O Globo
Torna-se cada vez mais patente a dificuldade
de reverter a violência das guerras e o rumo do aquecimento global
O filósofo Heidegger vasculhou a obra de
Freud e não encontrou nenhuma explicação dele na escolha da palavra “análise”
para nomear seu trabalho. Então descobriu que o poeta Homero, que viveu na
Grécia Antiga, foi quem primeiro usou o termo no segundo livro da Odisseia,
para descrever o que Penélope fazia todas as noites: ela desmontava o tecido
que fizera durante o dia. Em grego, “análise” significa desfazer uma trama,
soltar, libertar alguém da prisão e até desmontar os pedaços de uma construção.
A etimologia do termo “análise” é formidável para ilustrar aquilo a que se destina, tanto nos labirintos do sintoma do indivíduo quanto nos da cultura: revelar e desfazer a trama inconsciente ou irrefreável que os causa. Não é difícil imaginar sujeitos que não conseguem se livrar de atitudes, vícios e repetições que, não obstante, os prejudicam. Torna-se cada vez mais patente a dificuldade de reverter a violência das guerras e o rumo do aquecimento global, com a deterioração climática e seus efeitos — como os incêndios pelo mundo.
Se o desafio que enfrentamos consiste na
missão quase impossível de desfazer a trama econômica, social e política que
produz o risco de catástrofe, como nos libertar dessa prisão e desmontar a
máquina destrutiva que o progresso material e tecnológico construiu — na crença
absurda de que a suposta inesgotável natureza está à disposição apenas para nos
servir? Na verdade, não me situo entre os que consideram inevitável o desastre
climático, uma nova guerra mundial ou a emergência de outra grave pandemia. Mas
é inquietante observar na atualidade a crescente onda pessimista nessa direção.
Talvez porque nunca tenha ocorrido, como nos
últimos anos, uma invasão tão intensa de graves acontecimentos assolando a
subjetividade das pessoas. Além do mais, está tudo conectado em tempo real. A
confiança nas pulsões de vida e na capacidade humana de reverter seu impulso à
autodestruição parece diluir-se ante uma época cínica e caótica, em que é
inédito o arsenal — de armas, de ódio e de negacionismo — à disposição de uma
destrutividade que parece contratar um time invencível.
doriA formidável expansão tecnológica e
científica vem se revelando inversamente proporcional à paradoxal regressão
civilizatória. Estamos de novo diante de questões que julgávamos ultrapassadas,
o que expõe a força das infiltrações subterrâneas que atacam a ética, a
democracia, a paz e o respeito entre povos e nações. Tudo se parece com a
metáfora que surgiu de um debate entre os filósofos Peter Sloterdijk e Alain
Finkielkraut sobre o que é compreender a contemporaneidade: um olhar para um
céu cheio de estrelas que já desapareceram, mas cujos brilhos — ou trevas —
continuam chegando até nós.
Filósofos e artistas captam sinais e
antecipam o desastre. Paul Klee fez uma gravura, em que Walter Benjamin se
inspirou, para criar o conceito de anjo da História: uma figura assustada, com
as mãos se defendendo da tragédia para a qual o futuro nos arrastaria. A
gravura hoje está no Museu de Israel, em Jerusalém.
O próprio Benjamin escreveu “Aviso de incêndio”, sobre as graves ameaças de um
progresso descontrolado. Sloterdijk fez livro sobre o arrependimento de
Prometeu: o ladrão do fogo divino ficaria decepcionado com o que fizeram de sua
dádiva. Antes dele, Hans Jonas se referiu ao perigo de um Prometeu
desacorrentado e clamou por uma ética que, por meio de freios voluntários,
impedisse o poder dos homens de se converter numa desgraça para si mesmos.
Antes da série de incêndios, Giorgio Agamben lançou a distopia “Quando a casa
queima”. As cidades, as ruas e as casas estão ardendo em chamas:
— Vivemos num mundo que está queimando, mas
não sabemos.
Não?
Resta o desafio de desfazer nossa própria
trama, desmontar o manto sombrio que vimos tecendo ao longo do que — de forma
arrogante —chamamos de progresso. Freud disse que a função da análise é tornar
consciente o que não era. Tal função tem hoje o caráter de urgência.
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