quinta-feira, 7 de novembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

As razões — e os riscos — da vitória de Trump

O Globo

Ele responde a anseios de população insatisfeita, mas seu novo governo é um mergulho na incerteza

A volta do republicano Donald Trump à Casa Branca foi selada com uma vitória incontestável nas urnas. Ele derrotou a democrata Kamala Harris nos estados decisivos, recuperou a maioria no Senado, caminha para manter também o controle da Câmara e, contrariando as previsões, para vencer até na votação popular, somando confortavelmente mais de metade do total de votos. O mapa de seu desempenho nas urnas lembra o de 2016, quando irrompeu derrotando Hillary Clinton nos bastiões do Meio-Oeste antes tidos como redutos seguros dos democratas. Agora, independentemente da opinião que se tenha sobre a figura de Trump — capaz de despertar paixões antagônicas —, é preciso reconhecer que a democracia funcionou. Mais uma vez, ele chega ao poder por meios legítimos.

A questão mais elementar — quase simplória — que o resultado da eleição impõe é: por quê? O que levou dezenas de milhões de americanos a votar em alguém que já sofreu dois impeachments, incitou uma multidão a invadir e depredar o Capitólio para mantê-lo no poder depois de ter perdido a eleição de 2020, foi condenado criminalmente por subornar uma atriz pornô e num caso civil por importunação sexual, ainda enfrenta outros três processos criminais, 116 acusações na Justiça e, no último mandato, ficou conhecido pela mendacidade, pela misoginia, pela xenofobia e por ter rebaixado o discurso político ao nível mais grosseiro?

Há duas respostas — não excludentes — a essa questão. A primeira tem a ver com o fastio da população com as instituições convencionais, a classe política de Washington, as elites acadêmicas e intelectuais, as agruras financeiras, o custo da saúde e da moradia, a profusão de novos imigrantes no país e com o caráter de ruptura que Trump representa em relação a tudo isso. Aos 78 anos, sua franqueza, seu tom despachado e desinibido, sua falta de modos, sua autenticidade e seu discurso populista trazem alívio à angústia dessa população. Paradoxalmente, ele desperta confiança, pois todos têm certeza de quem é. Há ainda, nessa escolha, a sensação de revanche, alimentada pelo ressentimento que, desta vez, não se limitou aos brancos sem diploma universitário do Meio-Oeste. Trump ampliou sua votação entre hispânicos, negros, mulheres e árabes-americanos, desfazendo o agrupamento de minorias que costuma fortalecer o eleitorado democrata.

A segunda razão para sua vitória está justamente nos erros dos democratas. A impopularidade do presidente Joe Biden e a idade avançada recomendavam desde o início que não fosse candidato. Mesmo assim, ele insistiu. Só desistiu depois que suas deficiências cognitivas se tornaram evidentes no primeiro debate com Trump. A escolha de Kamala foi feita de modo improvisado, sem abrir espaço a novas lideranças no partido. Ela carregava o espectro de ter fracassado numa das questões centrais para o eleitorado: a imigração. Apesar de a economia ter se recuperado depois da pandemia, a percepção dos eleitores sobre a inflação continuou negativa. Kamala escolheu um candidato a vice, Tim Walz, que pouco contribuiu para atrair eleitores onde era mais necessário. Para completar, apostou que o voto feminino, mobilizado pela defesa do direito ao aborto, bastaria para compensar as perdas entre as minorias. Como se viu, não bastou.

Outra questão crítica, mas menos óbvia, são as consequências do novo governo Trump para o país e para o mundo. Pelo retrospecto de sua primeira gestão e por tudo o que ele prometeu na campanha, não é difícil prever problemas em várias esferas. Na economia, o protecionismo, o controle de fronteiras e sua inclinação a distribuir cortes de impostos sem nenhuma preocupação fiscal permitem antever uma ampliação da dívida pública superior a US$ 4 trilhões ao longo do mandato. No médio prazo, isso viraria combustível para a inflação e para os juros, com efeito negativo na perspectiva de crescimento.

