Escândalo expõe falha no controle externo da Abin
O Globo
Autoridades devem aproveitar oportunidade
para aperfeiçoar regulação das ações de inteligência
As suspeitas de uso da Agência Brasileira de
Inteligência (Abin)
para fins políticos ou pessoais no governo Jair Bolsonaro são graves. Há
indícios de monitoramento ilegal via celular, confecção de relatórios contra
adversários e tentativa de atrapalhar o trabalho de investigadores. Além da
atividade da polícia e da Justiça, o episódio suscita ação noutra esfera — a
regulatória.
Não é a primeira vez que ficam patentes falhas no controle externo da Abin. O uso da agência já foi questionado durante a Operação Satiagraha, em 2008, com suspeita de espionagem ilegal de políticos e juízes. Ou no monitoramento em 2013 do então governador de Pernambuco, Eduardo Campos, pré-candidato à Presidência. Dificuldades na supervisão da inteligência também não são exclusivas do Brasil. Outras democracias adotam mecanismos próprios para evitar que a espionagem se volte contra a população em favor de interesses políticos ou privados.
Criada em 1999, a Abin é distinta do Serviço
Nacional de Inteligência (SNI), usado pelos militares durante a ditadura contra
opositores do regime. Seus servidores são civis, concursados e devem obediência
à Constituição. No campo jurídico, ela não tem sequer autorização legal para
acessar dados privados, como revelou
reportagem do GLOBO. Seria necessário haver de algum modo supervisão
da Justiça.
A falta de controle sobre o que fazem nossos
espiões piorou com a proliferação de instituições sob o Sistema Brasileiro de
Inteligência. Em 2002 havia 22 agências vinculadas a ele. Ao final da década
passada, já eram 42, incluindo os serviços das Forças Armadas e das polícias
estaduais. A resposta do Congresso à criação de novos organismos foi lenta. A
Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) foi criada no
ano 2000, mas seu funcionamento só foi regulado em 2013. De lá para cá, nunca contou
com equipe técnica suficiente e poucas vezes teve atuação preventiva.
Evitar crises no futuro exige ajustes na lei.
Deve ficar mais claro o escopo das operações de inteligência, hoje envoltas
numa névoa. É preciso definir com clareza o que elas podem e o que não podem
fazer. Isso beneficiaria os próprios servidores, preocupados com a segurança
jurídica de seu trabalho. Mudar a lei, porém, é apenas parte da resposta. A
transformação maior está na visão que a classe política brasileira tem dos
organismos de inteligência. Ao redor do mundo, os parlamentos são instituições
ativas na fiscalização. No Brasil, a prática deixa a desejar, tanto para a Abin
quanto para outras agências de inteligência federais e estaduais.
Provocado por ação da Procuradoria-Geral da
República , o ministro do
Supremo Tribunal Federal Cristiano Zanin fez bem ao dar prazo para que o
Congresso preste informações sobre a regulamentação do uso de softwares espiões.
Parte do trabalho de revisão cabe ao Executivo. Os documentos que estabelecem a
política e a estratégia de inteligência precisam ser atualizados, com ênfase
nos problemas mais prementes.
O Brasil não pode perder a oportunidade de
mudar a legislação e as práticas que têm tornado frequentes as irregularidades
nos serviços de inteligência. Eles são uma necessidade de todo Estado. Precisam
de margem de manobra e sigilo, mas não podem, numa democracia, atuar ao arrepio
da lei e dos direitos individuais.
Erros no Enem e no Sisu são motivo para
indignação e frustração
O Globo
Divulgação de resultados incorretos expõe
gestão deficiente, que desvia MEC de questões graves da educação
O Ministério da Educação (MEC)
transformou numa confusão a divulgação dos resultados do Sistema de Seleção
Unificada (Sisu), que define mais de 260 mil vagas para universidades públicas
do país com base nas notas do Enem. As informações, aguardadas com ansiedade
por 2 milhões de jovens em todo o Brasil, foram divulgadas com erros que
provocaram indignação e frustração.
