sexta-feira, 1 de setembro de 2023

O que a mídia pensa: editoriais / opiniões

Meta fiscal do Orçamento é pouco realista

O Globo

Para cumprir compromisso de zerar déficit, governo aposta em receitas incertas em vez de cortar despesas

A primeira versão do Orçamento de 2024 encaminhada ao Congresso revela o tamanho do desafio que o próprio governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva se impôs: obter receitas adicionais da ordem de R$ 168 bilhões para cumprir a meta de zerar o déficit no ano que vem. É uma meta que se mostra pouco realista quando confrontada com o resultado fiscal dos últimos meses.

A gastança neste ano tem batido recordes. O governo federal fechou julho com déficit de R$ 35,9 bilhões, o segundo pior resultado para o mês na série histórica iniciada em 1997. Nos sete primeiros meses de 2023, as contas ficaram R$ 78,2 bilhões no vermelho, ante resultado positivo de R$ 73,2 bilhões no mesmo período de 2022. As despesas cresceram 8,7% em termos reais, ante queda de 5,3% nas receitas.

O gasto elevado foi resultado da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, uma licença para gastar R$ 168,9 bilhões adicionais aprovada a pedido do PT. A intenção era tornar permanentes os valores do então Auxílio Brasil, que voltou a se chamar Bolsa Família, e recompor gastos sociais. A Fazenda prometeu manter o déficit deste ano perto de R$ 100 bilhões, mas o último relatório do Ministério do Planejamento elevou a previsão para R$ 145,4 bilhões, ao redor de 1,4% do PIB.

Basta refletir sobre os números para entender a distância que separa a ambição do governo da realidade. O arcabouço fiscal recém-aprovado pelo Congresso impõe aumento real nas despesas em qualquer cenário (no mínimo 0,6% além da inflação). A única forma de zerar o déficit como prometido será encontrar as tais receitas adicionais que somem R$ 168 bilhões.

No papel, o plano pode convencer os crédulos. Na prática, encontrará uma série de barreiras. Embora o governo tenha reconquistado nesta semana no Congresso o direito de vencer disputas tributárias em caso de empate nos julgamentos, é incerto quanto isso representará no caixa da União. Mesmo que confirmada a estimativa dos ganhos para o Tesouro em torno de R$ 54 bilhões, novas fontes de receita serão necessárias, muitas para lá de incertas. Dificilmente o Congresso aprovará tudo exatamente como o governo almeja, a começar pela taxação de fundos exclusivos fechados e offshore apresentada nesta semana. Entre as iniciativas que ainda deverão chegar ao Parlamento, está a regulamentação de aspectos da cobrança de ICMS.

Tem sido louvável o compromisso do governo, em particular do Ministério da Fazenda, com a responsabilidade fiscal, sobretudo levando em conta o desprezo pelas contas públicas que acomete setores do PT. Mas os números deixam claro que será impossível conciliar todas as promessas de Lula na campanha com os recursos disponíveis. A dificuldade tem levado parlamentares governistas a sugerir o adiamento do ajuste fiscal. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, chegou a formular uma proposta descabida para mudar o cálculo das metas.

Nenhum malabarismo contábil, porém, terá o condão de esconder a realidade: se o compromisso fiscal for mesmo para valer, em algum momento o governo terá de se dedicar à penosa tarefa de decidir que gastos cortar. Ignorar os fatos e aderir ao plano disparatado de adiar ou mudar as metas equivalerá a pôr em xeque a confiança na palavra de Lula e a credibilidade econômica do governo, conquistada com a aprovação do arcabouço fiscal.

Aumento nos casos de Covid impõe maior urgência na vacinação

O Globo

Menos de 16% tomaram vacina capaz de proteger contra novas variantes, quando o ideal seria 95%

O aumento nos casos de Covid-19 nas últimas semanas fez voltar ao radar das autoridades de saúde um problema que parecia esquecido. Os testes positivos para o coronavírus mais que dobraram entre a primeira e a terceira semana de agosto, segundo a Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed). Números parecidos foram detectados pelo Instituto Todos pela Saúde (ITpS): crescimento de 7% para 15,3% entre 22 de julho e 19 de agosto.

