Valor Econômico
Após 20 anos desde sua aprovação, a Lei
10.835/2004 que instituiu a renda básica continua uma promessa não realizada
O dia 8 de janeiro ficará marcado para sempre
no país como aquele em que a Praça dos Três Poderes foi invadida por golpistas
e os prédios da Presidência da República, do Congresso e do Supremo Tribunal
Federal foram vandalizados. Mas outro acontecimento importante e menos lembrado
ocorreu há vinte anos no mesmo dia 8 de janeiro. Trata-se da instituição da
renda básica de cidadania (RBC) por meio da Lei 10.835/2004.
A lei menciona que o valor do benefício deveria ser concedido a todos os brasileiros e “suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde”. A lei ainda informava que seu início se daria em 2005 e que sua abrangência deveria ser alcançada em etapas, sendo priorizadas as pessoas mais pobres. Após 20 anos desde sua aprovação, a Lei 10.835/2004 continua uma promessa não realizada.
No ano passado, por ocasião da recriação do
Programa Bolsa Família (PBF), através da Lei 14.601 de 19 de junho de 2023, a
RBC voltou a ser mencionada. No primeiro parágrafo do primeiro artigo, é
informado que o PBF constitui uma “etapa do processo gradual e progressivo de
implementação da universalização da renda básica de cidadania”. Passados mais
de seis meses desde então, a renda básica de cidadania permanece esquecida.
A RBC tem sido defendida incansavelmente pelo
ex-senador e atual deputado estadual de São Paulo Eduardo Suplicy. A ideia é
antiga e está apresentada em seu livro “Renda Básica de Cidadania - A Saída é
pela Porta”, cuja oitava edição foi publicada em 2022 conjuntamente pela Cortez
Editora e pela Editora Perseu Abramo. Vários pensadores, filósofos e
economistas importantes são mencionados no livro como defensores da ideia da
concessão de uma renda para todos independentemente de trabalharem ou não.
Entre eles, Bertrand Russel, Frederick Hayek, Milton Friedman, James Tobin,
John Kenneth Galbraith, Josué de Castro, Celso Furtado e vários outros. Até
mesmo o Papa Francisco se pronunciou a favor da RBC no livro “Vamos Sonhar
Juntos”, Intrínseca (2020).
Suplicy menciona em seu livro diversas
experiências internacionais de aplicação da renda básica de cidadania, sendo a
mais ampla a do Alasca nos Estados Unidos. A universalização do programa no
Estado mostrou um grande potencial na melhoria da distribuição de renda,
passando daquele com a distribuição mais desigual na década de 1980 para um dos
dois mais igualitários nos Estados Unidos. Atualmente, há mais de 130 países
debatendo e realizando experiências de renda básica no mundo.
No Brasil, o caso mais bem sucedido de RBC
ocorre no Município de Maricá no Rio de Janeiro. O programa foi criado em 2013
e beneficia atualmente 93 mil moradores, cerca de metade da população do
município, distribuindo mensalmente 230 mumbucas (equivalente e R$ 230) a cada
um. A prefeitura pretende universalizar no futuro o programa para atingir toda
a população do município. A moeda mumbuca é bem aceita pelo comércio local
funcionando por meio de um cartão de débito. É verdade que a experiência de
Maricá possui características específicas difíceis de serem replicadas na maior
parte dos municípios brasileiros. Possui uma população relativamente pequena e
muitos recursos provenientes do maior volume de receitas do petróleo no país
(royalties e participações especiais). De qualquer forma, trata-se de um caso
bem-sucedido, representando um bom exemplo do que pode ser feito no Brasil.
Muitas vezes a RBC não é bem compreendida
pelas pessoas que a criticam por não ser um programa focalizado como o PBF
voltado para famílias pobres. Argumenta-se que seria um desperdício de recursos
distribuir renda para todos, inclusive para os mais ricos. Esse tipo de crítica
desconsidera o fato que todos contribuem para o financiamento da RBC. Num
sistema tributário justo, os mais ricos pagam mais impostos e,
consequentemente, seriam os que mais contribuiriam para seu financiamento. Além
disso, sendo universal, a RBC elimina toda a burocracia de controle da renda de
cada um para poder receber o benefício.
A RBC deve colaborar significativamente para
o cumprimento dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil de
construir uma sociedade livre justa e solidária; garantir o desenvolvimento
nacional; erradicar a pobreza e a marginalização; reduzir as desigualdades
sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, conforme explicita
o artigo 3 de nossa Constituição. Ela representa um direito do cidadão, independentemente
de sua situação socioeconômica. É do ponto de vista da dignidade e da liberdade
do ser humano que a RBC se posiciona.
Outra crítica feita à RBC é seu custo e a
dificuldade de caber dentro do atual orçamento público do país. Considerando
uma população da ordem de 205 milhões de pessoas e fixando um valor de R$ 100
por pessoa o total atingiria R$ 20,5 bilhões para cada pagamento realizado.
Trata-se de um valor considerável. Cabe lembrar, entretanto, que segundo a Lei
10.835/2004 que instituiu a RBC, a abrangência do programa deve ser atingida em
etapas, começando pelos mais pobres. Portanto, a RBC poderia ter início com uma
pequena parcela da população e um valor inicial compatível com a
disponibilidade de recursos públicos.
É sabido que a pobreza no Brasil atinge
principalmente a população mais jovem. Assim, apenas a título de ilustração,
seguindo o espírito da Lei 10.835/2004 de iniciar pelos mais pobres, a primeira
etapa de implantação poderia ter início com os mais jovens, definindo-se uma
faixa etária até determinada idade que seria a primeira a receber a RBC. Em
seguida, esta faixa seria aos poucos ampliada para novos beneficiários até
atingir toda a população no futuro.
Uma forma de se caminhar para a
regulamentação da Lei 10.835/2004 poderia ser a montagem de um grupo de
trabalho que incluísse pessoas de notório conhecimento sobre o assunto, além de
representantes do governo e da sociedade, para propor um formato e as etapas
como a RBC poderia ser implementada no país. Vinte anos já se passaram. Está
mais do que na hora de se voltar a discutir a questão para que RBC seja
finalmente implantada no Brasil.
*João Saboia é professor emérito do Instituto
de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ).
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