A divulgação dos classificados estava
prevista para até 18h30 do dia 30 de janeiro. Às 20h, mais de uma hora depois
do prazo estipulado, o ministério decidiu adiar o resultado para o dia
seguinte. Em nota, a pasta informou que a Subsecretaria de Tecnologia da
Informação e Comunicação identificara “problemas técnicos no sistema”.
Descobriu-se depois que, apesar das inconsistências, parte dos estudantes
conseguira acessar as informações no site oficial do MEC. Muitos comemoraram a
entrada numa universidade pública. Para espanto geral, as informações estavam
erradas.
O próprio MEC admitiu o equívoco. Afirmou que
os resultados, disponíveis por cerca de 25 minutos, eram provisórios e não
haviam sido homologados, pois ainda estava em andamento a reserva de vagas para
cotistas. A União Nacional dos Estudantes (UNE) classificou o episódio como
“grande absurdo” e prometeu lançar uma plataforma para receber denúncias.
O ministro da Educação, Camilo
Santana, afirmou em entrevista à rádio CBN que a pasta apura o que
aconteceu, para saber se o erro partiu da área técnica ou da empresa que presta
serviço ao ministério. É obrigação do MEC investigar os erros, mas isso não
redime o governo.
A aplicação do Enem já despertara celeuma.
Candidatos reclamaram de ter sido alocados para fazer prova a mais de 30
quilômetros de casa, contrariando o determinado pelo edital do exame. De acordo
com o Inep, pelo menos 50 mil estavam nessa situação. Todos puderam fazer o
exame noutra data, mas o governo foi incapaz de apresentar uma explicação
razoável para a falha. Santana chegou a ser convocado para uma audiência na
Câmara. Depois, em novembro, questões vazaram antes do horário permitido,
levantando dúvidas sobre a segurança da prova.
O MEC foi marcado por uma série de escândalos
no governo passado, o mais rumoroso envolvendo acusação de negociatas com
verbas públicas para prefeituras. Na atual administração, as falhas de gestão
se sucedem. A educação no Brasil enfrenta uma infinidade de problemas, como má
formação de professores, escolas precárias ou desempenho insatisfatório dos
estudantes na comparação internacional. Combatê-los exige no mínimo gestão
eficiente, para que o governo possa se preocupar com o que realmente importa:
melhorar a qualidade do ensino.
Regulação da IA para eleições é um desafio
conjunto
Valor Econômico
Inteligência Artificial traz riscos
eleitorais cujos resultados ainda são impossíveis de se prever
Em um ano em que mais de 4 bilhões de pessoas
vão às urnas escolher seus governantes e representantes no Legislativo, casos
de uso da inteligência artificial (IA) como instrumento de manipulação de
eleitores e desinformação nas campanhas acenderam um sinal de alerta sobre os
riscos que o uso mal-intencionado da nova tecnologia representa para as
democracias em diversos países.
Episódios registrados ao longo do ano passado
na Argentina e na Eslováquia deram o tom do que é possível esperar nas próximas
eleições nos Estados Unidos, Índia, Rússia e no Brasil. Casos isolados já
ocorridos em 2024 reacenderam os pedidos de regulação - tanto das plataformas
de IA como das redes sociais usadas para propagar as chamadas “deep fakes” - e
os debates sobre como punir candidatos e partidos que recorrerem às novas
tecnologias para prejudicar rivais ou minar a confiança da opinião pública nos
sistemas de votação.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o
Departamento de Justiça de New Hampshire investiga um esquema de ligações
automáticas, com o uso de robôs, que tentava dissuadir parte da população de
votar. Na mensagem, uma voz gerada por IA imita o presidente Joe Biden e pede
que os eleitores fiquem em casa durante as primárias do Partido Democrata no
Estado. “Guarde seu voto para novembro (mês da eleição presidencial
americana)”, diz o falso Biden.
