segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Ricardo Henriques - Por uma utopia pragmática

O Globo

É preciso ter altas ambições de transformação, enfrentando com determinação nossa dívida social histórica. Mas, sem capacidade de realização, tudo isso será, mais uma vez, só um desejo

Renovadas as energias na passagem de ano, é hora de agir diante de imensos desafios pela frente. Em escala global, provavelmente nada é mais urgente do que enfrentar a emergência climática. Estimativas confiáveis apontam 2024 como ainda mais quente que 2023, quando o planeta teve a maior temperatura média já registrada. O ano também será de decisões cruciais sobre o futuro da democracia no mundo.

Em nível nacional — somados aos problemas históricos de pobreza, desigualdade e racismo —, teremos tarefas inadiáveis, como o enfrentamento da crise de segurança pública, o avanço significativo na qualidade da educação, a transição para uma economia de baixo carbono, além da melhoria das condições de saúde, transporte e saneamento nas cidades.

Caberia muito mais na lista, e para dar conta dos vários desafios é necessário não apenas esforços, recursos, talento, criatividade, persistência e vontade política. Precisamos de novas ambições e visões de futuro para além de mudanças incrementais, conciliando utopia com pragmatismo.

A combinação de objetivos grandiosos com alta capacidade de implementação não é uma ideia abstrata. No Brasil, o Plano Real, o Bolsa Família e a concepção e constitucionalização da saúde como direito universal — iniciada com a implantação do SUS — são exemplos recentes de conciliação dessas dimensões.

Em nível global, desde a produção e disseminação de vacinas que salvaram milhões de vidas, até o exemplo de nações que deram um salto educacional no intervalo de uma geração, temos evidências de que grandes esforços coletivos, quando bem coordenados e executados, podem entregar melhorias concretas para a população.

Precisamos da utopia para projetar um futuro — não muito distante — que incorpore transformações que hoje podem soar extraordinárias, mas devem compor o processo de construção de um novo pacto social. Pacto a serviço do compromisso ético com o bem-estar de todos num mundo em que a responsabilidade deve ser, cada vez mais, compartilhada.

O pragmatismo, por outro lado, nos aproxima da realidade, reconhecendo que é preciso competência e capacidade técnica. Isso envolve diagnóstico preciso, planejamento adequado, monitoramento constante, avaliação de resultados e correção de rotas.

Exige também aperfeiçoamento contínuo da capacidade estatal, criando condições objetivas para que, na ponta, a política seja implementada com elevada eficácia, eficiência e efetividade. Conforme já argumentei aqui, resultados sociais não serão realizados por geração espontânea.

A utopia sem pragmatismo tende a gerar resultados frustrantes, com graves consequências. Quando a população não mais confia que as instituições democráticas são capazes de entregar as generosas promessas feitas, aumenta o risco de atração por discursos populistas e autoritários, que prometem (mesmo sem capacidade de entrega) soluções simples para problemas complexos.

O campo progressista e democrático, portanto, precisa ser capaz de incluir esse pragmatismo em seus mais nobres propósitos sociais.

Por outro lado, o pragmatismo descolado de um projeto ambicioso e generoso de nação leva à acomodação, à naturalização das desigualdades ou manutenção do status quo. De pouco adianta dispor da melhor técnica e capacidade de implementação se os objetivos forem medíocres. E, sem um norte para as políticas públicas, corremos o risco de executar vários projetos fragmentados e insuficientes.

Embarcar nesse esforço para transformar nossos modos de vida e modelo de desenvolvimento implica, no caso do Brasil, aproveitar a oportunidade para superar mazelas históricas que fraturam nosso tecido social, em particular as inaceitáveis desigualdades econômicas, étnico-raciais, de gênero, territoriais etc.

Seria trágico, mas não inédito, ver concretizada a célebre passagem do romance de Lampedusa: “algo precisa mudar para que tudo fique como está.” Vivemos isso na Independência, na Abolição, na República. Mudar sem transformar, novamente, não é uma opção.

Impedir a repetição dessa trajetória exige projetar uma sociedade contemporânea e avançada, cujos desafios são superados por soluções democráticas e eficazes. Um país dinâmico e socioambientalmente sustentável, justo, sem desigualdades extremas e racismo, e posicionado na fronteira do conhecimento e da inovação.

Em resumo, uma utopia pragmática implica unir razão e paixão. Ter altas ambições de transformação, enfrentando com determinação nossa dívida social histórica e, também, superando a ameaça crescente da armadilha da renda média. Mas, sem capacidade de realização, tudo isso será, mais uma vez, só um desejo.

 

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