quinta-feira, 13 de abril de 2023

Carlos Melo* - Governo Lula: sob o espírito dos paradoxos

O Globo

Volta do país da Idade Média para o presente é uma boa notícia. Mas nenhum governo pode se contentar só em ‘não ser’. Sem afirmação, cai

Um espírito ronda o governo Lula — o espírito dos paradoxos. O fardo transforma-se em ativo. O campo fértil vira brejo. A idiossincrasia petista robusteceu. Da experiência e moderação esperadas, nasce um torvelinho de provocações. O que se desmancharia no ar — a relação com autocracias mundiais — se solidifica. Sólido, o apoio dos Estados Unidos e da Europa pode evaporar. A esperança acena à precipitada decepção.

A nostalgia enganadora; arriscado é regressar para onde se foi feliz. De 2003 a 2010, Lula e o Brasil viveram tempos extraordinários. Vencida a eleição, o filho pródigo voltou à casa. Mas nem ele nem o pai são os mesmos. Desapontamentos vêm a galope. Certo, é bobagem desanimar: há mais de 1.300 dias pela frente. Mas não se pode negar o surpreendente desperdício de oportunidades. O presidente cercou-se de contradições.

A tragédia do legado de Jair Bolsonaro é do conhecimento de quem tem olhos de ver. A destruição de ontem exige, hoje, a rearticulação de políticas públicas. A fortuna tem ajudado Lula a transformar limões em limonada para o governo.

O Brasil saiu da truculência para a democracia; da destruição ambiental à recomposição das relações internacionais. Da fila do osso à assistência social, do desprezo aos direitos humanos à Justiça; da desorganização dos orçamentos à concertação das finanças públicas. São imperativos. Lula não é Bolsonaro, a alegada simetria revelou-se fake.

Mas essa herança maldita verdadeira tem servido para justificar e proteger. Nos cem dias de mandato, comemorou-se — com maior entusiasmo — o adeus a Bolsonaro. O Brasil retorna de uma viagem à Idade Média, onde esteve cercado de brutos. Sua volta ao presente é uma boa notícia. Mas nenhum governo pode se contentar apenas em “não ser”. Sem afirmação, cai.

O espírito de uma frente ampla, determinante na eleição, foi abandonado. Novamente, o PT acha feio o que não tem seu rosto. Setores políticos e sociais, democráticos e de centro — mesmo da direita democrática — não foram conectados. Sós, Geraldo Alckmin e Simone Tebet são o máximo denominador comum de dois mundos, o limite possível da abertura. É pouco.

O Centrão, que blindou Jair Bolsonaro, foi reassimilado. É a cruz do presidencialismo de coalizão brasileiro de sempre, renovada pela imposição de regras do patrimonialismo. Agora, nem o domínio de três ministérios é capaz de garantir compromissos. Fernando Henrique Cardoso dizia que tucanos e petistas disputavam quem lideraria o atraso. Hoje, é o PSDB liderado pelo atraso. O PT parece ir pela mesma servidão.

A impressionante receptividade internacional a Lula parece que o anima a se meter nas geleiras do dissenso internacional. Enquanto não há paz no próprio país, envolve-se com a delicada guerra na Ucrânia e aproxima o Brasil da autocracia de um Vladmir Putin que habita o planeta de Jair Bolsonaro, não o seu.

Fernando Haddad em dezembro era demonizado pelo mercado, transformou-se em seu avatar; uma brecha para negociação de consensos possíveis. Sofre agora, todavia, com os exorcistas do PT. O fogo amigo é fastidioso, soma zero. A obsessão agressiva contra Haddad só tem nexo nas mesquinharias internas.

Salvaguarda de moderação e racionalidade, Lula prometia ser vacina contra a doença do esquerdismo. Metamorfoseou-se em seu oposto e, às vezes pueril, não se constrange em estimulá-la. Assim, não isola o bolsonarismo, não pacifica o país. Na falta de porta-voz oficial — ou oficioso —, debruça-se sobre novos cercadinhos. Tem sido o porta-desaforos do governo. Uma política de comunicação que faz lembrar Ciro Gomes.

A História é dinâmica. Há tempo e razão para que o governo pare de atirar no próprio pé. Não sendo Lula 1, Lula 2, nem Dilma, Lula 3 pode se reinventar ao compreender as novas circunstâncias. O presidente carece de um núcleo duro auxiliar, pleno de racionalidade e compreensão do momento. Capaz de mostrar-lhe estes e outros paradoxos, convencendo-o a se reconectar à Grande Política.

*Carlos Melo, cientista político, é professor senior fellow do Insper

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