terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Andrea Jubé - A incrível arte da transfiguração na política

Valor Econômico

Metamorfose mais emblemática continua sendo a do vice-presidente Geraldo Alckmin

“Quando Gregor Samsa, certa manhã, despertou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso. Estava deitado sobre as costas duras como couraça e viu, quando ergueu um pouco a cabeça, a barriga abaulada, marrom, dividida em segmentos arqueados, sobre a qual o lençol, pronto para deslizar por completo, já mal se segurava”.

Assim começa “A metamorfose”, de Franz Kafka: uma das sequências mais conhecidas e emblemáticas da literatura universal.

A transformação como capacidade fantástica ou instinto da condição humana inspirou igualmente escritores brasileiros. “Mecê tá ouvindo, nhem? Tá aperceiando Eu sou onça, não falei?! Ai. Não falei - eu viro onça? Onça grande, tupixaba. Ói unha minha: mecê olha - unhão preto, unha dura Cê vem, me cheira: tenho catinga de onça?”

Esta é uma das passagens de “Meu tio o Iauaretê”, conto de João Guimarães Rosa e obra-prima da literatura nacional, em que o narrador, um caçador, transfigura-se em onça, à medida que relata suas aventuras ao interlocutor.

Se a capacidade de se adaptar às diferentes situações é inerente ao ser humano, o dom de se metamorfosear extrapola os limites da palavra para se manifestar em outros seres ainda mais fantásticos que personagens kafkianos ou rosianos: os políticos, por exemplo.

Da literatura para a política, e ao rock nacional, vem à memória mais uma das inusitadas declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: “Há muito tempo eu digo que prefiro ser considerado uma metamorfose ambulante, ou seja, mudando à medida que as coisas mudam.”

A afirmação se deu em dezembro de 2007, no segundo mandato, quando Lula citou a música de Raul Seixas para pedir à base governista no Senado que votasse a favor da prorrogação da CPMF. O petista precisou justificar a mudança de posição porque, no passado, havia sido contrário ao imposto sobre transações financeiras, cujos recursos eram destinados à saúde.

A expertise desenvolvida pelos políticos para se transformarem a fim de se adaptarem às circunstâncias veio à tona como provocação à oposição após o evento de sexta-feira (2), em que o petista e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) selaram a parceria na construção do túnel entre Santos e Guarujá, e anunciaram a disposição de trabalharem juntos pelo Estado.

A fotografia em que Lula e Tarcísio aparecem de mãos dadas e esbanjando sorrisos correu as redes sociais no fim de semana e irritou os apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que interpretaram a postura republicana do governador paulista como um gesto de “traição”.

O pré-candidato do Psol à prefeitura da capital, Guilherme Boulos, não perdeu a deixa para fustigar os adversários, afirmando que “se bobear” Lula filiava Tarcísio no PT.

Rapidamente, a família Bolsonaro reagiu em defesa do aliado, que será cabo eleitoral estratégico nas eleições municipais para multiplicar as prefeituras do PL e demais siglas ligadas ao bolsonarismo. O ex-presidente declarou que Tarcísio é seu “irmão”, e o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) classificou o ato com Lula como “protocolar”.

Quadro técnico que migrou para a política pelas mãos de Bolsonaro, Tarcísio já foi um quadro do segundo escalão no governo Dilma Rousseff. Em 2023, desde a posse, posicionou-se ao centro, longe do bolsonarismo radical. Não por acaso seu principal aliado é o secretário de Governo e presidente nacional do PSD, Gilberto Kassab, cacique do centro político.

Em outra frente, um político que está em franco processo de metamorfose à esquerda é o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira - justamente uma das lideranças do PSD mineiro.

Egresso dos quadros da Polícia Civil, o ex-delegado com trajetória de político conservador, ex-aliado do PSDB mineiro, conquistou o concorrido posto de um dos auxiliares mais próximos de Lula, e aprovado pela primeira-dama Janja.

Vale lembrar que no ano passado, ao relançar o programa Luz para Todos na Amazônia, o ministro convidou Janja, publicamente, para ser madrinha do projeto. Nos últimos meses, Silveira passou a vestir camisetas em alguns atos, no lugar do terno convencional, na tentativa de adotar uma imagem de “político do povo”.

No auge da mutação, disparou telefonemas para conselheiros da Vale - privatizada há 27 anos - a pedido de Lula, reivindicando apoio para que o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega se tornasse CEO da empresa. Após a repercussão negativa, recuou.

A metamorfose mais emblemática continua sendo a do vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (Mdic), Geraldo Alckmin, que após o passado de embates viscerais com Lula, tornou-se seu companheiro de chapa e aliado na vitória de 2022.

Em cena antológica da campanha, Alckmin e Dona Lu dançam espremidos, mas felizes, junto a uma multidão de lulistas e petistas no feriado de 2 de julho em Salvador. A equipe de segurança havia recomendado a Lula e ao vice que não participassem da caminhada porque o risco era alto. Os apelos foram ignorados, e Alckmin e Dona Lu se esbaldaram como metamorfoses ambulantes.

 

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