No Brasil, o Tribunal Regional Eleitoral do
Paraná (TRE-PR) determinou no fim de janeiro que a Meta, dona do WhatsApp,
bloqueasse o compartilhamento de um áudio denunciado por Silvio Barros,
pré-candidato do PP à Prefeitura de Maringá. Na gravação, uma voz que se
assemelha à do político, líder das pesquisas municipais, diz que ele desistiu
da disputa e declara apoio a um adversário (O Globo, 24/01). Há também
suspeitas de episódios similares em outros três Estados - Amazonas, Rio Grande
do Sul e Sergipe.
A imitação de vozes, artimanha aparentemente
preferida entre os que tentam subverter o jogo democrático com a IA, é apenas
uma das possibilidades abertas pela nova tecnologia. Softwares cada vez mais
sofisticados podem ser usados para produzir conteúdos falsos convincentes até
mesmo aos olhos de especialistas - as tais das “deep fakes”. Com uso de
algoritmos, esses programas “aprendem” com arquivos reais sobre o alvo em
questão e são capazes de criar, manipular ou distorcer áudios, vídeos e fotos.
A evolução da tecnologia simplificou seu uso e, agora, não é mais necessário
ter conhecimentos avançados para se aventurar neste novo mundo de
possibilidades.
Se o rápido desenvolvimento da IA torna cada
vez mais difícil distinguir a realidade da fantasia criada pelas máquinas, as
redes sociais ganham a cada nova atualização recursos mais capazes de ampliar a
propagação dessas “deep fakes”, o que também preocupa especialistas e
autoridades eleitorais após o uso quase generalizado dessas plataformas em
campanhas de desinformação - eleitoral ou não - em todo o mundo, inclusive no
Brasil.
Ao longo de 2023, o WhatsApp, o aplicativo de
conversas mais usado pelos brasileiros, lançou no país as comunidades (que
ampliam o alcance de seus grupos) e os canais (que possibilitam o envio de
mensagens a um número ilimitado de usuários inscritos). Ambos os recursos
seriam oferecidos em 2022, mas a liberação foi adiada pela empresa justamente
para depois das eleições daquele ano após um acordo com o Tribunal Superior
Eleitoral (TSE). Desde então, outras plataformas, como YouTube e o X, antigo
Twitter, limitaram o acesso de pesquisadores aos seus dados (O Globo 28/01), o
que dificulta a transparência sobre a moderação de conteúdos e de anúncios
políticos em período eleitoral.
A divulgação de conteúdos falsos - sejam eles
áudios, vídeos ou fotos - com alto grau de verossimilhança às vésperas de
eleição pode prejudicar candidatos de forma significativa e ter impacto no
resultado nas urnas. Hoje, faltam mecanismos para impedir que este tipo de
situação ocorra ou seja remediada a tempo.
O TSE convocou recentemente audiência pública
para discutir regulações da IA antes das eleições municipais, mas este não deve
ser um trabalho apenas do órgão eleitoral. O Congresso Nacional também deve
estar atento à questão e avançar nas discussões de projetos já em tramitação
para enquadrar partidos e candidatos que se utilizarem das “deep fakes” para
atacar adversários ou o sistema eleitoral do país. Além disso, é preciso cobrar
as empresas do setor para coibir o mau uso das plataformas e a circulação de
conteúdo falso nas redes.
Embora estas não sejam as primeiras eleições em que a desinformação e o jogo político sujo configuram um problema, a IA traz riscos eleitorais cujos resultados ainda são impossíveis de se prever. No Fórum Econômico Mundial, em Davos, Sam Altman, CEO da OpenAI, responsável pelo badalado ChatGPT, reconheceu que os processos de votação não serão a “mesma coisa de antes” com o surgimento da IA e disse ser “sempre um erro tentar lutar a última guerra”. Portanto, novas regras são necessárias para enfrentar os desafios que as novas tecnologias apresentam para as democracias.
