Meta fiscal do Orçamento é pouco realista
O Globo
Para cumprir compromisso de zerar déficit,
governo aposta em receitas incertas em vez de cortar despesas
A primeira versão do Orçamento de 2024
encaminhada ao Congresso revela o tamanho do desafio que o próprio governo do
presidente Luiz Inácio Lula da Silva se impôs: obter receitas adicionais da
ordem de R$ 168 bilhões para cumprir a meta de zerar o déficit no ano que vem.
É uma meta que se mostra pouco realista quando confrontada com o resultado
fiscal dos últimos meses.
A gastança neste ano tem batido recordes. O
governo federal fechou julho com déficit de R$ 35,9 bilhões, o segundo pior
resultado para o mês na série histórica iniciada em 1997. Nos sete primeiros
meses de 2023, as contas ficaram R$ 78,2 bilhões no vermelho, ante resultado
positivo de R$ 73,2 bilhões no mesmo período de 2022. As despesas cresceram
8,7% em termos reais, ante queda de 5,3% nas receitas.
O gasto elevado foi resultado da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, uma licença para gastar R$ 168,9 bilhões adicionais aprovada a pedido do PT. A intenção era tornar permanentes os valores do então Auxílio Brasil, que voltou a se chamar Bolsa Família, e recompor gastos sociais. A Fazenda prometeu manter o déficit deste ano perto de R$ 100 bilhões, mas o último relatório do Ministério do Planejamento elevou a previsão para R$ 145,4 bilhões, ao redor de 1,4% do PIB.
Basta refletir sobre os números para
entender a distância que separa a ambição do governo da realidade. O arcabouço
fiscal recém-aprovado pelo Congresso impõe aumento real nas despesas em
qualquer cenário (no mínimo 0,6% além da inflação). A única forma de zerar o
déficit como prometido será encontrar as tais receitas adicionais que somem R$
168 bilhões.
No papel, o plano pode convencer os
crédulos. Na prática, encontrará uma série de barreiras. Embora o governo tenha
reconquistado nesta semana no Congresso o direito de vencer disputas
tributárias em caso de empate nos julgamentos, é incerto quanto isso
representará no caixa da União. Mesmo que confirmada a estimativa dos ganhos
para o Tesouro em torno de R$ 54 bilhões, novas fontes de receita serão
necessárias, muitas para lá de incertas. Dificilmente o Congresso aprovará tudo
exatamente como o governo almeja, a começar pela taxação de fundos exclusivos
fechados e offshore apresentada nesta semana. Entre as iniciativas que ainda
deverão chegar ao Parlamento, está a regulamentação de aspectos da cobrança de
ICMS.
Tem sido louvável o compromisso do governo,
em particular do Ministério da Fazenda, com a responsabilidade fiscal,
sobretudo levando em conta o desprezo pelas contas
públicas que acomete setores do PT. Mas os números deixam claro
que será impossível conciliar todas as promessas de Lula na campanha com os
recursos disponíveis. A dificuldade tem levado parlamentares governistas a
sugerir o adiamento do ajuste fiscal. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann,
chegou a formular uma proposta descabida para mudar o cálculo das metas.
Nenhum malabarismo contábil, porém, terá o
condão de esconder a realidade: se o compromisso fiscal for mesmo para valer,
em algum momento o governo terá de se dedicar à penosa tarefa de decidir que
gastos cortar. Ignorar os fatos e aderir ao plano disparatado de adiar ou mudar
as metas equivalerá a pôr em xeque a confiança na palavra de Lula e a
credibilidade econômica do governo, conquistada com a aprovação do arcabouço
fiscal.
Aumento nos casos de Covid impõe maior
urgência na vacinação
O Globo
Menos de 16% tomaram vacina capaz de
proteger contra novas variantes, quando o ideal seria 95%
O aumento nos casos de Covid-19 nas últimas
semanas fez voltar ao radar das autoridades de saúde um problema que parecia
esquecido. Os testes positivos para o coronavírus mais
que dobraram entre a primeira e a terceira semana de agosto, segundo a
Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed). Números parecidos
foram detectados pelo Instituto Todos pela Saúde (ITpS): crescimento de 7% para
15,3% entre 22 de julho e 19 de agosto.
