Valor Econômico
Proposta abre ‘porteira para o
desconhecido’ uma vez que dívidas com fornecedores não são facilmente aferidas
“Fica
permitida a arrecadação de recursos de pessoas jurídicas por partido político,
em qualquer instância, para quitar dívidas com fornecedores contraídas ou
assumidas até agosto de 2015”. O financiamento de empresas a partidos estará de
volta, sem alarde, caso a proposta de emenda constitucional (PEC) 9, em
tramitação no Congresso Nacional, seja aprovada.
A brecha está no último ponto do artigo
primeiro da PEC 9, muito polêmica pelos dois pontos anteriores, que estabelecem
anistia (pela quarta vez) aos partidos que não tiverem cumprido as cotas
mínimas de gênero e raça ou que tiverem recebido “sanções de qualquer natureza”
em prestações de contas ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Tamanha celeuma a PEC 9 despertou pelo “liberou geral” das duas primeiras mudanças legais propostas, que tornam letra morta a fixação de cotas para mulheres e negros, que pouca atenção é dada à terceira inovação. Um alerta foi feito de modo lateral por debatedores de audiência pública realizada na Câmara dos Deputados na terça (29). O que está sendo proposto não é trivial.
O financiamento privado por pessoas
jurídicas foi bloqueado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em setembro de
2015, diante da constatação que o mecanismo proporcionava uma espécie de
disfarce de pagamento de propinas. Uma empresa “doava” recursos a um partido ou
a um candidato para ser favorecida na redação de uma alteração de medida
provisória, na destinação de verba pública para alguma obra, na liberação de um
pagamento.
Os escândalos que vieram à tona entre 2014
e 2018- hoje relativizados por uma reescrita da história que joga no lixo todo
o acervo de revelações da época- fizeram com que fosse instituído como padrão o
financiamento de campanhas pelo fundo eleitoral e por doações de pessoas
físicas, muito menos relevantes do que foram as de pessoas jurídicas.
Este artigo da PEC 9, em tese, é
delimitado: permite arrecadação de partidos junto a empresas para pagar um
determinado tipo de dívida- com fornecedores- assumidas ou contraídas até
agosto de 2015, antes portanto da decisão do STF. Não é possível usar fundos
públicos para pagar dívida de fornecedor contraída na regra antiga. Para pagar
dívidas assim, os partidos dependem de doações de pessoa física, historicamente
difíceis. Credores também estão encontrando dificuldades para penhorar bens ou
as contas dos partidos. Daí a justificativa apresentada para o dispositivo:
facilitar a liquidação dessas faturas.
Na prática, abre-se uma porteira para o
desconhecido. Dívidas decorrentes de multas e sanções da justiça eleitoral são
auditáveis e facilmente aferidas. Dívidas com fornecedores não. “A prestação de
contas de partidos antes de 2015 era feita de maneira física, sem padronização.
As informações estão todas desorganizadas. O texto fala em dívidas de qualquer
instância, inclusive na municipal. Não tem como controlar”, afirmou ao Valor um dos debatedores
da audiência pública, Guilherme France, gerente de pesquisa da Transparência
Internacional.
Tecnicamente será difícil detectar fraudes.
Corre-se o risco de aparecerem agora documentos de assunção de dívidas
anteriores a 2015, para lavar recolhimento indevido de recursos. O texto é tão
lacônico que deixa margem a um oceano de dúvidas: que empresas poderão doar a
partidos para o pagamento dessas dívidas? Que limite poderá ser doado em
relação ao faturamento da empresa? De que forma? Com que publicidade? Como será
a prestação de contas?
“Não há linha de corte cronológico
objetiva, não está fixado teto limitador para os valores. Não há suficiente
transparência”, disse na audiência Leandro Rosa, presidente da Comissão Eleitoral
da OAB do Paraná.
Quem defende a PEC não explica como irá
funcionar essa volta do financiamento privado. “Ainda não escrevi o meu
parecer. Você vai ter que esperar, ok?”, disse, em tom de deboche, o relator da
PEC, deputado Antônio Carlos Rodrigues (PL-SP). “Todas essas dívidas são
públicas. Estão todas nos balancetes dos partidos”, disse o deputado Áureo
Ribeiro (Solidariedade-RJ), que reconhece que não há ideia sobre o montante
envolvido. “São 35 partidos, mais de 5 mil municípios. Não existe estrutura
para captar essas informações. Todo mundo sofre desse problema. A gente
descobre essas coisas depois”, disse.
Uma leitura da história recente permite
dimensionar o que poderá estar por vir. Esta coluna não conseguiu encontrar
relatório disponível sobre o total das despesas das eleições de 2014, a última
disputa geral antes da nova regra. Levantamentos feitos à época apontavam para
a existência de nada menos que 1 milhão de fornecedores de serviços para os
25.561 candidatos que disputaram aquele pleito. Foi a eleição mais cara de
todos os tempos.
Dívidas de campanhas passadas geraram
cobranças que foram judicializadas e ainda geram honorários para advogados que
se debruçam sobre os processos. Os montantes envolvidos não são pequenos. Para
citar dois exemplos: o PT paulista se defende no STJ de uma cobrança de um
fornecedor da campanha de 2014 para governador. O valor da causa é R$ 20,1
milhões. Mas tem esqueletos mais antigos neste armário.
Nessa quarta-feira o PSDB paulista teve um agravo de instrumento negado no Tribunal de Justiça de São Paulo. O partido está sendo cobrado por um marqueteiro em relação a uma dívida de campanha da eleição para a prefeitura da capital paulista em 2012. Valor da causa: R$ 17 milhões.
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