Cautelosos, os cientistas evitam atribuir os novos casos à variante EG.5, sublinhagem da Ômicron conhecida como Éris, mas a alta coincide com a chegada dela ao país. No último dia 18, o Ministério da Saúde confirmou em São Paulo o primeiro caso. Depois houve notificações no Distrito Federal e no Rio de Janeiro. Tudo dentro do esperado. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Éris tornou-se predominante no mundo, tendo sido registrada em pelo menos 51 países.

Apesar de altamente transmissível, ela foi classificada como variante “de interesse”, não “de preocupação”. Não há evidência de que provoque mais hospitalizações ou mais mortes. Ainda que se torne dominante no Brasil e que os casos subam, não há motivo para pânico. Graças à vacinação em massa, a pandemia está sob controle. Altas e baixas ocasionais nos números são esperadas. Novos vírus e novas variantes estarão sempre à espreita.

Diante do aumento de casos, algumas instituições têm retomado medidas de prevenção, como a obrigatoriedade do uso de máscaras. É um exagero. Máscaras são indicadas apenas para os mais vulneráveis. Para o público, a melhor forma de se proteger é procurar os postos de vacinação, onde as doses estão disponíveis gratuitamente.

Pode surpreender, mas vacinar a população se tornou um problema mais desafiador que a doença em si. Apesar da tragédia que o Brasil viveu, com mais de 700 mil mortes, a imunização com a vacina bivalente — recomendada para subvariantes da Ômicron — tem sido decepcionante. Menos de 16% do público-alvo está protegido, quando o ideal seria 95%. O percentual esconde disparidades. São Paulo vacinou 20,8%, Roraima apenas 6,7%.

É compreensível que a volta à normalidade depois de um período difícil de restrições crie a falsa sensação de que não há mais riscos. Isso acontece também com outras doenças controladas pela vacinação. Mas o coronavírus não foi embora, e as variantes continuam a surgir. Felizmente, o mundo tem uma arma poderosa para combatê-lo, a vacina. É essencial tomar as doses recomendadas para que se mantenha o cenário de tranquilidade.

Ao mesmo tempo, Ministério da Saúde, estados e municípios precisam se empenhar mais. O governo deveria implementar uma política nacional para aplicar os reforços em quem tomou as demais doses — com busca ativa do público-alvo se necessário. O Brasil tem vasta experiência de sucesso em campanhas de vacinação, não pode se contentar com desempenho tão sofrível num caso tão evidente.

Mesmo com juro alto, EUA demoram a desacelerar

Valor Econômico

Com a inflação ainda longe da meta, não será surpresa se o Fed elevar os juros no curto prazo, ainda que não na reunião de 20 de setembro

Após quase um ano e meio de alta de juros e de uma política monetária contracionista, a economia americana continua a exibir uma intrigante e incômoda vitalidade. No ciclo mais rápido de elevação das taxas em 40 anos, o desemprego mal aumentou, o mercado de trabalho continua aquecido, o consumo segue vigoroso e a inflação resiste a cair. Os dados divulgados ontem contradizem alguns anteriores. O PIB americano do segundo trimestre foi revisto para baixo, a um crescimento anual de 2%. O consumo no mês de julho, porém, subiu acima da expectativa, para 0,8% e, mais preocupante, a inflação medida pelos gastos pessoais de consumo, a preferida do Federal Reserve, assim como seu núcleo, aumentou. O PCE avançou de 3% para 3,3%, e o núcleo, que exclui as variações de alimentos e energia, foi de 4,1% para 4,2% em um ano.

Dados pontuais não mudarão a orientação do BC americano que, já bastante avançado no ciclo de aperto, com juros a 5,5%, reafirmou que procederá com muita cautela nas próximas reuniões diante do dilema entre não subir mais os juros e ratificar uma inflação que se encontra ainda muito acima da meta de 2% ou subir mais as taxas, o que poderia causar danos desnecessários à economia. Boa parte dos investidores aposta que os juros não subirão mais, a inflação vai cair e a economia realizará um “pouso suave”, evitando a recessão. O Fed não compartilha dessa visão, mas também não a descarta.