Cautelosos, os cientistas evitam atribuir
os novos casos à variante EG.5, sublinhagem da Ômicron conhecida como Éris, mas
a alta coincide com a chegada dela ao país. No último dia 18, o Ministério da
Saúde confirmou em São Paulo o primeiro caso. Depois houve
notificações no Distrito Federal e no Rio de Janeiro. Tudo dentro do esperado.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Éris tornou-se predominante no
mundo, tendo sido registrada em pelo menos 51 países.
Apesar de altamente transmissível, ela foi
classificada como variante “de interesse”, não “de preocupação”. Não há
evidência de que provoque mais hospitalizações ou mais mortes. Ainda que se
torne dominante no Brasil e que os casos subam, não há motivo para pânico.
Graças à vacinação em massa, a pandemia está sob controle. Altas e baixas
ocasionais nos números são esperadas. Novos vírus e novas variantes estarão
sempre à espreita.
Diante do aumento de casos, algumas
instituições têm retomado medidas de prevenção, como a obrigatoriedade do uso
de máscaras. É um exagero. Máscaras são indicadas apenas para os mais
vulneráveis. Para o público, a melhor forma de se proteger é procurar os postos
de vacinação, onde as doses estão disponíveis gratuitamente.
Pode surpreender, mas vacinar a população
se tornou um problema mais desafiador que a doença em si. Apesar da tragédia
que o Brasil viveu, com mais de 700 mil mortes, a imunização com a vacina bivalente
— recomendada para subvariantes da Ômicron — tem sido decepcionante. Menos de
16% do público-alvo está protegido, quando o ideal seria 95%. O percentual
esconde disparidades. São Paulo vacinou 20,8%, Roraima apenas 6,7%.
É compreensível que a volta à normalidade
depois de um período difícil de restrições crie a falsa sensação de que não há
mais riscos. Isso acontece também com outras doenças controladas pela
vacinação. Mas o coronavírus não foi embora, e as variantes continuam a surgir.
Felizmente, o mundo tem uma arma poderosa para combatê-lo, a vacina. É
essencial tomar as doses recomendadas para que se mantenha o cenário de
tranquilidade.
Ao mesmo tempo, Ministério da Saúde,
estados e municípios precisam se empenhar mais. O governo deveria implementar
uma política nacional para aplicar os reforços em quem tomou as demais doses —
com busca ativa do público-alvo se necessário. O Brasil tem vasta experiência
de sucesso em campanhas de vacinação, não pode se contentar com desempenho tão
sofrível num caso tão evidente.
Mesmo com juro alto, EUA demoram a
desacelerar
Valor Econômico
Com a inflação ainda longe da meta, não
será surpresa se o Fed elevar os juros no curto prazo, ainda que não na reunião
de 20 de setembro
Após quase um ano e meio de alta de juros e
de uma política monetária contracionista, a economia americana continua a
exibir uma intrigante e incômoda vitalidade. No ciclo mais rápido de elevação
das taxas em 40 anos, o desemprego mal aumentou, o mercado de trabalho continua
aquecido, o consumo segue vigoroso e a inflação resiste a cair. Os dados
divulgados ontem contradizem alguns anteriores. O PIB americano do segundo
trimestre foi revisto para baixo, a um crescimento anual de 2%. O consumo no
mês de julho, porém, subiu acima da expectativa, para 0,8% e, mais preocupante,
a inflação medida pelos gastos pessoais de consumo, a preferida do Federal
Reserve, assim como seu núcleo, aumentou. O PCE avançou de 3% para 3,3%, e o
núcleo, que exclui as variações de alimentos e energia, foi de 4,1% para 4,2%
em um ano.
Dados pontuais não mudarão a orientação do
BC americano que, já bastante avançado no ciclo de aperto, com juros a 5,5%,
reafirmou que procederá com muita cautela nas próximas reuniões diante do
dilema entre não subir mais os juros e ratificar uma inflação que se encontra
ainda muito acima da meta de 2% ou subir mais as taxas, o que poderia causar
danos desnecessários à economia. Boa parte dos investidores aposta que os juros
não subirão mais, a inflação vai cair e a economia realizará um “pouso suave”,
evitando a recessão. O Fed não compartilha dessa visão, mas também não a
descarta.
