Eu & / Valor Econômico
Só demagogos defendem soluções mágicas. Os
retornos obtidos com a redução de despesas advindas de uma reforma
administrativa virão ao longo de anos
Toda vez que o Congresso Nacional anuncia
que fará uma reforma administrativa, muitos compram a ideia de que sairá daí
uma solução rápida e salvadora para reduzir os gastos públicos. Embora seja
fundamental e possível cortar várias despesas que são ineficientes e injustas,
qualquer grande projeto de reformulação da gestão pública tem de se guiar por
um objetivo maior: criar as condições para servir melhor aos cidadãos. Mais do
que uma proposta restritiva de administração pública, precisamos capacitar o
Estado para responder efetivamente à sociedade.
Há 30 anos pesquiso o tema da reforma do
Estado e da gestão pública. Aprendi muito com minhas pesquisas e consultorias,
e obviamente muito mais com outros estudiosos brasileiros e estrangeiros, sem
me esquecer do aprendizado advindo do convívio com gestores públicos e da
conversa com os vulneráveis que mais dependem das políticas públicas.
Mas meu grande mestre no tema sempre foi Luiz Carlos Bresser-Pereira, com sua sabedoria de fazer as perguntas mais profundas, sua criatividade em propor soluções práticas e inovadoras, sua integridade em lidar com a coisa pública e, não posso esquecer, sua generosidade no debate intelectual. E, dos ensinamentos dele, nunca esquecerei o mais importante: a reforma do Estado tem como pressuposto último melhorar a vida dos cidadãos - o resto deve vir para realizar esse intento.
Os congressistas devem seguir a lição de
Bresser, um bem-sucedido reformador. Ele conseguiu organizar uma máquina
pública que não tinha sequer seus dados de pessoal organizados. Tomou medidas
contra privilégios corporativos e, ao mesmo tempo, iniciou um processo de
reconstrução de carreiras de Estado. Propôs novas modalidades de organização da
administração pública, e embora não tenha conseguido que seu modelo fosse
integralmente incorporado, plantou sementes que foram aproveitadas por governos
subnacionais de partidos diferentes. Repensou a questão da profissionalização
da administração pública, fortalecendo a formação de quadros pela via da Escola
Nacional de Administração Pública (Enap), e discutiu a necessária avaliação
contínua dos funcionários públicos, para que a estabilidade, essencial nos
regimes democráticos, fosse garantida por meio do mérito.
Evidentemente que houve alguma mudança de
cenário de lá para cá. Entretanto, os pressupostos principais do modelo
bresseriano podem guiar a reforma da gestão pública brasileira no século XXI. O
primeiro deles é que as reformas são incrementais, nunca definitivas e nem
feitas de uma vez só, num lance mágico e salvador. Bresser nunca desprezou as
reformas realizadas no passado porque dizia que elas responderam aos seus
contextos e, ademais, traziam lições para o presente. Quando propôs seu modelo
reformista, imaginava que sua implementação ocorreria ao longo dos anos, com
aprendizados no decorrer do caminho. Eu diria algo mais: as transformações na
organização da administração pública e na reestruturação da carreira feitas por
ele foram fundamentais para a expansão qualificada das políticas sociais
durante o período Lula. Que herança bendita!
O modelo incremental é uma lição para
aqueles que, erroneamente, acreditam numa reforma que vai resolver rapidamente
os problemas da gestão pública brasileira. Os congressistas, se retomarem com
responsabilidade esse assunto, deveriam pensar num caminho de mudanças mais
amplo do que o dia seguinte da lei. É preciso ter espaço para uma legislação
que aprenda com a implementação e possa ser aperfeiçoada continuamente.
Outra lição da reforma Bresser foi o
diálogo entre políticos e especialistas, feito durante os quatro anos de sua
atuação. Neste ponto, deve-se evitar uma visão que demonize a classe política
ou os burocratas. Enquanto os congressistas trazem a legitimidade social do
voto, os servidores públicos carregam consigo grande conhecimento e experiência
das políticas públicas. É preciso buscar consensos e compromissos entre esses
dois grupos, em vez de se instalar um jogo de soma-zero. Também é essencial que
o Congresso Nacional, ao voltar à discussão da reforma administrativa, ouça
especialistas brasileiros e estrangeiros externos ao governo. Eles podem
apresentar evidências e diagnósticos contra a lógica do “reformismo
terraplanista” que vigorou na Presidência de Bolsonaro, com resultados
desastrosos.