No cenário internacional, sua imprevisibilidade não estará submetida às instâncias que funcionaram como freio aos piores impulsos na gestão anterior. O conflito comercial com a China tenderá a se agravar com a imposição de tarifas, prejudicando as cadeias globais de suprimentos. A Ucrânia deverá ser forçada a fazer concessões territoriais e a compromissos com a Rússia de Vladimir Putin. Israel não deverá contar com a pressão dos americanos por moderação. A aliança atlântica com os europeus voltará a se enfraquecer. E a América Latina pode começar a se preparar para as deportações em massa que Trump promete.

No caso específico do Brasil, a proximidade que ele mantém da família Bolsonaro poderá significar relações pouco amistosas com o governo Luiz Inácio Lula da Silva. Apesar de ter cumprimentado Trump pela vitória, Lula não se ajudou ao ter declarado, antes da eleição, preferir a vitória de Kamala.

Nada disso, obviamente, é certo ou está garantido. Com alguém imprevisível como Trump, a única certeza é a incerteza.

Não há, por fim, nenhum exagero retórico em constatar que Trump representa um risco à democracia americana. A tentativa de sabotar a vitória de Joe Biden, a invasão do Capitólio e seu desprezo por todos aqueles que, na maioria conservadores republicanos em posições de autoridade, tentaram cumprir seu dever cívico e institucional contendo os abusos ou violações mais flagrantes ao longo de seu primeiro governo — tudo isso contribui para formar um quadro fidedigno de alguém que menospreza as instituições e não tem nenhum tipo de constrangimento em usar o poder do Estado em benefício próprio.

A partir de janeiro de 2025, começa um novo teste para a democracia americana. O resultado será conhecido até o dia 20 de janeiro de 2029, quando terminará o segundo — e, de acordo com a Constituição, último — mandato de Trump.

Trump corteja guerra de tarifas e volta da inflação

Valor Econômico

Trump radicalizou na campanha e venceu. É possível, mas pouco provável, que exiba moderação com o poder de volta às mãos

Donald Trump volta à Casa Branca após uma grande vitória nas urnas. As apurações não terminaram, mas é certo que ele vencerá a democrata Kamala Harris no voto popular com diferença superior a 5 milhões, o que não ocorrera em 2016, da primeira vez em que foi eleito - ele perdeu por 3 milhões de votos para Hillary Clinton. As pesquisas se equivocaram outra vez, ao prever uma disputa acirrada. Na verdade, Trump vencerá nos sete Estados-pêndulo, melhorou sua margem de votos em relação a eleições anteriores em todos os Estados (exceto Utah e Washington) e avançou nos segmentos que costumam apoiar os democratas: negros e latinos. O presidente eleito terá maioria no Senado, tem chance de levar a Câmara e já ganhou uma carta branca da Suprema Corte, de maioria conservadora, que sentenciou que no cargo um presidente pode fazer tudo o que quiser sem que possa ser processado.

Politicamente, a democracia americana navega em mares desconhecidos. Trump preza autocratas e despreza as instituições. O caminho está livre, tanto no Legislativo quanto no Judiciário, para que faça tudo o que prometeu em sua campanha, se quiser. E se, em seu primeiro mandato, ele cercou-se de republicanos tradicionais, nem todos dispostos a dobrar-se a suas ordens, agora trará consigo para o governo do país mais poderoso do mundo uma turma de fanáticos submissos. Se houve alguma chance de sofrer impeachment no mandato anterior (escapou de dois), agora as chances de que seja punido por eventuais más condutas é nula. A independência dos poderes sofreu um duro golpe.

Imigração e economia foram dois temas interligados que deram vitória ao republicano. Após reiterar sem parar em sua campanha que colocará tarifas mais altas mesmo para países aliados, como Canadá, México e União Europeia, e muito mais altas (60%) para a China, é difícil que deixe de fazê-lo. Dois pontos da plataforma de Trump têm amplos efeitos econômicos e políticos. Ele deve prorrogar o corte de US$ 1,7 trilhão em impostos para empresas que expira no ano que vem e, se possível, ampliá-lo. Segundo o Comitê por um Orçamento Federal Responsável, Trump empilhará em dez anos mais US$ 7,5 trilhões aos US$ 34 trilhões de dívida pública existente.