A mais recente visão do futuro da política
monetária foi delineada por Jerome Powell, presidente do banco, em encontro
anual em Jackson Hole. Qualitativamente, o discurso de Powell não difere da ata
da ultima reunião do Fed. Há a promessa de que o banco não esmorecerá até que a
inflação rume claramente para a meta - e a certeza de que isto ainda levará
algum tempo para ocorrer. Uma das dúvidas é se a dose de juros já aplicada é suficiente
para atingir o objetivo, dada as defasagens de tempo entre o aumento e seus
efeitos econômicos, ou se serão necessárias doses adicionais. “Estamos
navegando guiado pelas estrelas com um céu carregado de nuvens”, resumiu
Powell.
O mapa da conduta da inflação desenhado por
Powell é conhecido. Até agora, a inflação de bens, com o aperto monetário,
declinou forte e rapidamente. O mesmo desempenho não teve a inflação do setor
imobiliário, mas o presidente do Fed acredita que o aumento das hipotecas, que
atingiram 7% ao ano, reduzirá a variação dos preços no setor. O problema
principal está localizado no setor de serviços não-residenciais (saúde,
acomodações, transportes etc), com uma variação de preços tida no máximo como
“modesta”. Esse tipo de serviços compõe metade do núcleo de inflação dos gastos
pessoais e seu recuo é vital para que a inflação volte a ser bem comportada.
A dificuldade reside no fato de que os
serviços não residenciais respondem pouco a eventuais gargalos de oferta nas
cadeias produtivas, são em geral menos sensíveis à taxa de juros e intensivos
em trabalho. Ao mesmo tempo, são altamente influenciáveis pela renda disponível
e pela situação do mercado de trabalho. Há progressos, mas lentos, nesses dois
indicadores.
Segundo Powell, a pressão sobre a folha de
pagamentos diminuiu, enquanto que a semana de trabalho média e o número de
horas trabalhadas deixou de crescer. Ainda que os reajustes salariais tenham se
moderado, o salário real, segundo Powell, “está subindo porque a inflação
caiu”. O Fed espera que os reajustes de salários se adequem a ritmo compatível
com a meta de inflação - algo como 3,5% ao ano. Eles atingiram o pico de 5,9%
em março de 2022 e recuaram a 4,4% ao ano em julho passado. Não há como isso
ocorrer sem desaquecimento pelo menos moderado do emprego, que ainda não veio.
O cenário risonho de uma queda por
gravidade da inflação a partir de agora é o menos provável. O avanço do consumo
em julho foi forte, mas pode arrefecer em seguida. A consultoria Oxford
Economics aposta nisso, e em uma recessão leve a partir do último trimestre,
porque a renda pessoal em julho subiu apenas 0,2% e a disponível não variou. A
conclusão: é a poupança feita durante a pandemia que está impulsionando os
gastos e ela está perto do esgotamento. Essa poupança atingiu 35% da renda
pessoal no pico da pandemia e em julho caiu a 3,5%. Se esse cenário se
confirmar, o Fed não teria mais motivo nenhum para aumentar os juros e
começaria a cortá-los em meados de 2024.
A economia tem resistido aos juros altos
por outro motivo, que é mencionado eventualmente e com discrição nas atas do
Fed, que, por princípio, é muito comedido ao comentar assuntos sob jurisdição
de poderes eleitos. Há um enorme impulso fiscal advindo de pacotes do governo Biden.
O déficit público deverá fechar o ano em 6,3% do PIB, segundo a empresa de
rating Fitch, um acréscimo nada modesto em relação aos 3,7% do PIB registrados
em 2022, de US$ 660 bilhões.
Com a inflação ainda longe da meta, não
será surpresa se o Fed elevar os juros no curto prazo, ainda que não na reunião
de 20 de setembro. Nos EUA, como em certa medida no Brasil, a política fiscal
vai em sentido oposto à política monetária, tornando mais lenta a queda da
inflação.