Lula e Tarcísio dão um bom exemplo
Folha de S. Paulo
Acordo para obras mostra que adversários
políticos podem se aliar pelo bem comum
Em outros tempos, seria nada além de trivial
a interação que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o governador de
São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), mantiveram na última sexta-feira
(2) durante
evento oficial no porto de Santos, litoral sul do estado.
Após quatro anos de Jair Bolsonaro (PL),
porém, assumem outra dimensão os gestos de normalidade democrática e de
rejeição à polarização fundamentalista que divide o mundo em amigos e inimigos.
Demonstrando que adversários políticos também
podem ser parceiros, Lula e Tarcísio subiram juntos ao palco para anunciar o
entendimento relativo à construção do túnel entre Santos e Guarujá.
Não será uma
iniciativa somente federal, como se cogitava poucas semanas atrás,
mas uma associação entre os dois governos, que dividirão tanto os custos
bilionários da obra quanto os ganhos políticos decorrentes dela.
"O que importa é enxergar o verdadeiro
interesse público", afirmou Tarcísio. "Você terá da Presidência da
República tudo aquilo que for necessário, porque não estou beneficiando o
governador: estou beneficiando o estado mais importante da Federação",
asseverou Lula.
Estão cobertos de razão, e não só no conteúdo
—que, afinal, é óbvio— mas também —e principalmente— na forma. Pois o país
precisa deixar para trás a histeria que contaminou as mais diversas autoridades
nos últimos anos e, no lugar dela, restaurar o verdadeiro sentido do
republicanismo.
Claro que nem todos os petistas e
bolsonaristas estarão prontos para essa lição. Depois do ato conciliatório em
Santos, aliados mais radicais do ex-presidente rangeram os dentes para as
mesuras de Tarcísio, que, aliás, já tinha ouvido algumas vaias da plateia
durante o evento organizado pelo governo federal.
Coube a Lula, em boa hora, puxar a orelha de
seus correligionários: "O governador merece ser tratado com muito respeito
nas atividades públicas que nós fazemos".
Mais uma banalidade da qual muitos pareciam
ter-se esquecido: adversários merecem respeito, mesmo que continuem
adversários. E é precisamente esse o caso.
Lula e Tarcísio sabem que a aproximação
litorânea não implica pensar da mesma maneira. O governador fez questão de
lembrar que continua sendo um liberal, enquanto o petista sublinhou a
importância de saber respeitar as diferenças.
Também sabem que o acordo não formou nenhuma
aliança de outra natureza. O governador de São Paulo é um dos principais nomes
do campo bolsonarista e, em 2026, disputará a eleição contra o PT —seja como
candidato ao Planalto, seja em busca da reeleição.
Oxalá os dois mantenham até lá o espírito que
mostraram em Santos.
Triunfo truculento
Folha de S. Paulo
Presidente de El Salvador é reeleito com
ações em segurança que minam liberdades
El Salvador é o exemplo mais atual de como
altos índices de criminalidade e violência podem abalar a normalidade
democrática.
Com mais de
80% dos votos durante a apuração parcial, o presidente licenciado do
país, Nayib Bukele, declarou a própria vitória no pleito, apesar de a
Constituição vetar reeleição. Foi a primeira vez em 80 anos que a regra foi
violada.
Aos 42 anos, é expoente regional da direita
populista radical que tem ampla aprovação entre os salvadorenhos, com índices
em torno de 70% e 80% E o motivo principal desse apreço é a segurança pública.
El Salvador tem histórico dramático de
conflitos, com 12 anos de guerra civil que só chegou ao fim em 1992 graças a um
acordo que levou o grupo guerrilheiro Frente Farabundo Martí de Libertação
Nacional a abandonar as armas para se tornar um partido político.
A partir do final dos anos 1990, teve início
uma escalada de disputas sangrentas entre facções criminosas. Em 2015, 106
pessoas foram mortas a cada 100 mil habitantes em El Salvador —no
Brasil, que tem altas taxas de homicídio, foram 25,7 por 100 mil.
