Angela Giuffrida /CartaCapital
Uma cinebiografia e duas exposições aguçam a
nostalgia e a admiração por Enrico Berlinguer
Enrico Berlinguer foi
um gigante da esquerda italiana nas décadas de 1970 e 1980, quando chegou perto
de levar o Partido Comunista ao governo por meio de um “compromisso histórico”
com os democrata-cristãos e na defesa do “eurocomunismo”, uma versão liberal e
anti-stalinista do marxismo que varreu brevemente o continente. Sua morte há 40
anos e o colapso dos partidos comunistas europeus no fim da década de 1980
eclipsaram, porém, o seu legado. Desde então, a Itália cruzou o espectro
político e em 2022 elegeu Giorgia Meloni, da extrema-direita, como
primeira-ministra.
Agora, Berlinguer retomou a popularidade, inclusive entre figuras de direita, pois um filme sobre sua vida abre o festival de cinema de Roma, antes do lançamento internacional. Berlinguer – La Grande Ambizione levará os espectadores por meio dos eventos históricos que marcaram sua carreira, desde desafiar o dogma da Guerra Fria e escapar por pouco de um atentado contra sua vida na Bulgária, até levar o Partido Comunista Italiano à beira do poder na década de 1970 e manter-se firme contra o terrorismo político que ferveu no país naquele período.
Andrea Segre, diretor de 48 anos, descreveu o
filme biográfico como “uma viagem por um pedaço da história que não vivi e que
aprendi a entender”. Essa busca por conhecimento sobre Berlinguer, que morreu
em 11 de junho de 1984, aos 62 anos, quatro dias após sofrer um derrame
enquanto fazia um discurso de campanha, também estimulou milhares de jovens
italianos a visitar exposições sobre sua vida realizadas neste ano em Roma e
Bolonha. “Francamente, não imaginávamos que as exposições e as outras
iniciativas que fizemos nestes 40 anos desde a sua morte atraíssem tanta
atenção, afeição e estima”, disse Ugo Sposetti, ex-parlamentar do PCI e
presidente da fundação Enrico Berlinguer. “Houve uma onda de participação entre
os visitantes jovens, de 25 ou 26 anos, que talvez só soubessem dele por meio
de conversas familiares.”
Berlinguer nasceu na Sardenha, no sul da
Itália, em 1922, alguns meses antes de o ditador fascista Benito Mussolini
tomar o poder. Ingressou no PCI em 1943 e foi preso um ano depois, por
participar de uma manifestação por artigos essenciais para os trabalhadores,
como pão e açúcar. Eleito líder da legenda em 1972, seguiu uma linha mais
moderada no partido, na defesa de uma rota democrática para o socialismo.
Afastou o PCI da influência da União Soviética e o lançou como um defensor da
unidade nacional.
Ele foi muito querido na Itália, por sua
sinceridade, humanidade e por trabalhar pelos interesses nacionais em vez do
poder pessoal. Internacionalmente, foi temido tanto pela esquerda quanto pela
direita. Durante os 12 anos em que liderou o PCI, Berlinguer levou o partido ao
apogeu, alcançando o chamado “compromisso histórico” com Aldo Moro, líder dos
democrata-cristãos e cinco vezes primeiro-ministro. O pacto de aliança foi
inspirado pela derrubada da democracia no Chile em 1973, mas nunca se concretizou,
pois Moro foi sequestrado e morto em 1978 pelo grupo terrorista de
extrema-esquerda Brigadas Vermelhas, descarrilando o governo de coalizão quando
estava perto de se formar.
O líder comunista italiano, morto há 40 anos,
personificava o melhor da política
O apoio popular ao PCI diminuiu após a morte
de Berlinguer, mas seu legado perdurou. Para os seguidores da esquerda de hoje,
isso pode ser explicado em parte pelo anseio por um líder de qualidade, não
divisivo e com visão de longo prazo. De modo mais intrigante, ele também é
admirado pela direita. Meloni, cujo partido Irmãos da Itália tem raízes
neofascistas, causou comoção quando fez uma visita improvisada à exposição
Berlinguer em Roma. Depois de fazer um tour com Sposetti e ouvir avidamente
alguns dos discursos mais poderosos de Berlinguer, ela deixou uma mensagem no
livro de visitas observando que a vida dele foi uma “história política” e que
“a política é a única solução possível para os problemas”. Os críticos
hesitaram, com alguns ex-integrantes do PCI a expressar alívio por não a terem
encontrado. Mas como Giorgio Almirante, fundador do movimento social
neofascista italiano, a cuja ala jovem Meloni se juntou no início dos anos
1990, prestou homenagem ao seu adversário político no velório, sua visita talvez
não seja algo tão estranho.
“Pode ter sido uma surpresa para os menos
atentos”, disse Sposetti, acrescentando que tem boas relações com Meloni,
apesar de suas opiniões diferentes. “Meloni cresceu a pão, água e política.
Ela tem uma visão de partidos, de militância, semelhante àquela que eu tinha…
mas, naturalmente, ela acredita em uma coisa e eu em outra.”
Berlinguer foi elogiado por Ignazio La Russa,
cofundador dos Irmãos da Itália que, em 2018, foi filmado exibindo recordações
fascistas em sua casa, numa convenção do partido em que foi entrevistado pela
jornalista Bianca Berlinguer, filha do falecido líder comunista.
Essas demonstrações públicas de admiração,
acredita Sposetti, talvez fossem “oportunistas”. Mas Mario Ajello, jornalista e
comentarista político do jornal Il Messaggero, acredita basear-se no fato de
Berlinguer ser reconhecido como um líder “moralmente impecável”, capaz de unir
forças opostas. “Há também certa nostalgia hoje pelos antigos partidos e quando
eles funcionavam bem, e quando a Itália funcionava”, avalia. “Berlinguer era
um garantidor, não apenas do interesse de seu partido, mas também do interesse
geral. Quanto à extrema-direita, eles fazem isso para mostrar que superaram
barreiras ideológicas, que se você for um grande italiano, mesmo que seja
comunista, eles serão capazes de apreciá-lo.”
Meloni foi convidada pelo prefeito de
centro-esquerda de Roma, Roberto Gualtieri, para a cerimônia de abertura do
festival de cinema da cidade em 16 de outubro. “Isso é normal, e um
relacionamento institucional correto nunca deve faltar”, disse, acrescentando
que, apesar de suas diferenças políticas, tem “um bom relacionamento pessoal”
com Meloni.
Berlinguer – A Grande Ambição estará nos cinemas italianos a partir de 31 de outubro e, posteriormente, será lançado internacionalmente. (Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.)
Publicado na edição n° 1333 de CartaCapital, em 23 de outubro de 2024.
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