Câmera lenta
Folha de S. Paulo
Estados devem agilizar gravação a partir de
fardas da PM para reduzir letalidade
Já se passou tempo suficiente para
constatar que as câmeras corporais influenciam a diminuição da letalidade
policial. Entre 2021 e 2022, as mortes envolvendo forças de segurança tiveram
queda de 26% em São Paulo e de 37% em Santa Catarina, estados que implementaram
o dispositivo.
No entanto ainda é lento o ritmo de adoção
da tecnologia no Brasil. Nos últimos dois anos, o número de
estados que a incorporaram em suas polícias militares passou de três para
apenas sete.
Segundo levantamento da Folha, com
dados fornecidos pelas secretarias estaduais e distrital, só São Paulo, Santa
Catarina e Rondônia adotavam câmeras em 2021. Agora, Minas Gerais, Pará, Rio de
Janeiro, Rio Grande do Norte e Roraima passaram a integrar o grupo, e Rondônia
não respondeu.
Há desafios até mesmo nessas unidades
federativas onde a ferramenta já é utilizada. A abrangência tende a ser
parcial. Três estados (SP, RJ e SC) concentram 93% dos dispositivos. No
restante, o número de câmeras não supera 10% do contingente policial —em São
Paulo, o alcance é de 52%.
Os critérios para definir quais batalhões
recebem a tecnologia também são pouco claros. Num exemplo funesto, só 3 das 16
mortes investigadas na Operação Escudo, na Baixada Santista, foram
captadas por câmeras corporais.
Governos regionais alegam que há carência
de uma diretriz nacional. Em fevereiro, a gestão federal sinalizou que lançaria um
programa de implantação da política no primeiro semestre, mas, até
agora, ainda não há metas definidas.
Porém a falta de critérios vindos de
Brasília não deveria ser um impeditivo, visto que, mesmo com a lacuna, há
estados que já colhem os frutos da instalação das câmeras.
Alguns deles pretendem expandir o sistema
no curto prazo e outros querem implementá-lo pela primeira vez. O Pará indicou
que aumentará o número de aparelhos de 390 para 3.900 até dezembro; Rio Grande
do Sul, Paraná, Espírito Santo e Piauí têm processo de licitação em andamento.
Não se trata de panaceia. É necessário
regular o uso e o armazenamento das imagens. Um relatório da Defensoria Pública
do Rio de Janeiro, entregue ao Superior Tribunal Federal no último dia 24,
sustenta que a PM fluminense apagou e manipulou material de câmeras corporais,
denúncia que deve ser seriamente investigada.
A tecnologia pode, inclusive, servir como
intervenção em locais críticos. A Bahia planeja instalar 3.200 aparelhos em um
ano —o estado é campeão em números absolutos de mortes violentas (6.659 em
2022) e em operações policiais (1.464). Há que superar resistências das
corporações e dar início à política.
Apesar dos juros
Folha de S. Paulo
Emprego sustenta pouso suave do PIB, mas
futuro depende do investimento privado
Depois de uma recuperação que surpreendeu
pelo vigor após a superação do pior momento da pandemia, o mercado de trabalho
brasileiro mostra resistência considerável a um longo período de juros do Banco
Central nas alturas.
De acordo com os dados divulgados nesta
quinta-feira (31) pelo IBGE, a taxa
de desemprego caiu a 7,9% no período maio-julho,
ante 8,5% no trimestre imediatamente anterior e 9,1% no período correspondente
do ano passado.
O percentual mantém trajetória de queda com
poucas interrupções desde abril de 2021, e o patamar atual é o menor registrado
para essa época do ano desde 2014, antes do agravamento da recessão devastadora
que marcou o final do governo Dilma Rousseff (PT).
A renda média do trabalho demorou mais a se
recuperar, mas se mantém em alta desde o ano passado. Chegou agora a R$ 2.935
mensais, com aumento de 5,1% acima da inflação em um ano.
Nem tudo é positivo nos números. A taxa de
informalidade no emprego se mantém elevadíssima, em 39,1%, ante 38,9% em
fevereiro-abril e 39,8% há um ano. Nesse contingente de trabalhadores que não
desfrutam de garantias legais estão, principalmente, assalariados sem carteira
assinada, autônomos e empregadores sem CNPJ.