As lições de Bresser envolvem ainda
abandonar uma visão minimalista de Estado. O maior problema do país é a
desigualdade, de modo que uma pura redução do aparato governamental seria
desastrosa. Claro que a reforma pode e deve racionalizar os gastos públicos do
ponto de vista fiscal. Há espaço para cortes de dois tipos de despesas. Uma
relativa a privilégios de determinadas corporações, que já não respeitam nenhum
teto remuneratório e estão cheias de penduricalhos. Além disso, é possível
ganhar eficiência com boas políticas de governo eletrônico, com a redução de
áreas-meio que são obsoletas, organizando melhor o dimensionamento das
carreiras e de sua gradação salarial ao longo do tempo, bem como por meio da
melhoria da coordenação governamental e da utilização de novas formas
organizacionais.
Mesmo que seja possível e necessário buscar
esses ganhos fiscais, seu resultado de curto prazo não será do tamanho imaginado
por aqueles que esperam, do dia para a noite, uma economia que fecharia a conta
do novo marco fiscal. Isso é um tipo de solução mágica que só cabe a demagogos
defender. Os retornos obtidos com a redução de despesas advindas de uma reforma
administrativa virão ao longo de anos. Quem prometeu que faria esse ajuste de
forma rápida e indolor foram Collor e Paulo Guedes. Ambos fracassaram
rotundamente e, pior, não criaram condições para a melhoria dos serviços
públicos para os cidadãos. Segui-los é perder legitimidade e eleições -
Bolsonaro que o diga.
A temática da avaliação de desempenho da
burocracia e das políticas públicas é, sem dúvida alguma, essencial no desenho
de qualquer reformulação da administração pública. Bresser bebia na experiência
internacional da época e propunha uma gestão pública orientada por resultados,
ideia que alimentou posteriormente várias iniciativas bem-sucedidas no governo
federal e nos entes subnacionais. Tudo que puder ser feito para guiar, medir e
aprender com o desempenho governamental, individual e coletivo, será bem-vindo.
Cabe, no entanto, saber que tais medidas também exigem um tempo de maturação, e
o mais importante não é punir ou restringir a ação dos gestores brasileiros. O
mais relevante é criar capacidades institucionais para produzir melhores
políticas públicas.
Orientar a gestão pública por um modelo
baseado numa governança construtora de capacidades para o desenvolvimento e
para produção de políticas voltadas aos cidadãos é o caminho proposto
atualmente pela literatura mais avançada sobre o assunto, tanto no plano
nacional como no internacional. Esse tipo de conhecimento é a bússola
fundamental para tomar melhores decisões sobre a reforma do Estado, como
Bresser me ensinou. Se hoje ele fosse ministro, estaria se utilizando das
pesquisas de ponta, bem como estaria visitando as experiências reformistas mais
inovadoras, tal como fez entre 1995 e 1998.
Nesta linha, há uma extensa lista de bons
trabalhos que poderiam se tornar referências para a nova discussão na Câmara
Federal e na opinião pública. Para começar, uma sugestão é ler o livro
“Políticos versus burocratas: Reformas administrativas em perspectiva
comparada” (Editora FGV, 2023), escrito por André Marenco. Nele, é possível ver
qualidades, problemas e desafios do Estado brasileiro ao longo da história, sem
adotar um visão de solução única e imediata para a reforma administrativa. Além
disso, o texto mostra que tão importante quando o conteúdo reformista são suas
formas de implementação.
Dada a importância dos caminhos
reformistas, do mesmo modo que temos muito a aprender com a perspectiva que
orientou a reforma Bresser, vale muito compreender as razões que têm favorecido
hoje o bom andamento da reforma tributária e do novo marco fiscal. Suas
tramitações revelam claramente que é preciso definir prioridades urgentes,
construir um modelo baseado no diálogo entre políticos e especialistas e entre
o Executivo e o Congresso, conquistar apoio social às medidas e estabelecer um
cronograma incremental de mudanças, algumas se iniciando agora e outras com
transição mais longa. Esse é um roteiro factível e baseado em evidências que
pode guiar a reforma administrativa.
Não é possível saber ainda se o Congresso
Nacional vai mesmo levar adiante uma proposta de reforma administrativa. De
todo modo, o país precisará continuamente de reformas de gestão, numa trilha
incremental e que responderá a desafios dinâmicos. A única coisa que não deve
mudar é seu objetivo ontológico: ter um Estado voltado às demandas dos cidadãos
brasileiros, em termos de democratização, eficiência, efetividade e equidade.
Essa é a lição mais profunda que Bresser me deixou, e que espero ser um brado
profundo que atinja as próximas gerações.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Um comentário:
"...e discutiu a necessária avaliação contínua dos funcionários públicos, para que a estabilidade, essencial nos regimes democráticos, fosse garantida por meio do mérito."
Essencial para a democracia é a participação cada vez maior da população.
Não vejo como possa haver avaliação de mérito com estabilidade e o contrário, estabilidade via avaliação do mérito, é negar a realidade; é delírio.
MAM
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