A mais recente visão do futuro da política monetária foi delineada por Jerome Powell, presidente do banco, em encontro anual em Jackson Hole. Qualitativamente, o discurso de Powell não difere da ata da ultima reunião do Fed. Há a promessa de que o banco não esmorecerá até que a inflação rume claramente para a meta - e a certeza de que isto ainda levará algum tempo para ocorrer. Uma das dúvidas é se a dose de juros já aplicada é suficiente para atingir o objetivo, dada as defasagens de tempo entre o aumento e seus efeitos econômicos, ou se serão necessárias doses adicionais. “Estamos navegando guiado pelas estrelas com um céu carregado de nuvens”, resumiu Powell.

O mapa da conduta da inflação desenhado por Powell é conhecido. Até agora, a inflação de bens, com o aperto monetário, declinou forte e rapidamente. O mesmo desempenho não teve a inflação do setor imobiliário, mas o presidente do Fed acredita que o aumento das hipotecas, que atingiram 7% ao ano, reduzirá a variação dos preços no setor. O problema principal está localizado no setor de serviços não-residenciais (saúde, acomodações, transportes etc), com uma variação de preços tida no máximo como “modesta”. Esse tipo de serviços compõe metade do núcleo de inflação dos gastos pessoais e seu recuo é vital para que a inflação volte a ser bem comportada.

A dificuldade reside no fato de que os serviços não residenciais respondem pouco a eventuais gargalos de oferta nas cadeias produtivas, são em geral menos sensíveis à taxa de juros e intensivos em trabalho. Ao mesmo tempo, são altamente influenciáveis pela renda disponível e pela situação do mercado de trabalho. Há progressos, mas lentos, nesses dois indicadores.

Segundo Powell, a pressão sobre a folha de pagamentos diminuiu, enquanto que a semana de trabalho média e o número de horas trabalhadas deixou de crescer. Ainda que os reajustes salariais tenham se moderado, o salário real, segundo Powell, “está subindo porque a inflação caiu”. O Fed espera que os reajustes de salários se adequem a ritmo compatível com a meta de inflação - algo como 3,5% ao ano. Eles atingiram o pico de 5,9% em março de 2022 e recuaram a 4,4% ao ano em julho passado. Não há como isso ocorrer sem desaquecimento pelo menos moderado do emprego, que ainda não veio.

O cenário risonho de uma queda por gravidade da inflação a partir de agora é o menos provável. O avanço do consumo em julho foi forte, mas pode arrefecer em seguida. A consultoria Oxford Economics aposta nisso, e em uma recessão leve a partir do último trimestre, porque a renda pessoal em julho subiu apenas 0,2% e a disponível não variou. A conclusão: é a poupança feita durante a pandemia que está impulsionando os gastos e ela está perto do esgotamento. Essa poupança atingiu 35% da renda pessoal no pico da pandemia e em julho caiu a 3,5%. Se esse cenário se confirmar, o Fed não teria mais motivo nenhum para aumentar os juros e começaria a cortá-los em meados de 2024.

A economia tem resistido aos juros altos por outro motivo, que é mencionado eventualmente e com discrição nas atas do Fed, que, por princípio, é muito comedido ao comentar assuntos sob jurisdição de poderes eleitos. Há um enorme impulso fiscal advindo de pacotes do governo Biden. O déficit público deverá fechar o ano em 6,3% do PIB, segundo a empresa de rating Fitch, um acréscimo nada modesto em relação aos 3,7% do PIB registrados em 2022, de US$ 660 bilhões.

Com a inflação ainda longe da meta, não será surpresa se o Fed elevar os juros no curto prazo, ainda que não na reunião de 20 de setembro. Nos EUA, como em certa medida no Brasil, a política fiscal vai em sentido oposto à política monetária, tornando mais lenta a queda da inflação.

