O Estado de S. Paulo
Em várias partes do mundo, partidos e movimentos políticos têm apostado fortemente em projetos radicais e imediatistas para atrair eleitores
A América Latina foi palco de dois eventos
importantes no final de 2023: a posse do autodeclarado anarcocapitalista Javier
Milei como presidente da Argentina e a segunda rejeição, pela população
chilena, de uma nova Constituição para o país. Dois eventos que sugerem o
estado de espírito da política destes tempos, em que os tradicionais projetos
de reformas setoriais e progressivas são substituídos por projetos de mudanças
globais e imediatas.
No caso argentino, o desafio de Milei é solucionar uma profunda crise econômica e fiscal. Em seu discurso de posse, disse que “não há dinheiro” e que fará “um tratamento de choque” no país, porque “não há espaço para o gradualismo”. Ainda em suas palavras: “Hoje começa uma nova era na Argentina (...) Os argentinos expressaram de forma esmagadora uma vontade de mudança que não tem retorno. Não há volta atrás”. Logo após, Milei desvalorizou a moeda argentina, congelou obras públicas, reduziu subsídios, assinou um Decreto de Necessidade e Urgência promovendo uma desregulamentação da economia do país e, mais recentemente, propôs um pacote de medidas que prevê fim das eleições primárias, novas regras para reajuste de aposentados, aumento da pena de prisão para quem participar de atos contra o governo, etc. (Pacote de Milei decreta emergência até 2025, muda eleições, endurece segurança e desregula economia , Estadão, 27/12/2023).
Claramente, para o presidente argentino, é
hora de mudanças vastas e imediatas, “não há espaço para o gradualismo”.
No caso chileno, a substituição da Carta
vigente sob a ditadura de Augusto Pinochet já tinha sido objeto de um projeto
de 2019 – projeto que foi rejeitado pela população após uma Assembleia
Constituinte, no dizer deste jornal, “dominada por políticos radicais e
independentes sem disciplina partidária”, cujo resultado foi “uma lista de
desejos progressistas utópica e prolixa”. Agora, na segunda Assembleia, o
projeto da Constituição “foi desfigurado pela nova direita, que embutiu regras
pró-mercado controversas e princípios moralistas” (Constituinte não é guerra
cultural, 19/12/2023). Os chilenos foram de um lado a outro ao projetar sua
nova Carta, e ambos foram rejeitados pela população.
Compare-se, agora, esse furor de argentinos e
chilenos com o seguinte trecho do discurso de posse do ex-presidente Fernando
Henrique Cardoso no Congresso Nacional, em 1995: “Ao escolher a mim para
sucedê-lo (Itamar Franco), a maioria absoluta dos brasileiros fez uma opção
(...) pelas reformas estruturais necessárias para afastar de uma vez por todas
o fantasma da inflação (...) Tal como o abolicionismo, o movimento por reformas
que eu represento não é contra ninguém. Não quer dividir a Nação: quer uni-la
em torno da perspectiva de um amanhã melhor para todos” (biblioteca digital do
site do Senado Federal).
Esta referência, no discurso de Fernando
Henrique, à “perspectiva de um amanhã melhor para todos” também ilustra o
contraponto entre o reformismo de ontem e o imediatismo da política de hoje. O
reformista parte de “uma concepção evolutiva da história, a ideia de que a
história, assim como a natureza, non facit saltus, e o progresso é o produto
cumulativo de pequenas, e talvez até mesmo imperceptíveis, mudanças” (Norberto
Bobbio, Teoria geral da política).
Não é isso o que se tem visto na Argentina e
no Chile. Na Argentina, “não há espaço para o gradualismo” e a amplitude e
urgência das mudanças ostensivamente defendidas por Javier Milei se combinam ao
projeto ao mesmo tempo libertário e conservador do presidente. Um projeto que
consolida a guinada do libertarismo para a extrema direita, com seu apelo
direto às massas contra a “mídia” e as “elites” econômicas e intelectuais (vide
A rebeldia tornou-se de direita?, de Pablo Stefanoni). Um projeto que pouco tem
de uma “concepção evolutiva da história”, mirando sobretudo um passado a ser
recuperado no campo de valores individuais e hierarquias sociais (Milei se diz
contra a descriminalização do aborto, a “doutrinação marxista” nas escolas,
etc.).
No Chile, direita e esquerda buscaram uma
afirmação peremptória dos seus valores, na forma de aspirações progressistas ou
do par moralismo e neoliberalismo. O progresso, para os dois lados, não parecia
ser “o produto cumulativo de pequenas (...) mudanças”.
Neste período de instabilidade econômica,
social, institucional em várias partes do mundo, partidos e movimentos
políticos têm apostado fortemente em projetos radicais e imediatistas para
atrair seus eleitores. A fórmula poderia ser a seguinte: para um tempo imediato
(o tempo da tecnologia, da ansiedade, dos afetos), um poder imediato (logo,
monocrático, menos representativo). Esses projetos, no entanto, têm gerado
resultados decepcionantes ou mesmo trágicos, como mostraram o 6 de janeiro
norte-americano e o 8 de janeiro brasileiro. Talvez o progresso corra por uma
estrada mais longa, mas menos acidentada.
*Doutor em Direito pela USP e pela Università Degli Studi di Torino, integrante do Instituto Norberto Bobbio, é professor da Fadi e Facamp
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