Mesmo assim, o desempenho do mercado não
deixa de ser notável para um país que viveu por um ano sob juros básicos de
13,75% anuais, só reduzidos
a ainda altíssimos 13,25% no início de agosto.
Recorde-se que, em português claro, o
objetivo do aperto monetário é controlar a inflação por meio do esfriamento da
atividade econômica e, em consequência, da geração de vagas. Deve-se observar,
nesse sentido, que à resistência do emprego está associada a resistência da
alta de preços.
A expansão do Produto Interno Bruto, do
mesmo modo, tem superado as expectativas desde 2022, quando marcou 2,9%. Para
este ano, as projeções já subiram de 0,7% para 2,3%.
A economia perde ritmo, como era
inevitável, porém de modo mais suave que o antes previsto —o que traz alívio no
curto prazo.
Mais à frente, contudo, taxas menos modestas de crescimento dependerão da capacidade do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de restabelecer a confiança nas finanças públicas e favorecer a queda duradoura dos juros, permitindo a expansão do consumo e, sobretudo, do investimento privado.
Um Supremo para chamar de seu
O Estado de S. Paulo
Pretensão de Lula de colocar no STF alguém
com quem possa ‘trocar ideias’ é ceder a um aspecto central do bolsonarismo: o
exercício do poder configurado pelas relações de amizade
Depois de indicar seu advogado para o
Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente Lula pretende preencher a vaga a
ser deixada pela ministra Rosa Weber, no final de setembro, indicando alguém
com quem tenha a liberdade para “trocar ideias” quando precisar, apurou o
Estadão. Ora, isso é repetir o mesmo erro de Jair Bolsonaro, que admitia
explicitamente que o nome indicado precisava “tomar tubaína” com ele e “ter
essa afinidade comigo”. “Eu não vou indicar um cara só pelo currículo”, disse
Jair Bolsonaro por ocasião da indicação do ministro Kassio Nunes.
A Constituição confere ao presidente da
República a prerrogativa de indicar os ministros do Supremo Tribunal Federal
(STF). Trata-se de arranjo institucional importante, dentro do sistema de
freios e contrapesos. No Estado Democrático de Direito, cada um dos Três
Poderes é independente, mas nenhum é absoluto.
O processo de preenchimento das vagas do
STF é parte desse equilíbrio entre os Poderes. O presidente da República indica
e o Congresso, por meio do Senado, avalia. A Constituição explicita que essas
prerrogativas não são espaço de mero arbítrio. Há requisitos importantes a
serem seguidos: notável saber jurídico e reputação ilibada.
Não são condições abstratas ou de difícil
aferição. Ao falar em notável saber jurídico, a Constituição exige que o
conhecimento técnico do indicado seja facilmente percebido por todos. Se há
alguma dúvida a respeito do saber jurídico do indicado, o requisito não está
preenchido. No caso da reputação ilibada, o texto constitucional apenas afirma
que os integrantes da Corte devem ter um nome límpido, intacto, sem mancha, sem
sombra, sem nenhuma suspeita.
Na história de “tomar tubaína” ou na de
poder “trocar ideias”, há uma peculiaridade. É o próprio presidente da
República que lança suspeitas sobre os nomes de seus escolhidos. Dá a entender
que o indicado deve estar aberto a uma “afinidade” que vai além das relações
institucionais: alguém sobre o qual se conseguiria ter algum controle ou alguma
influência quando estiver depois no Supremo.
Ora, o que se espera de um ministro do STF
é o exato oposto de uma dinâmica de dependência com quem o indicou. Os
integrantes da Corte devem ter a capacidade técnica e a estatura moral – por
isso, os requisitos de notável saber jurídico e de reputação ilibada – para que
sua atuação como magistrado seja rigorosamente independente. Só assim o Supremo
poderá exercer a contento sua função de defesa da Constituição, que leva muitas
vezes a contrariar o governante de plantão e algumas vezes a contrariar a
própria opinião majoritária da população.
Lula e Bolsonaro manifestam, portanto, uma
incompreensão não apenas sobre a prerrogativa presidencial de indicar nomes
para o STF, mas sobre a própria Corte constitucional. Ao tentarem submeter o
Supremo à sua interferência política, eles enfraquecem a autoridade do STF
perante a população.