Câmera lenta

Folha de S. Paulo

Estados devem agilizar gravação a partir de fardas da PM para reduzir letalidade

Já se passou tempo suficiente para constatar que as câmeras corporais influenciam a diminuição da letalidade policial. Entre 2021 e 2022, as mortes envolvendo forças de segurança tiveram queda de 26% em São Paulo e de 37% em Santa Catarina, estados que implementaram o dispositivo.

No entanto ainda é lento o ritmo de adoção da tecnologia no Brasil. Nos últimos dois anos, o número de estados que a incorporaram em suas polícias militares passou de três para apenas sete.

Segundo levantamento da Folha, com dados fornecidos pelas secretarias estaduais e distrital, só São Paulo, Santa Catarina e Rondônia adotavam câmeras em 2021. Agora, Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Roraima passaram a integrar o grupo, e Rondônia não respondeu.

Há desafios até mesmo nessas unidades federativas onde a ferramenta já é utilizada. A abrangência tende a ser parcial. Três estados (SP, RJ e SC) concentram 93% dos dispositivos. No restante, o número de câmeras não supera 10% do contingente policial —em São Paulo, o alcance é de 52%.

Os critérios para definir quais batalhões recebem a tecnologia também são pouco claros. Num exemplo funesto, só 3 das 16 mortes investigadas na Operação Escudo, na Baixada Santista, foram captadas por câmeras corporais.

Governos regionais alegam que há carência de uma diretriz nacional. Em fevereiro, a gestão federal sinalizou que lançaria um programa de implantação da política no primeiro semestre, mas, até agora, ainda não há metas definidas.

Porém a falta de critérios vindos de Brasília não deveria ser um impeditivo, visto que, mesmo com a lacuna, há estados que já colhem os frutos da instalação das câmeras.

Alguns deles pretendem expandir o sistema no curto prazo e outros querem implementá-lo pela primeira vez. O Pará indicou que aumentará o número de aparelhos de 390 para 3.900 até dezembro; Rio Grande do Sul, Paraná, Espírito Santo e Piauí têm processo de licitação em andamento.

Não se trata de panaceia. É necessário regular o uso e o armazenamento das imagens. Um relatório da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, entregue ao Superior Tribunal Federal no último dia 24, sustenta que a PM fluminense apagou e manipulou material de câmeras corporais, denúncia que deve ser seriamente investigada.

A tecnologia pode, inclusive, servir como intervenção em locais críticos. A Bahia planeja instalar 3.200 aparelhos em um ano —o estado é campeão em números absolutos de mortes violentas (6.659 em 2022) e em operações policiais (1.464). Há que superar resistências das corporações e dar início à política.

Apesar dos juros

Folha de S. Paulo

Emprego sustenta pouso suave do PIB, mas futuro depende do investimento privado

Depois de uma recuperação que surpreendeu pelo vigor após a superação do pior momento da pandemia, o mercado de trabalho brasileiro mostra resistência considerável a um longo período de juros do Banco Central nas alturas.

De acordo com os dados divulgados nesta quinta-feira (31) pelo IBGE, a taxa de desemprego caiu a 7,9% no período maio-julho, ante 8,5% no trimestre imediatamente anterior e 9,1% no período correspondente do ano passado.

O percentual mantém trajetória de queda com poucas interrupções desde abril de 2021, e o patamar atual é o menor registrado para essa época do ano desde 2014, antes do agravamento da recessão devastadora que marcou o final do governo Dilma Rousseff (PT).

A renda média do trabalho demorou mais a se recuperar, mas se mantém em alta desde o ano passado. Chegou agora a R$ 2.935 mensais, com aumento de 5,1% acima da inflação em um ano.

Nem tudo é positivo nos números. A taxa de informalidade no emprego se mantém elevadíssima, em 39,1%, ante 38,9% em fevereiro-abril e 39,8% há um ano. Nesse contingente de trabalhadores que não desfrutam de garantias legais estão, principalmente, assalariados sem carteira assinada, autônomos e empregadores sem CNPJ.