O forte aumento do endividamento vai tornar mais cara a rolagem da dívida - os títulos do Tesouro de 10 e 30 anos subiram ontem, numa antevisão do que ocorrerá com os papéis tidos como mais seguros do mundo nos próximos anos. O aumento dos juros desses títulos puxará os de maior risco, encarecendo as emissões corporativas e soberanas dos países emergentes, aumentando o custo de suas dívidas e do funding para investimentos.

Por outro lado, o abatimento fiscal acaba sendo um estímulo à economia, que crescerá mais. O efeito conjunto de mais dívida e novos estímulos a uma economia que não precisa deles é mais inflação. O Federal Reserve (Fed, o banco central americano) deve hoje reduzir os juros em mais 0,25 ponto, mas, nos próximos meses, poderá ter de interromper antes do que pretendia o ciclo de baixa, caso a inflação ameace subir. Não está descartado que daqui a um ano o Fed cogite elevá-los de novo, se continuar com autonomia - Trump quer dominá-lo e colocar homens de sua confiança no comando do banco.

Outro foco inflacionário virá do aumento das tarifas - 10% para todos e 60% para a China, na hipótese de um Trump moderado. O aumento será repassado aos preços das mercadorias e aos insumos das indústrias, que terão majoração de custos. Como a economia está aquecida, o mercado consumirá mais pagando mais caro pelos produtos, importados ou não, também por outro efeito da política de Trump: a valorização do dólar. Ontem a moeda americana deu um salto em relação à cesta de divisas de parceiros comerciais (1,6%, maior ganho desde setembro de 2022).

A barreira protecionista reforçada nos EUA provocará retaliações dos atingidos e da China, reduzindo as exportações globais. E, no caso chinês, freando uma das maiores fontes de dinamismo atual de sua economia, às voltas com menor crescimento devido ao estouro da bolha imobiliária. A zona do euro, com baixo crescimento, também será penalizada. A menor expansão da China reduzirá o crescimento global. Dólar mais caro e emissões com prêmios de risco maiores, em um horizonte de juros em alta nos EUA, tendem a elevar os juros no Brasil e reduzir o fluxo de divisas para o país.

Negacionista, Trump deve retirar novamente os EUA do Acordo de Paris, como fez no primeiro mandato, e estimular a exploração de combustíveis fósseis no segundo maior poluidor mundial. Não está claro o que fará com os US$ 370 bilhões do Inflation Reduction Act destinado a combater as mudanças climáticas. Ignorará ou tratará com desdém, como já fez, os organismos multilaterais que os EUA ajudaram a construir, do qual deriva, por exemplo, a Organização Mundial do Comércio.

Todas as ações não serão feitas da noite para o dia, embora haja certa urgência - no meio do mandato haverá eleições legislativas. Seu governo se definirá nos dois primeiros anos, quando estará livre de amarras. Trump radicalizou na campanha e venceu. É possível, mas pouco provável, que exiba moderação com o poder de volta às mãos.

Triunfo de Trump eleva incertezas globais

Folha de S. Paulo

Vitória de condenado expõe limites da política tradicional e deve provocar reviravolta geopolítica, com efeitos para o Brasil

Por amarga que seja aos olhos de quem preze a arquitetura da democracia liberal, a vitória de Donald John Trump, 78, na eleição presidencial norte-americana é inequívoca.

O ex-mandatário triunfou tanto no arcaico Colégio Eleitoral dos Estados Unidos quanto na votação popular, algo que um republicano não conseguia desde a reeleição de George W. Bush, há 20 anos. Trump pode ainda obter o controle total do Legislativo por ao menos dois anos.

É um feito maiúsculo do populismo conservador do século 21. O eleitor recolocou na Casa Branca um mitômano condenado pela Justiça, às voltas com acusações diversas e que patrocinou um atentado histórico à liberdade que diz defender, o ataque ao Capitólio em 2021.

Isso diz muito sobre a inabilidade do presidente Joe Biden e de sua vice, a derrotada Kamala Harris, em galvanizar a mensagem que os elegeu há quatro anos —a de que o arcabouço institucional trabalha por seus cidadãos.