Nem se diga que, ao atuar assim, o
presidente da República estaria apenas promovendo suas causas e seu ideário
político. Isso deve ser feito junto ao Congresso. Quando se atua assim perante
o Judiciário – ignorando sua natureza, sua função e seu âmbito específico de
competência –, o Executivo interfere no bom funcionamento do Estado Democrático
de Direito. Como um todo, o poder estatal torna-se menos apto a servir a
população.
A politização das indicações para o STF
contribui para a percepção de desconfiança da população em relação à Corte
constitucional, especialmente no quesito imparcialidade. E as eventuais
relações de compadrio e de dependência entre o presidente da República e seus
indicados são um capítulo especialmente preocupante desse fenômeno.
A tolerância com indicações à base de
tubaína, como se fosse algo normal, significaria pactuar com um aspecto central
do bolsonarismo: o exercício do poder configurado pelas relações de amizade. O
eleitor rejeitou esse modo de atuar. Não há por que Lula dar agora essa vitória
a Bolsonaro, perpetuando uma deformação tão contrária aos ideais da República.
As cidades no pós-pandemia
O Estado de S. Paulo
O Índice de Condições de Vida melhorou,
exceto em relação à ‘estabilidade’, refletindo crescentes agitações sociais.
Nas cidades latino-americanas, a miséria segue sendo maior desafio
Por dois anos um inimigo invisível dominou
as cidades, enquanto os cidadãos se entrincheiravam em suas casas. Agora que a
pandemia passou, como estão as condições de vida nas cidades?
Todos os anos, a Economist Intelligence
Unit publica um Índice de Condições de Vida (liveability), avaliando 170
cidades a partir de 30 fatores agrupados em cinco categorias: estabilidade,
saúde, cultura e meio ambiente, educação e infraestrutura. A última edição traz
o título sugestivo de Otimismo em meio à instabilidade.
O otimismo é realista. A média dos
indicadores cresceu, atingindo seu ponto mais alto em 15 anos. Após a pressão
sobre o sistema hospitalar e o fechamento das escolas, indicadores de educação
e, sobretudo, de saúde melhoraram significativamente, especialmente na Ásia, no
Oriente Médio e na África.
Paradoxalmente, as metrópoles atraem muitas
pessoas, mas também muitos dissabores. Dos tempos da Babilônia até as distopias
cinematográficas, as grandes cidades povoam o imaginário popular como núcleos
condensados de insalubridade, violência e egoísmo. Mas o índice desmoraliza
esse mito, mostrando que grandes cidades podem ser um lugar agradável para
viver. Paradigmático é o caso da maior de todas, Tóquio, com 14 milhões de
habitantes (37 milhões na área metropolitana). É um dos lugares que oferecem
melhores condições de vida no mundo, com transporte público pontual, bairros
seguros, ruas limpas e mais restaurantes estrelados do que qualquer outra
cidade. Ela oferece lições não só pelos sucessos de seu planejamento urbano,
mas pelos seus fracassos.
Desde o início do século 20, Tóquio focou
em transporte público, priorizando, ao invés de rodas, trilhos que se
espalharam pelos seus subterrâneos. Por outro lado, com poucos recursos no
pós-guerra, a prefeitura malogrou em seu intento de implementar o ethos
modernista e separar funções da cidade, como trabalho e moradia, tal como se
fez, por exemplo, no desenho de Brasília. Enquanto grandes empresas nos EUA se
deslocavam aos subúrbios, no Japão elas se concentraram em torno dos núcleos de
transporte, incentivando o uso de trens e metrôs. À revelia dos planos
oficiais, os bairros cresceram aglomerando usos mistos, tornando-se mais
igualitários ao invés de mais estratificados. Tóquio se tornou uma cidade
policêntrica, com muitos centros, não um. Assim, a capital japonesa
concretizou, involuntariamente, os objetivos que São Paulo, por exemplo, busca
conquistar por meio de seu Plano Diretor.