Mesmo assim, o desempenho do mercado não deixa de ser notável para um país que viveu por um ano sob juros básicos de 13,75% anuais, só reduzidos a ainda altíssimos 13,25% no início de agosto.

Recorde-se que, em português claro, o objetivo do aperto monetário é controlar a inflação por meio do esfriamento da atividade econômica e, em consequência, da geração de vagas. Deve-se observar, nesse sentido, que à resistência do emprego está associada a resistência da alta de preços.

A expansão do Produto Interno Bruto, do mesmo modo, tem superado as expectativas desde 2022, quando marcou 2,9%. Para este ano, as projeções já subiram de 0,7% para 2,3%.

A economia perde ritmo, como era inevitável, porém de modo mais suave que o antes previsto —o que traz alívio no curto prazo.

Mais à frente, contudo, taxas menos modestas de crescimento dependerão da capacidade do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de restabelecer a confiança nas finanças públicas e favorecer a queda duradoura dos juros, permitindo a expansão do consumo e, sobretudo, do investimento privado.

Um Supremo para chamar de seu

O Estado de S. Paulo

Pretensão de Lula de colocar no STF alguém com quem possa ‘trocar ideias’ é ceder a um aspecto central do bolsonarismo: o exercício do poder configurado pelas relações de amizade

Depois de indicar seu advogado para o Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente Lula pretende preencher a vaga a ser deixada pela ministra Rosa Weber, no final de setembro, indicando alguém com quem tenha a liberdade para “trocar ideias” quando precisar, apurou o Estadão. Ora, isso é repetir o mesmo erro de Jair Bolsonaro, que admitia explicitamente que o nome indicado precisava “tomar tubaína” com ele e “ter essa afinidade comigo”. “Eu não vou indicar um cara só pelo currículo”, disse Jair Bolsonaro por ocasião da indicação do ministro Kassio Nunes.

A Constituição confere ao presidente da República a prerrogativa de indicar os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Trata-se de arranjo institucional importante, dentro do sistema de freios e contrapesos. No Estado Democrático de Direito, cada um dos Três Poderes é independente, mas nenhum é absoluto.

O processo de preenchimento das vagas do STF é parte desse equilíbrio entre os Poderes. O presidente da República indica e o Congresso, por meio do Senado, avalia. A Constituição explicita que essas prerrogativas não são espaço de mero arbítrio. Há requisitos importantes a serem seguidos: notável saber jurídico e reputação ilibada.

Não são condições abstratas ou de difícil aferição. Ao falar em notável saber jurídico, a Constituição exige que o conhecimento técnico do indicado seja facilmente percebido por todos. Se há alguma dúvida a respeito do saber jurídico do indicado, o requisito não está preenchido. No caso da reputação ilibada, o texto constitucional apenas afirma que os integrantes da Corte devem ter um nome límpido, intacto, sem mancha, sem sombra, sem nenhuma suspeita.

Na história de “tomar tubaína” ou na de poder “trocar ideias”, há uma peculiaridade. É o próprio presidente da República que lança suspeitas sobre os nomes de seus escolhidos. Dá a entender que o indicado deve estar aberto a uma “afinidade” que vai além das relações institucionais: alguém sobre o qual se conseguiria ter algum controle ou alguma influência quando estiver depois no Supremo.

Ora, o que se espera de um ministro do STF é o exato oposto de uma dinâmica de dependência com quem o indicou. Os integrantes da Corte devem ter a capacidade técnica e a estatura moral – por isso, os requisitos de notável saber jurídico e de reputação ilibada – para que sua atuação como magistrado seja rigorosamente independente. Só assim o Supremo poderá exercer a contento sua função de defesa da Constituição, que leva muitas vezes a contrariar o governante de plantão e algumas vezes a contrariar a própria opinião majoritária da população.

Lula e Bolsonaro manifestam, portanto, uma incompreensão não apenas sobre a prerrogativa presidencial de indicar nomes para o STF, mas sobre a própria Corte constitucional. Ao tentarem submeter o Supremo à sua interferência política, eles enfraquecem a autoridade do STF perante a população.

