Marcelo Godoy / O Estado de S. Paulo
Para pesquisador, símbolos da Lava Jato revestiram ‘projeto arbitrário’ como algo positivo Cientista político, é professor da USP e da FGV. Autor do livro ‘Operação Impeachment: Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato’
“A classe política não é a escória da
sociedade. O que há de pior também está no Judiciário, no Ministério Público,
em todo lugar”
O impeachment é um processo excepcional,
cujas consequências são incomensuráveis. A afirmação do cientista político
Fernando Limongi está logo na introdução de seu livro Operação Impeachment,
Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato (editora Todavia, 304 págs., R$ 84,90).
Investigar o papel dos principais atores da crise que tirou o PT do poder e
pavimentou o caminho para a ascensão de Jair Bolsonaro (PL) revela ao mesmo
tempo os diversos projetos de políticos e de grupos sem os quais o processo que
convulsionou o Brasil seria ininteligível. Professor da Universidade de São
Paulo (USP) e da Fundação Getulio Vargas (FGV), Limongi diz que esquerda e
direita queriam capturar a Lava Jato, que, por sua vez, tinha seu próprio
projeto de poder.
Leia a seguir trechos da entrevista:
Por que as disputas em torno do combate à
corrupção são importantes para entender a queda de Dilma?
Essas disputas ganharam relevância enorme
no Brasil e no mundo. Quem cria a Transparência Internacional é um
exfuncionário do Banco Mundial responsável pelas reformas liberalizantes na
Europa do Leste. O projeto fez água e eles precisaram de uma explicação: os
agentes não se comportavam como deveriam. No Brasil, vários elementos fazem a
corrupção se tornar um tema candente. No final do governo de Fernando Henrique,
uma série de denúncias coloca essa preocupação no centro do debate. É quando o
PT se apresenta como alternativa moderna, limpa, que não recorreria a essas
práticas. Isso explica em parte a vitória de Lula em 2002. O evento seguinte é
o mensalão, quando os pés de barro do PT aparecem. Por um momento o PT
acreditara que poderia arrecadar fundos com os militantes. A ficha caiu e ele
percebeu que o modelo era inviável. Começou a arrecadar fundos da forma como
sempre se arrecadava, no Brasil e no mundo.
Mas como essas disputas em torno da pauta
do combate à corrupção levaram à queda de Dilma?
A decisão crucial da Dilma foi de limpar a
Petrobras. A tradição era que a empresa fosse fonte de recursos para o sistema
político. Ela resolve tornar a empresa eficiente, a base da industrialização
nacional a partir do pré-sal. Demite Paulo Roberto Costa, Jorge Zelada e Renato
Duque, as três principais diretorias da Petrobras, cada uma com um partido.
Esses três serão as três forças que vão alimentar a Lava Jato, que se ocupa, no
começo, do primeiro e do segundo governo Lula. A força-tarefa estava
investigando o passado, mas sempre escrevia no presente, fazendo um truque
retórico genial. A intervenção da Dilma gera um conflito interno na coalizão
governante. Quem perdeu recursos na Petrobras reagirá.
O historiador Christopher Clark usa a
imagem dos “sonâmbulos” para descrever como a elite na Europa caminhou em
direção ao abismo em 1914. Pode-se dizer que Dilma, Eduardo Cunha, Aécio Neves
e outros se comportaram da mesma forma, rumaram para a catástrofe sem se darem
conta?
A ideia é essa. Achavam que conseguiriam
controlar a Lava Jato. Dilma estimula as investigações para se vingar dos seus
adversários, que reagiram à limpeza na Petrobras. Ela estava enfrentando o
Eduardo Cunha e a Construindo um Novo Brasil (CNB, corrente interna do PT). O
Aécio está pensando na eleição de 2018. Os movimentos de apoio de última hora à
candidatura dele em 2014 e a militância que saiu à rua dão a perspectiva de
usar os manifestantes como arma para vencer o combate interno com Geraldo
Alckmin.
Aí entra um personagem fundamental, a Lava
Jato.