Quando Bukele assumiu o poder, em 2019, eram
cerca de 40 por 100 mil; em 2022, o número caiu para 7,8; no ano passado,
apenas 2,4.
Esses dados mais recentes são questionados
pela sociedade civil, mas fato é que 9 em cada 10 salvadorenhos dizem se sentir
seguros, segundo pesquisa da Universidade Centro-Americana.
Para atingir tais resultados,
entretanto, Bukele
instaurou em 2022 um estado de exceção —aprovado pelo
Legislativo, controlado por seu partido— que vem sendo prorrogado desde então.
O instrumento solapa direitos civis ao
restringir a liberdade de reunião, a inviolabilidade de correspondências e
comunicações, e autorizar prisões sem ordem judicial. El Salvador é o país que
mais encarcera no mundo como proporção da população (2,2% dos adultos).
A popularidade e o triunfo eleitoral de Bukele sem dúvida alimentarão a influência de suas estratégias no debate político da América Latina, onde a criminalidade disseminada desafia as autoridades. Trata-se de um perigo.
‘Casus belli’
O Estado de S. Paulo
Arthur Lira e aliados usam erros do governo e
do STF para adotar ameaça permanente e amplificação das tensões como arma de
negociação e justificativa para confronto entre Poderes
O Congresso Nacional reabriu os trabalhos do
ano legislativo com uma coleção de queixas e ameaças que mais parecem uma
contraofensiva dirigida ao governo federal e ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Mesmo sem a presença do presidente Lula da Silva e do ministro Luís Roberto
Barroso, não faltaram discursos sobre a solidez das instituições, o apoio à
democracia e a convivência civilizada e harmônica entre Congresso, governo e
Supremo – além da previsível autocelebração contida na mensagem do Executivo,
que ao seu estilo tentou mostrar que o País mais uma vez tem sua história
reescrita por obra e graça do governo lulopetista. Também se viu a defesa da
tramitação de pautas relevantes, como a regulamentação da reforma tributária, a
transição energética, e o debate sobre as prioridades do Orçamento federal. Mas
nem é preciso ir às entrelinhas dos discursos para chegar à conclusão de que a
convivência está longe da harmonia pregada e que o equilíbrio entre os Poderes
corre riscos.
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL),
foi quem melhor deixou evidente o enorme abismo que separa discurso e prática
na relação entre os Poderes. Ainda que ao final tenha mencionado a “disposição
colaborativa” do Congresso com o Executivo e o Judiciário, sua mensagem foi
dura e clara: os parlamentares não aceitarão ser coadjuvantes na aprovação do
Orçamento. Fez menção indireta (ou explícita) ao veto de R$ 5,6 bilhões do
presidente Lula no valor aprovado para emendas parlamentares, assim como à medida
provisória da reoneração, gestada no Palácio do Planalto logo depois de o
Congresso aprovar a desoneração de impostos. Também falou em “acordos firmados”
e “compromissos assumidos” como exemplos de “honradez na política”.
As digitais de Lira na artilharia parlamentar
já vinham sendo sentidas tanto na ausência em solenidades que uniram os
comandos dos Três Poderes quanto nos recados velados ou explícitos, destinados
a quem considera potenciais algozes dos interesses da Câmara. Em alguns casos,
como a medida provisória da reoneração, a queixa pode ser justificável –
afinal, o governo teria tentado promover, via canetada, um retorno de impostos
à revelia do que o Legislativo já decidira. Em outros, os interesses da Câmara
e de Lira trafegam por zonas mais cinzentas.
Entre luzes e sombras, pode ser perturbador
um Congresso que legisla com base na contraofensiva e na vingança –
especialmente quando seus alvos são o STF e o governo. A politização do Supremo
é um desvio de rota a corrigir. A vocação lulopetista para tentar converter os
demais Poderes em extensão do governo e do partido é outra chaga a combater.