Mas as cidades também são laboratórios que
concentram os dramas de seus países. No último ano, o único indicador que
registrou retrocessos ao redor do mundo foi a “estabilidade”. Não só cidades
nas últimas posições do ranking, como Damasco ou Trípoli, foram assoladas por
conflitos, terrorismo e agitações sociais, como nas cidades europeias e
norte-americanas se viu um aumento de protestos e tumultos civis, refletindo
percepções de corrupção, aumento do custo de vida ou ondas de delinquência.
Desde 2019, todas as cidades
latinoamericanas caíram no ranking, não tanto por uma piora nas suas condições
de vida, mas pela melhora de outras cidades no mundo, especialmente na Ásia. A
pobreza e a desigualdade são persistentes. Ainda que índices de violência em
assentamentos irregulares, como as favelas do Rio de Janeiro, tenham melhorado,
o acesso ao saneamento e outros serviços básicos é precário. Os extremos
climáticos se intensificam, mas os investimentos em prevenção de desastres são
escassos, deixando um rastro de destruição, por exemplo, nas épocas de
enchentes e deslizamentos. Erradicar a miséria e mitigar impactos climáticos
continua a ser o maior desafio das cidades da América Latina. A busca por
metais e minerais da região valiosos para a transição energética é uma fonte de
recursos que não pode ser desperdiçada.
Em 1950, só 30% da população mundial era
urbana; em 2050, serão quase 70%. Assim, o futuro da cidadania no planeta
depende – literalmente, e cada vez mais – das respostas que os cidadãos darão
aos desafios de suas cidades.
Um laboratório da autocracia chinesa
O Estado de S. Paulo
China quer transformar o mundo, e o que
ocorre em Hong Kong ilustra a opacidade e a arbitrariedade de suas estratégias
A China tem um plano para uma ordem global
alternativa à arquitetada no pós-guerra pelas democracias ocidentais. Em tese,
a chamada “Iniciativa de Desenvolvimento Global” é generosa. O mundo precisa de
“harmonia entre o homem e a natureza”, disse o líder chinês Xi Jinping à ONU,
acrescentando que o desenvolvimento econômico deve “beneficiar a todos”. Na
prática, Pequim utiliza seus músculos econômicos para arregimentar países em
desenvolvimento e ampliar sua influência em fóruns internacionais a fim de
criar um mundo amigável ao seu modelo autocrático.
No ano passado, por exemplo, logo após o
Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU apontar “sérias violações aos
direitos humanos” de minorias muçulmanas em Xinjiang, Pequim mobilizou um
plantel de países em desenvolvimento para derrubar uma moção solicitando debate
sobre esses abusos. Na sequência, alistou 66 membros – a maioria receptores de
empréstimos pela Nova Rota da Seda – para apoiar uma declaração celebrando
conquistas chinesas nos direitos humanos. A expansão do Brics ilustra a
opacidade e a arbitrariedade dessas transações. O que vem ocorrendo em Hong
Kong mostra como essa opacidade e arbitrariedade operam sem os freios e
contrapesos das relações internacionais.
Este ano é o 26.º desde que Hong Kong foi
devolvida pelo Reino Unido à China sob a condição de que até 2047 ela gozaria
de autonomia, princípios democráticos e liberdades fundamentais, sob o modelo
“um país, dois sistemas”. Foi também o segundo ano desde que Pequim impôs uma
Lei de Segurança Nacional sobre Hong Kong. Um relatório da União Europeia
catalogou seus desdobramentos. Políticos pró-democracia foram impedidos de
concorrer às eleições, quando não exilados ou presos, junto com centenas de
ativistas e jornalistas. A submissão não foi totalmente consumada. Os
honcongueses ainda dispõem de liberdades inimagináveis na China continental. As
redes sociais não estão obliteradas pela “muralha digital” e a censura a livros
ou jornais é mais contida. Mas o relatório identifica novas pressões sobre
universidades, sindicatos e ONGs. Advertências contra uma “resistência branda”
são usadas para intimidar os cidadãos.
O drama de Hong Kong expõe não só o
descompromisso de Pequim com seus próprios pactos, mas sua hipocrisia.