Nem se diga que, ao atuar assim, o presidente da República estaria apenas promovendo suas causas e seu ideário político. Isso deve ser feito junto ao Congresso. Quando se atua assim perante o Judiciário – ignorando sua natureza, sua função e seu âmbito específico de competência –, o Executivo interfere no bom funcionamento do Estado Democrático de Direito. Como um todo, o poder estatal torna-se menos apto a servir a população.

A politização das indicações para o STF contribui para a percepção de desconfiança da população em relação à Corte constitucional, especialmente no quesito imparcialidade. E as eventuais relações de compadrio e de dependência entre o presidente da República e seus indicados são um capítulo especialmente preocupante desse fenômeno.

A tolerância com indicações à base de tubaína, como se fosse algo normal, significaria pactuar com um aspecto central do bolsonarismo: o exercício do poder configurado pelas relações de amizade. O eleitor rejeitou esse modo de atuar. Não há por que Lula dar agora essa vitória a Bolsonaro, perpetuando uma deformação tão contrária aos ideais da República.

As cidades no pós-pandemia

O Estado de S. Paulo

O Índice de Condições de Vida melhorou, exceto em relação à ‘estabilidade’, refletindo crescentes agitações sociais. Nas cidades latino-americanas, a miséria segue sendo maior desafio

Por dois anos um inimigo invisível dominou as cidades, enquanto os cidadãos se entrincheiravam em suas casas. Agora que a pandemia passou, como estão as condições de vida nas cidades?

Todos os anos, a Economist Intelligence Unit publica um Índice de Condições de Vida (liveability), avaliando 170 cidades a partir de 30 fatores agrupados em cinco categorias: estabilidade, saúde, cultura e meio ambiente, educação e infraestrutura. A última edição traz o título sugestivo de Otimismo em meio à instabilidade.

O otimismo é realista. A média dos indicadores cresceu, atingindo seu ponto mais alto em 15 anos. Após a pressão sobre o sistema hospitalar e o fechamento das escolas, indicadores de educação e, sobretudo, de saúde melhoraram significativamente, especialmente na Ásia, no Oriente Médio e na África.

Paradoxalmente, as metrópoles atraem muitas pessoas, mas também muitos dissabores. Dos tempos da Babilônia até as distopias cinematográficas, as grandes cidades povoam o imaginário popular como núcleos condensados de insalubridade, violência e egoísmo. Mas o índice desmoraliza esse mito, mostrando que grandes cidades podem ser um lugar agradável para viver. Paradigmático é o caso da maior de todas, Tóquio, com 14 milhões de habitantes (37 milhões na área metropolitana). É um dos lugares que oferecem melhores condições de vida no mundo, com transporte público pontual, bairros seguros, ruas limpas e mais restaurantes estrelados do que qualquer outra cidade. Ela oferece lições não só pelos sucessos de seu planejamento urbano, mas pelos seus fracassos.

Desde o início do século 20, Tóquio focou em transporte público, priorizando, ao invés de rodas, trilhos que se espalharam pelos seus subterrâneos. Por outro lado, com poucos recursos no pós-guerra, a prefeitura malogrou em seu intento de implementar o ethos modernista e separar funções da cidade, como trabalho e moradia, tal como se fez, por exemplo, no desenho de Brasília. Enquanto grandes empresas nos EUA se deslocavam aos subúrbios, no Japão elas se concentraram em torno dos núcleos de transporte, incentivando o uso de trens e metrôs. À revelia dos planos oficiais, os bairros cresceram aglomerando usos mistos, tornando-se mais igualitários ao invés de mais estratificados. Tóquio se tornou uma cidade policêntrica, com muitos centros, não um. Assim, a capital japonesa concretizou, involuntariamente, os objetivos que São Paulo, por exemplo, busca conquistar por meio de seu Plano Diretor.