Mais importante, os democratas não conseguiram que o manejo bem-sucedido da economia pós-pandemia fosse percebido como melhorias na vida de todos.

Resta, por evidente, saber como se comportará Trump. Na frente doméstica, têm tudo a temer os imigrantes, alvos de uma campanha violenta. Mas cabe lembrar que os mecanismos de controle do país já coibiram a aplicação total de ideias que o levaram ao poder em 2016.

Não que eles sejam inquebráveis, e o teste de estresse está contratado. Assim como a turbulência no cenário internacional, que não apenas reflete os dilemas da maior economia do planeta, mas também suas diretrizes geopolíticas.

Aqui, a montanha-russa dos quatro primeiros anos do republicano faz vislumbrar impactos potencialmente brutais, a começar pelo negacionismo climático. Mirando sempre a China, rival estratégica dos EUA, o prometido protecionismo comercial atingirá também países como o Brasil.

Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por sinal, perdeu há poucos dias nova oportunidade de exercer comedimento ao associar Trump ao fascismo e ao nazismo. Tratou de cumprimentá-lo nesta quarta (6) pela vitória, previsivelmente celebrada pela oposição bolsonarista como profecia para 2026.

Os conflitos que assolam o planeta passarão por tensão adicional. Quanto à Ucrânia, a posição sugerida até aqui por Trump tende a favorecer as pretensões territoriais de Vladimir Putin. A relação com a Otan estará em xeque, mas a política democrata anti-China deve seguir.

No Oriente MédioIsrael ganhará um aliado mais enfático após o apoio relutante, ainda que maciço, de Biden. O risco de um confronto direto com o Irã cresce.

Sem poder se reeleger e com compreensão escassa acerca de um mundo mais facetado do que há oito anos, Trump estará tentado a agir de forma espetacular, ainda que limitado pelas amarras institucionais que desafia.

É hora de impor a lei às torcidas organizadas

Folha de S. Paulo

Emboscadas como a ocorrida em rodovia em SP, com 1 homem morto e 20 feridos, são recorrentes; falta rigor para banir criminosos do futebol

Está longe de ser uma excepcionalidade o ato bárbaro engendrado por criminosos travestidos de torcedores de futebol que, em uma emboscada na rodovia Fernão Dias, atacaram ônibus e deixaram um homem morto e cerca de 20 feridos.

A selvageria foi comandada por palmeirenses da Mancha Alviverde contra integrantes da Máfia Azul, torcida do Cruzeiro, no dia 27 de outubro, em Mairiporã (SP). Cerca de 150 delinquentes lançaram pregos na pista, o que forçou a parada de dois ônibus.

A investida da choldra, uma possível vingança motivada por um outro confronto entre os grupos inimigos, há dois anos, incluiu bombas, rojões, coquetéis molotov e barras de ferro.

motoboy José Victor Miranda, 30, foi espancado e carbonizado. Sete homens sofreram traumatismo craniano, e um outro foi baleado no abdome. Apenas um suspeito foi preso, e havia seis foragidos até quarta-feira (6), incluindo o presidente da Mancha, Jorge Luis Sampaio, 43.

Batalhas campais do tipo, não raro envolvendo assassinatos, ocorrem há décadas com certa frequência no estado. A reação de autoridades, clubes e entidades do esporte, contudo, é no mínimo insuficiente.
Desta vez, a Federação Paulista de Futebol proibiu a entrada da Mancha nos estádios de São Paulo, e a Promotoria de Minas Gerais pediu seu banimento no país.

A violência brutal historicamente entranhada nas ditas "torcidas organizadas" envolve fatores sociais, culturais e econômicos; rivalidades clubísticas que indevidamente transbordam dos campos para as ruas; sentimento de identidade, pertencimento de grupo e comportamento de manada —que talvez não se manifestasse de forma individual.

Questões psicológicas à parte, o fato é que a adoção da torcida única nos estádios, em 2016, pouco alterou esse quadro hostil.

