O Globo
É preciso ter altas ambições de
transformação, enfrentando com determinação nossa dívida social histórica. Mas,
sem capacidade de realização, tudo isso será, mais uma vez, só um desejo
Renovadas as energias na passagem de ano, é
hora de agir diante de imensos desafios pela frente. Em escala global,
provavelmente nada é mais urgente do que enfrentar a emergência climática.
Estimativas confiáveis apontam 2024 como ainda mais quente que 2023, quando o
planeta teve a maior temperatura média já registrada. O ano também será de
decisões cruciais sobre o futuro da democracia no mundo.
Em nível nacional — somados aos problemas históricos de pobreza, desigualdade e racismo —, teremos tarefas inadiáveis, como o enfrentamento da crise de segurança pública, o avanço significativo na qualidade da educação, a transição para uma economia de baixo carbono, além da melhoria das condições de saúde, transporte e saneamento nas cidades.
Caberia muito mais na lista, e para dar conta
dos vários desafios é necessário não apenas esforços, recursos, talento,
criatividade, persistência e vontade política. Precisamos de novas ambições e
visões de futuro para além de mudanças incrementais, conciliando utopia com
pragmatismo.
A combinação de objetivos grandiosos com alta
capacidade de implementação não é uma ideia abstrata. No Brasil, o Plano Real,
o Bolsa Família e a concepção e constitucionalização da saúde como direito
universal — iniciada com a implantação do SUS — são exemplos recentes de
conciliação dessas dimensões.
Em nível global, desde a produção e
disseminação de vacinas que salvaram milhões de vidas, até o exemplo de nações
que deram um salto educacional no intervalo de uma geração, temos evidências de
que grandes esforços coletivos, quando bem coordenados e executados, podem
entregar melhorias concretas para a população.
Precisamos da utopia para projetar um futuro
— não muito distante — que incorpore transformações que hoje podem soar
extraordinárias, mas devem compor o processo de construção de um novo pacto
social. Pacto a serviço do compromisso ético com o bem-estar de todos num mundo
em que a responsabilidade deve ser, cada vez mais, compartilhada.
O pragmatismo, por outro lado, nos aproxima
da realidade, reconhecendo que é preciso competência e capacidade técnica. Isso
envolve diagnóstico preciso, planejamento adequado, monitoramento constante,
avaliação de resultados e correção de rotas.
Exige também aperfeiçoamento contínuo da
capacidade estatal, criando condições objetivas para que, na ponta, a política
seja implementada com elevada eficácia, eficiência e efetividade. Conforme já
argumentei aqui, resultados sociais não serão realizados por geração
espontânea.
A utopia sem pragmatismo tende a gerar
resultados frustrantes, com graves consequências. Quando a população não mais
confia que as instituições democráticas são capazes de entregar as generosas
promessas feitas, aumenta o risco de atração por discursos populistas e
autoritários, que prometem (mesmo sem capacidade de entrega) soluções simples
para problemas complexos.
O campo progressista e democrático, portanto,
precisa ser capaz de incluir esse pragmatismo em seus mais nobres propósitos
sociais.
Por outro lado, o pragmatismo descolado de um
projeto ambicioso e generoso de nação leva à acomodação, à naturalização das
desigualdades ou manutenção do status quo. De pouco adianta dispor da melhor
técnica e capacidade de implementação se os objetivos forem medíocres. E, sem
um norte para as políticas públicas, corremos o risco de executar vários
projetos fragmentados e insuficientes.
Embarcar nesse esforço para transformar
nossos modos de vida e modelo de desenvolvimento implica, no caso do Brasil,
aproveitar a oportunidade para superar mazelas históricas que fraturam nosso
tecido social, em particular as inaceitáveis desigualdades econômicas,
étnico-raciais, de gênero, territoriais etc.
Seria trágico, mas não inédito, ver
concretizada a célebre passagem do romance de Lampedusa: “algo precisa mudar
para que tudo fique como está.” Vivemos isso na Independência, na Abolição, na
República. Mudar sem transformar, novamente, não é uma opção.
Impedir a repetição dessa trajetória exige
projetar uma sociedade contemporânea e avançada, cujos desafios são superados
por soluções democráticas e eficazes. Um país dinâmico e socioambientalmente
sustentável, justo, sem desigualdades extremas e racismo, e posicionado na
fronteira do conhecimento e da inovação.
Em resumo, uma utopia pragmática implica unir
razão e paixão. Ter altas ambições de transformação, enfrentando com
determinação nossa dívida social histórica e, também, superando a ameaça
crescente da armadilha da renda média. Mas, sem capacidade de realização, tudo
isso será, mais uma vez, só um desejo.
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