Mas as cidades também são laboratórios que concentram os dramas de seus países. No último ano, o único indicador que registrou retrocessos ao redor do mundo foi a “estabilidade”. Não só cidades nas últimas posições do ranking, como Damasco ou Trípoli, foram assoladas por conflitos, terrorismo e agitações sociais, como nas cidades europeias e norte-americanas se viu um aumento de protestos e tumultos civis, refletindo percepções de corrupção, aumento do custo de vida ou ondas de delinquência.

Desde 2019, todas as cidades latinoamericanas caíram no ranking, não tanto por uma piora nas suas condições de vida, mas pela melhora de outras cidades no mundo, especialmente na Ásia. A pobreza e a desigualdade são persistentes. Ainda que índices de violência em assentamentos irregulares, como as favelas do Rio de Janeiro, tenham melhorado, o acesso ao saneamento e outros serviços básicos é precário. Os extremos climáticos se intensificam, mas os investimentos em prevenção de desastres são escassos, deixando um rastro de destruição, por exemplo, nas épocas de enchentes e deslizamentos. Erradicar a miséria e mitigar impactos climáticos continua a ser o maior desafio das cidades da América Latina. A busca por metais e minerais da região valiosos para a transição energética é uma fonte de recursos que não pode ser desperdiçada.

Em 1950, só 30% da população mundial era urbana; em 2050, serão quase 70%. Assim, o futuro da cidadania no planeta depende – literalmente, e cada vez mais – das respostas que os cidadãos darão aos desafios de suas cidades.

Um laboratório da autocracia chinesa

O Estado de S. Paulo

China quer transformar o mundo, e o que ocorre em Hong Kong ilustra a opacidade e a arbitrariedade de suas estratégias

A China tem um plano para uma ordem global alternativa à arquitetada no pós-guerra pelas democracias ocidentais. Em tese, a chamada “Iniciativa de Desenvolvimento Global” é generosa. O mundo precisa de “harmonia entre o homem e a natureza”, disse o líder chinês Xi Jinping à ONU, acrescentando que o desenvolvimento econômico deve “beneficiar a todos”. Na prática, Pequim utiliza seus músculos econômicos para arregimentar países em desenvolvimento e ampliar sua influência em fóruns internacionais a fim de criar um mundo amigável ao seu modelo autocrático.

No ano passado, por exemplo, logo após o Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU apontar “sérias violações aos direitos humanos” de minorias muçulmanas em Xinjiang, Pequim mobilizou um plantel de países em desenvolvimento para derrubar uma moção solicitando debate sobre esses abusos. Na sequência, alistou 66 membros – a maioria receptores de empréstimos pela Nova Rota da Seda – para apoiar uma declaração celebrando conquistas chinesas nos direitos humanos. A expansão do Brics ilustra a opacidade e a arbitrariedade dessas transações. O que vem ocorrendo em Hong Kong mostra como essa opacidade e arbitrariedade operam sem os freios e contrapesos das relações internacionais.

Este ano é o 26.º desde que Hong Kong foi devolvida pelo Reino Unido à China sob a condição de que até 2047 ela gozaria de autonomia, princípios democráticos e liberdades fundamentais, sob o modelo “um país, dois sistemas”. Foi também o segundo ano desde que Pequim impôs uma Lei de Segurança Nacional sobre Hong Kong. Um relatório da União Europeia catalogou seus desdobramentos. Políticos pró-democracia foram impedidos de concorrer às eleições, quando não exilados ou presos, junto com centenas de ativistas e jornalistas. A submissão não foi totalmente consumada. Os honcongueses ainda dispõem de liberdades inimagináveis na China continental. As redes sociais não estão obliteradas pela “muralha digital” e a censura a livros ou jornais é mais contida. Mas o relatório identifica novas pressões sobre universidades, sindicatos e ONGs. Advertências contra uma “resistência branda” são usadas para intimidar os cidadãos.

O drama de Hong Kong expõe não só o descompromisso de Pequim com seus próprios pactos, mas sua hipocrisia. Autoridades querem fazer crer que Hong Kong continua aberta aos negócios, e alardeiam seu comprometimento em “manter o sistema de common-law e um Judiciário independente”. Mas a Justiça fechou as portas do principal jornal pró-democracia e condenou seu fundador, Jimmy Lai, alegando irregularidades “comerciais”.