Em dezembro de 2015, o Rodrigo Janot monta
a prisão do (senador) Delcídio (Amaral), que é o catalisador que desestrutura o
sistema político pela primeira vez. A segunda vez será em fevereiro, quando a
Lava Jato faz a Operação Acarajé e desestrutura o que seria o acordão entre os
políticos.
A Lava Jato não trazia dentro de si a
antipolítica, uma corrente que se reclama como antissistema? Ela se entrelaçou
com a antipolítica à esquerda e à direita?
O MPF e o Poder Judiciário têm uma
concepção própria do mundo político, que vê muito negativamente o processo
eleitoral. Temos duas autoridades competindo pelo poder. Uma chega ao cargo por
concurso, que são promotores e juízes, e outra que chega por meio (do processo)
eleitoral, que são os legisladores e os chefes de Executivo. O artigo original
do Sérgio Moro, em que ele afirma a concepção do que seria a Lava Jato a partir
da Operação Mãos Limpas, é uma visão que coloca o MP e a Justiça Federal como
grandes censores do sistema político, uma agência da moralidade e do respeito à
coisa pública.
Censores dentro de uma tradição romana?
Uma tradição bem antiga, que tem a ver com
o renascimento do republicanismo clássico no debate político contemporâneo:
essa ideia de que a moralidade é central. E que a moralidade dos agentes
públicos tem de ser vigiada e controlada por alguém que tem o poder para
puni-los. Esse alguém não é o eleitor, porque ele é incapaz. Essa visão tem um
menosprezo, uma deslegitimação de todo o sistema político-eleitoral. É a visão
dos funcionários públicos que chegam a cargos de poder por meio de concurso. Há
uma competição entre o Judiciário e o Ministério Público e os eleitos. O
projeto do MPF é assumir essa posição de grande censor. Está consubstanciado
nas dez medidas contra a corrupção. Esse é o projeto que vai dar o apoio à Lava
Jato.
Existiria um partido da Lava Jato?
Não. Tem um caldo de cultura que pode enveredar por várias correntes. Moro e Deltan Dallagnol não eram desde sempre bolsonaristas. Jair Bolsonaro é a chance de fazer o projeto deles, por isso Moro aceita ser ministro. Mas pensar que isso é só oportunismo é minimizar. Há uma filosofia, que é a visão tecnocrática de que político é tudo lixo e, sobretudo, uma ideia de que uma boa Justiça é punição rápida, imediata e eficaz. Todos os anteparos que o liberalismo criou para evitar injustiças caem por terra. É um projeto profundamente antiliberal o de Moro e o de Dallagnol. O que me chama a atenção é como a gente pôde simpatizar com ele, o quanto eles conseguiram construir um projeto totalmente antiliberal e arbitrário e revesti-lo como algo positivo. O poder e a soberania têm de estar nas mãos dos políticos eleitos. A classe política não é a escória da sociedade. O que há de pior também está no Judiciário, no Ministério Público, em todo lugar. Ninguém tem o monopólio do saber ou pode reivindicar o papel de empurrar a história. Não cabe a ninguém fazer isso. Se couber a alguém, cabe aos políticos eleitos. Quem é eleito não é a escória. Você pode não gostar, mas o mandato dele é melhor do que qualquer outro, pois ele é renovável. Você pode demiti-lo. Perdeu, ponha a viola no saco e aguenta. É o que temos para hoje e o que funciona melhor.
Um comentário:
Essa análise parece compactuar com as ideias de que:
- a lei não vale para todos;
- eleições equivalem a um excludente de ilicitude para políticos;
- o desvio de recursos públicos para financiar eleições não macula gravemente o próprio processo eleitoral;
- o financiamento ilegal das campanhas não se traduz na captura do poder político pelo poder econômico e que
- os desvios de recursos públicos pelo conluio de políticos com empresas que fraudam a concorrência e os sistemas licitatórios, superfaturando
os bens e serviços fornecidos, não tem grave impacto nas contas públicas e na capacidade dos serviços públicos atenderem a sociedade.
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