O Estado de S. Paulo
Desconfio que foi a propósito de Franz
Beckenbauer e seu jeito sobranceiro de jogar, sempre de cabeça erguida, que
ouvi ou li pela primeira vez esta observação: “Ele nem sabe qual a cor da
grama”.
Outros, geralmente volantes e meio-campistas,
como Didi, Falcão e Ademir da Guia, também fizeram por merecê-la, mas é quase
unânime a certeza de que, no futebol das últimas décadas, o kaiser do Bayern e
da seleção alemã, zagueiro de ofício, reinou absoluto no quesito elegância.
Craque dentro e fora do campo, inclusive como cartola, Beckenbauer teve participação decisiva até na entrada do primeiro negro no escrete teutônico, Erwin Kostedde. Atletas e dirigentes racistas opuseram-lhe resistência; Franz nem precisou de prorrogação para derrotá-los.
Gerd Wenzel, o jornalista que, entre nós,
mais de perto acompanha o futebol alemão, revelou há dias quão determinante foi
a mãe de Beckenbauer para a formação ética e moral do jogador. Se influenciou o
filho intelectualmente, não sei. Mas é fato que ele adorava livros. Armando
Nogueira me contou têlo surpreendido lendo Shakespeare na concentração dos
alemães na Copa de 1974.
Não são muitos os jogadores de futebol
chegados a livros e muito menos versados em escrevê-los, mas eles existem.
Nenhum deles, por certo, ambiciona emular Camus, goleiro do Racing
Universitário da Argélia quase cem anos atrás, e ainda estou para conhecer
quem, dos nossos, além do Tostão, possa ser tranquilamente identificado como
intelectual.
Até nessa disputa, os argentinos levam a
melhor sobre a gente.
O atacante e depois técnico argentino César
Luís Menotti, campeão do mundo de 1978, sabe de cor trechos inteiros da prosa
de Ernesto Sábato. O atacante Jorge Valdano, um dos hermanos que fizeram
história no Real Madrid e também virou técnico e comentarista esportivo, lê
muita poesia e, por conta dos livros de contos que escreveu e editou, ganhou o
epíteto de “filósofo do futebol”.
Pelo que depreendi das crônicas de Enrique
Vila-Matas no El País, os espanhóis, notadamente os bascos e catalães, convivem
sem apertos com a fauna futebolística, compartilhando as mesmas mesas de bares
e restaurantes e as mesmas conversas.
Com o brilhante Pep Guardiola, autor de pelo
menos um livro (Mi Gente, Mi Fútbol), é mole. Idem com o atacante Pardeza,
ademais formado em Direito e Filologia pela Universidade de Saragoça, que, como
Guardiola, prefere falar sempre mais de literatura que do esporte que lhes deu
renome mundial.
Qual uma dupla de adolescentes, o catalão
Vila-Matas e seu colega basco Bernardo Atxaga disputam entre si quem tem mais
amigos de chuteiras. Juntos já abordaram em público vários boleiros cujos
interesses se estendem além dos gramados, como o goleiro Zubizarreta e o
extrema Ernesto Valverde. Conheceram ambos numa feira literária em Valência.
Como? Autografando livros – de sua própria lavra.
*É jornalista e escritor, autor de ‘Esse
mundo é um pandeiro’, entre outros.
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