São disfuncionalidades que desvirtuam o funcionamento da democracia. Nenhuma
delas, no entanto, será resolvida com outra disfuncionalidade. O presidente da
Câmara e seus aliados sabem bem disso e dobram a aposta: ao notório apetite por
cargos e verbas acrescentam o estado de ameaça permanente e a amplificação das
tensões como armas preferenciais de negociação e conquista.
O presidente da Câmara já condicionou o
avanço das pautas governistas à troca de comando na pasta que cuida das
articulações com o Congresso. Ele e seu grupo prometem não só reagir a vetos
presidenciais no Orçamento e no Marco Temporal para a demarcação de terras
indígenas, como fizeram chegar aos seus alvos a lembrança do que têm na gaveta:
um projeto que restringe decisões monocráticas de magistrados; outro que define
mandatos fixos para ministros do STF (esta proposta, convém reconhecer,
oficialmente não tem o apoio do presidente da Câmara, e sim do presidente do
Senado, Rodrigo Pacheco); e mais um que, se aprovado, exigirá do Congresso o
aval para medidas judiciais contra parlamentares em exercício (projeto
inspirado nas recentes operações da Polícia Federal, autorizadas pela STF, em
endereços de congressistas).
Lira sabe ainda que 2024 será decisivo para a
sucessão na presidência da Câmara. Ele quer a garantia do governo de que Lula
não vai interferir na disputa. E entre o curtíssimo prazo e 2025, saca
argumentos do bolso como uma espécie de casus belli – a terminologia bélica
usada para alguém poder justificar seu direito de ir à guerra.
Orfandade institucional
O Estado de S. Paulo
Lira e aliados usam erros do governo e do STF
para adotar ameaça permanente como arma de negociação
O Supremo Tribunal Federal (STF) continua a
observar passivamente um de seus integrantes, o ministro Dias Toffoli, passar
feito um rolo compressor sobre as robustas evidências de crimes apuradas na
Operação Lava Jato, fazendo parecer, como dissemos neste espaço, que o maior
esquema de corrupção de que o País já teve notícia foi um delírio coletivo.
Movido sabe-se lá por quais razões, o ministro Dias Toffoli usou sua caneta
para riscar dos autos até as provas que foram entregues voluntariamente às
autoridades por dezenas de implicados, entre os quais diretores e gerentes da
Petrobras durante os governos do PT e executivos das maiores empreiteiras do
País.
A bem da verdade, contudo, é forçoso dizer
que o STF não é a única instituição que tem provocado esse sentimento misto de
abandono e indignação em muitos cidadãos que acompanham os desdobramentos da
Lava Jato nos últimos anos. O Ministério Público (MP), em particular a
Procuradoria-Geral da República (PGR), também tem uma grande parcela de
responsabilidade por essa espécie de orfandade institucional. Mudanças em ritmo
vertiginoso na compreensão das leis e até dos fatos têm levado parcela
expressiva da sociedade a questionar onde, afinal, estaria o MP como defensor
da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis.
A Constituição de 1988 teve o cuidado de
incumbir o MP dessa missão moldando o parquet para agir na nova ordem
democrática segundo os princípios da unidade, da indivisibilidade e da
independência funcional. Mas a julgar pela atuação do MP na Lava Jato, sobretudo
da PGR, a percepção que se tem da instituição é outra, diametralmente oposta.
Ao invés de uno e indivisível, o MP é visto como um órgão cindido em grupos
conflitantes; ao invés de servir à Constituição, às leis e ao interesse
público, a independência funcional por vezes se assemelha a um véu sob o qual a
instituição se move a reboque da agenda particular do seu chefe de ocasião.
No auge da Lava Jato, com Rodrigo Janot à
frente, a PGR impingiu grandes danos à sociedade ao agir orientada
politicamente e imbuída de um espírito salvacionista, como se a corrupção fosse
o maior dos males brasileiros e aos procuradores coubesse a missão de livrar o
País de todos os malfeitores que, há séculos, estariam se interpondo entre o
Brasil e seu virtuoso destino. Em nome desse propósito, a um só tempo
megalomaníaco e inconstitucional, a PGR cometeu erros tão grosseiros que, hoje,
criminosos confessos chegam a debochar da sociedade posando de injustiçados.