Em resumo, Pequim quer os bônus de esmagar os direitos e liberdades que fizeram de Hong Kong um centro global de comércio e finanças sem nenhum ônus. Os empresários que creem que os negócios ficarão imunes a um sistema legal viciado o fazem por sua conta e risco. Já a comunidade internacional tem o desafio de encontrar meios de mostrar à China que a quebra de compromissos internacionais não pode ficar impune.

Setembro é mês de valorização da vida

Correio Braziliense

A campanha foi inspirada no norte-americano Mike Emme que se suicidiou. No velório foram distribuídos cartões com fitas amarelas e frases motivacionais para qualquer um que estivesse, ou não, com transtornos mentais ou emocionais

Nesta sexta-feira inicia-se o Setembro Amarelo – mês de prevenção ao suicídio e aos trantornos mentais. A história da cor amarela é triste, mas interessante. A campanha foi inspirada no norte-americano Mike Emme, que tirou a própria vida aos 17 anos. O jovem tinha um carro amarelo e, por conta disso, em seu velório, pais e amigos distribuíram cartões com fitas amarelas e frases motivacionais para qualquer um que pudesse estar enfrentando transtornos mentais e emocionais. Assim surgiu o Setembro Amarelo.

De acordo com a Organizacão Mundial da Saúde (OMS), são registrados mais de 700 mil suicídios em todo o mundo, sem contar os episódios subnotificados. Segundo os especialistas, esse número pode chegar a 1 milhão de casos. No Brasil, entre 2010 e 2019, foram 112.230 mil mortes e nos últimos anos são aproximadamente 14 mil casos por ano, o que corresponde a uma média de 38 suicídios notificados por dia.

O que mais preocupa é que um mapeamento feito pela OMS, em 2022, elegeu o Brasil como o país que mais sofre de ansiedade na América Latina, e sabe-se que esse é um dos fatores — ao lado da depressão — que mais reforçam os pensamentos suicidas. Além disso, novos dados da OMS divulgados recentemente, em junho de 2023, revelam que 31,6% de quem lida com a ansiedade são jovens de 18 a 24 anos.

Não há dúvidas de que a pandemia e, consequentemente, a tristeza decorrente de mais de 700 mil mortes por covid-19 no Brasil exacerbaram esse sentimento de vazio, de impotência, de medo, diante de um vírus até então desconhecido. Fato é que quase ninguém ou ninguém saiu mentalmente equilibrado dessa pandemia, mesmo naqueles casos em que a pessoa não perdeu nenhum familiar ou não teve episódios da doença.

E se antes temas como depressão, suicídio e burnout eram assuntos velados ou debatidos “à boca pequena”, hoje, tornaram-se constantes. Quantos casos de TDAH (transtorno de deficit de atenção e hiperatividade) foram diagnosticados, quantas famílias, hoje, discutem sobre formas de ajudar seus filhos com TEA (transtorno do espectro autista)? É óbvio que isso não significa que essas pessoas tenham pensamentos suicidas, mas esses exemplos demonstram que a sociedade precisa lidar com problemas reais, que afetam milhares de pessoas em todo o mundo, e não simplesmente colocá-los debaixo do tapete ou fingir que não existem.

Falar sobre suicídio apenas neste mês ou no dia 10, em que é lembrado o Dia Mundial da Prevenção ao Suicídio, ajuda, mas não muito. Enquanto governos e sociedade civil não se atentarem para a relevância de discutir o tema e tudo o que gira em torno desse problema, podemos contar somente com datas especiais e com o trabalho dos Centros de Valorização da Vida (CVV), que atualmente mantêm 120 postos de atendimento e a linha de telefone 188, gratuita e 24 horas por dia, para prestar assistência e apoio emocional a quem precisa. O CVV realiza mais de 3 milhões de atendimentos anuais, por aproximadamente 4 mil voluntários, localizados em 24 estados, além do Distrito Federal.

 

 

 

 

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