Autoridades querem fazer crer que Hong Kong continua aberta aos negócios, e
alardeiam seu comprometimento em “manter o sistema de common-law e um
Judiciário independente”. Mas a Justiça fechou as portas do principal jornal
pró-democracia e condenou seu fundador, Jimmy Lai, alegando irregularidades
“comerciais”.
Em resumo, Pequim quer os bônus de esmagar os direitos e liberdades que fizeram de Hong Kong um centro global de comércio e finanças sem nenhum ônus. Os empresários que creem que os negócios ficarão imunes a um sistema legal viciado o fazem por sua conta e risco. Já a comunidade internacional tem o desafio de encontrar meios de mostrar à China que a quebra de compromissos internacionais não pode ficar impune.
Setembro é mês de valorização da vida
Correio Braziliense
A campanha foi inspirada no norte-americano
Mike Emme que se suicidiou. No velório foram distribuídos cartões com fitas
amarelas e frases motivacionais para qualquer um que estivesse, ou não, com
transtornos mentais ou emocionais
Nesta sexta-feira inicia-se o Setembro
Amarelo – mês de prevenção ao suicídio e aos trantornos mentais. A história da
cor amarela é triste, mas interessante. A campanha foi inspirada no
norte-americano Mike Emme, que tirou a própria vida aos 17 anos. O jovem tinha
um carro amarelo e, por conta disso, em seu velório, pais e amigos distribuíram
cartões com fitas amarelas e frases motivacionais para qualquer um que pudesse
estar enfrentando transtornos mentais e emocionais. Assim surgiu o Setembro
Amarelo.
De acordo com a Organizacão Mundial da
Saúde (OMS), são registrados mais de 700 mil suicídios em todo o mundo, sem
contar os episódios subnotificados. Segundo os especialistas, esse número pode
chegar a 1 milhão de casos. No Brasil, entre 2010 e 2019, foram 112.230 mil
mortes e nos últimos anos são aproximadamente 14 mil casos por ano, o que
corresponde a uma média de 38 suicídios notificados por dia.
O que mais preocupa é que um mapeamento
feito pela OMS, em 2022, elegeu o Brasil como o país que mais sofre de
ansiedade na América Latina, e sabe-se que esse é um dos fatores — ao lado
da depressão — que mais reforçam os pensamentos suicidas. Além disso,
novos dados da OMS divulgados recentemente, em junho de 2023, revelam que 31,6%
de quem lida com a ansiedade são jovens de 18 a 24 anos.
Não há dúvidas de que a pandemia e,
consequentemente, a tristeza decorrente de mais de 700 mil mortes por covid-19
no Brasil exacerbaram esse sentimento de vazio, de impotência, de medo, diante
de um vírus até então desconhecido. Fato é que quase ninguém ou ninguém saiu
mentalmente equilibrado dessa pandemia, mesmo naqueles casos em que a pessoa
não perdeu nenhum familiar ou não teve episódios da doença.
E se antes temas como depressão, suicídio e
burnout eram assuntos velados ou debatidos “à boca pequena”, hoje, tornaram-se
constantes. Quantos casos de TDAH (transtorno de deficit de atenção e
hiperatividade) foram diagnosticados, quantas famílias, hoje, discutem sobre
formas de ajudar seus filhos com TEA (transtorno do espectro autista)? É óbvio
que isso não significa que essas pessoas tenham pensamentos suicidas, mas esses
exemplos demonstram que a sociedade precisa lidar com problemas reais, que
afetam milhares de pessoas em todo o mundo, e não simplesmente colocá-los
debaixo do tapete ou fingir que não existem.
Falar sobre suicídio apenas neste mês ou no
dia 10, em que é lembrado o Dia Mundial da Prevenção ao Suicídio, ajuda, mas
não muito. Enquanto governos e sociedade civil não se atentarem para a
relevância de discutir o tema e tudo o que gira em torno desse problema,
podemos contar somente com datas especiais e com o trabalho dos Centros de
Valorização da Vida (CVV), que atualmente mantêm 120 postos de atendimento e a
linha de telefone 188, gratuita e 24 horas por dia, para prestar assistência e
apoio emocional a quem precisa. O CVV realiza mais de 3 milhões de atendimentos
anuais, por aproximadamente 4 mil voluntários, localizados em 24 estados, além
do Distrito Federal.
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