Esse MP de ares messiânicos não cansou de erguer a voz diante de toda e
qualquer crítica a seus métodos, classificando os reparos não só como uma
“ameaça à Lava Jato”, mas como uma “defesa de corruptos”.
Já durante a gestão de Augusto Aras o que se
viu na PGR foi o exato oposto: a adesão ao chamado antilavajatismo. Sob Aras, a
Lava Jato acabou de vez, mas não porque, como qualquer operação, teria mesmo de
ter um início e um fim bem delineados. A Lava Jato acabou por seu maior vício:
ter se movido politicamente. Logo, quando mudaram os ventos da política
nacional, uma nova visão sobre a operação, chamemos assim, se impôs.
Por ora, a marca que Paulo Gonet imprimirá na
PGR é desconhecida, haja vista que o sucessor de Augusto Aras assumiu o cargo
há apenas dois meses. Mas causa calafrios o silêncio do procurador-geral diante
dessa série de decisões monocráticas do ministro Dias Toffoli livrando a
Odebrecht e a J&F do pagamento das multas bilionárias com o qual as
empresas se comprometeram ao assinar seus acordos de leniência. Aqui e ali
surgem notícias de que a PGR vai recorrer das decisões, mas o fato é que, desde
setembro, quando Dias Toffoli decidiu anular liminarmente as provas que
sustentaram o acordo de leniência da Odebrecht, nenhuma ação foi tomada pela
PGR. Quem recorreu da decisão foi o Ministério Público de São Paulo.
Já passou muito da hora de a PGR voltar à
normalidade institucional, sem arroubos messiânicos, sem motivações políticas
e, tampouco, sem omissões. O País tem muito a perder com um Ministério Público
tão inconstante.
A jogada de Biden
O Estado de S. Paulo
Sanção a radicais israelenses é peça do jogo dos Estados Unidos para pôr fim à guerra no Oriente Médio
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden,
impôs inéditas sanções contra quatro colonos israelenses responsáveis por atos
de violência contra palestinos na Cisjordânia. O decreto assinado no último dia
1.º não atinge diretamente o Estado de Israel – apenas indivíduos. Mas,
certamente, pesa como uma cáustica advertência de Washington ao
primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, que tem fechado seus olhos a
tais agressões e negligenciado seu potencial de desencadear uma nova frente de
combates, desta vez na Cisjordânia. Na estratégia do governo Biden para pôr fim
ao conflito na Faixa de Gaza e a suas ramificações no Oriente Médio, conter
Israel é peça fundamental.
As críticas de Washington contra a expansão
dos assentamentos na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental e as agressões a
palestinos desferidas por colonos radicais – em geral, fortemente armados – não
são novidade. Vinham de muito antes de 7 de outubro passado e foram solenemente
desconsideradas pelo governo de Netanyahu, sustentado por ultraortodoxos
defensores dessa expansão territorial por Israel. Mas a sanção aos quatro
indivíduos – agora com ativos congelados nos EUA e sem acesso a seu sistema
financeiro e a seu território – é inusitada. Para Washington, cauterizar a
ferida na Cisjordânia, antes que vire uma nova frente de conflito, tem
urgência.
Os EUA continuam a anos-luz de abdicar da
defesa de Israel. Tampouco flexibilizarão o direito israelense a sua
autodefesa, ainda mais depois do bárbaro ataque do Hamas contra civis em Israel
em 7 de outubro passado. Mas há entendimento na Casa Branca de que a guerra na
Faixa de Gaza está perto de um ponto de não retorno e desdobrou-se em focos que
comprometem a paz em todo o Oriente Médio e a economia internacional.
Contrariar Netanyahu é inevitável. Faz parte de um jogo maior de Washington,
cujo sucesso depende mais dos regimes árabes do que de Israel.
