergentes terá que ser pragmática, mirar alvos
com olhos de águia e promover o desenvolvimento de um ecossistema industrial,
que é elemento fundamental para uma transformação produtiva sólida,
autossustentada e competitiva.
*Jorge Arbache é vice-presidente de setor privado do Banco de Desenvolvimento da América Latina.
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