Nesse sentido, o cessar-fogo na Faixa de
Gaza, sob a contrapartida da libertação dos 132 reféns ainda mantidos pelo
Hamas, faz parte de uma miríade de conversas que envolvem Israel e lideranças
do grupo terrorista. Todas são movidas e acompanhadas pelos EUA. O
reconhecimento da Palestina como Estado soberano entrou de forma pragmática na
agenda da diplomacia americana no Oriente Médio. O diálogo sobre aprofundamento
de alianças de Washington com as nações árabes, sobretudo com a Arábia Saudita,
parece prosperar. Nas mãos dos árabes estão as perspectivas de desmonte do
Hamas, de uma futura Palestina avessa a ameaças a Israel e de isolamento do
Irã, o financiador do terror reinante no Oriente Médio.
Chamada de Doutrina Biden, a estratégia está claramente em execução, em que pese a contrariedade de Netanyahu. Se bem executada e exitosa, pode alcançar o que a máquina de guerra israelense não logrou em quase quatro meses na Faixa de Gaza: a neutralização do Hamas, a libertação dos reféns e o fim de um conflito que já deixou milhares de mortos e uma crise humanitária descomunal. Quem sabe haja horizonte até mesmo para uma paz menos frágil e temporária no Oriente Médio.
Câmeras modernizam o combate à violência
Correio Braziliense
Mas só oito unidades da Federação adotaram o
equipamento corporal para os policiais militares. A adesão ainda é muito baixa,
considerando-se as vantagens que representa tanto para os policiais quanto para
a sociedade
Menos de um terço das 27 unidades da
Federação adotaram a câmera corporal para os policiais militares: São Paulo,
Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Roraima, Rondônia e
Santa Catarina. A adesão ainda é muito baixa, considerando-se as vantagens que
o equipamento representa tanto para os policiais quanto para a sociedade. Não
raro, há denúncias de abuso de autoridade da polícia nas abordagens de pessoas
suspeitas, o que contribui para deteriorar a imagem das forças de segurança
pública no país.
Em 2022, o Anuário Brasileiro de Segurança
Pública revelou que 6.429 pessoas foram vítimas da letalidade policial — o
equivalente a 17 óbitos por dia. Os números, por si só, mostram que conter a
violência é um dos desafios nos âmbitos dos poderes federal, estaduais e
municipais, assim como é a fome e outras iniquidades sociais. E, nesse caso, as
forças de segurança têm que seguir atuação exemplar, e jamais serem confundidas
com o crime organizado.
Pesquisa recente da Fundação Getúlio Vargas
com a Universidade de São Paulo (USP) constatou que o uso das câmeras corporais
levou à redução de 57% no número de mortes decorrentes de intervenções
policiais, sem diminuir a efetividade do trabalho dos agentes. O dado mostra o
quanto o uso do equipamento é importante para ressuscitar a confiança dos
cidadãos nas forças policiais.
As câmeras são ainda instrumento de prova
contra os agentes que não honram a missão das corporações. E mais: servem para
desmontar acusações contra os agentes apontados de autoria de ações
inadequadas. Ou seja, o equipamento se torna uma testemunha que livra o
policial de acusações infundadas.
Ainda assim, a maioria dos governos estaduais
resiste à orientação do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária
(CNPCP) em favor do uso de câmeras nos uniformes policiais. Os conselheiros —
representantes de órgãos públicos e da sociedade civil — recomendaram que os
estados adotem equipamentos com gravação automática e capacidade de
armazenamento de dados por um período de três a seis meses. Hoje, os
equipamentos em uso guardam as imagens por um mês.
A indisposição dos governos estaduais para seguir uma tendência quase que mundial não se coaduna com os avanços tecnológicos e está longe da possibilidade de reduzir a violência e conter a criminalidade que assola o país. Os poderes de Estado, por imposição constitucional, têm o dever de garantir a segurança da população e a integridade dos cidadãos. Portanto, inexistem razões para desprezar os avanços tecnológicos que contribuem para a eficácia das responsabilidades do poder público.
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