Além do comodismo das autoridades paulistas ao lidar com a questão e da falência civilizatória de imaginar que entusiastas de agremiações distintas não possam dividir o mesmo espaço, os conflitos apenas trocaram estádios e cercanias por outros locais —prova disso é que sete torcedores foram mortos desde então.

O combate à violência impõe o fim de vínculos com os clubes, que não raro subsidiam organizadas com ingressos e viagens; emprego de tecnologia, com câmeras de reconhecimento facial nos estádios e o consequente banimento dos jogos; atuação rigorosa das forças de segurança, com uso da inteligência, identificação das lideranças criminosas e a criação de um cadastro nacional.

Americanos escolhem o populismo autoritário

O Estado de S. Paulo

Trump provou que americanos estão realmente aborrecidos com o establishment, que os democratas bem representam. Ele ganhou amplo poder, mas terá pouco tempo para mostrar serviço

O demagogo Donald Trump voltou à Casa Branca após dois processos de impeachment, quatro indiciamentos, uma condenação criminal, dissidências republicanas, a repulsa na mídia e em Hollywood, milhões de dólares a mais doados aos democratas e comparações com Hitler. Sobreviveu ainda a um atentado e, suspeita-se, a uma tentativa. As urnas falaram em alto e bom som.

Não foi um resultado da “desinformação” das redes sociais, como ultimamente têm dito os que perdem eleições para os populistas de direita. Foi uma vitória tão acachapante que os eleitores, ao contrário, demonstraram estar muito bem informados – sobretudo em relação à incapacidade dos democratas de enfrentar o que a maioria dos americanos enxerga como os principais problemas do país.

Com isso, Trump ganhou de Kamala Harris no voto popular por larga margem e o Partido Republicano parecia estar a caminho de conquistar a maioria no Congresso. Considerando-se que Trump já controla a Suprema Corte, o futuro presidente americano terá a faca e o queijo nas mãos para implementar suas promessas de campanha, que incluem deportar milhões de imigrantes ilegais, colocar o Departamento de Justiça a serviço de seu desejo de vingança contra seus adversários, transformar os EUA numa ilha protegida por tarifas e abandonar alianças e acordos militares, comerciais e ambientais, tornando o mundo consideravelmente mais instável.

Se os democratas quiserem atribuir o desastre à misoginia, ao racismo, ao fascismo, o farão por sua conta e risco. O fato é que o presidente Joe Biden falhou em reunir as condições necessárias para reduzir rapidamente a inflação que castigou a classe média americana nos últimos anos. Os índices só começaram a ceder recentemente, com pouco efeito prático sobre os preços, e é provável que seja Trump a colher os louros populares de uma recuperação econômica que já se verifica agora.

Ademais, ao invés de fazer um governo de transição, como prometido, Biden aferrou-se ao sonho da reeleição até se espatifar contra a realidade. Por anos, qualquer um que questionasse suas capacidades mentais era vilipendiado como um agente de desinformação da “extrema direita”. Quando ficou claro que Biden não tinha condições de concorrer, Kamala Harris foi coroada candidata pela elite democrata sem um único voto em eleições primárias. As únicas certezas em sua campanha eram a defesa do direito ao aborto e sua luta contra as ameaças à democracia, preocupações absolutamente secundárias para a maioria do eleitorado, como agora está claro. Ou seja, os democratas abusaram do direito de errar.

Já Trump provou que os americanos estão realmente aborrecidos com o establishment, que os democratas tão bem representam. Para a maioria dos eleitores, não importa que Trump seja um criminoso e um golpista, que não reconheceria o resultado da eleição se lhe fosse desfavorável, como fez há quatro anos. Aliás, já parece suficientemente claro que fazer troça da lei e da Constituição tornou-se um ativo político-eleitoral para Trump, visto como o outsider capaz de desafiar a estrutura jurídica e institucional do “sistema” – nome genérico para designar tudo aquilo que, segundo o discurso trumpista, frustra o sonho de “fazer a América grande de novo”, como diz o slogan de sua campanha e de seu movimento.

Ao desmoralizar espetacularmente o “sistema”, Trump praticamente não terá oposição ao assumir seu novo mandato. Isso obviamente lhe dá enorme liberdade para implementar sua agenda – que, a julgar pelo seu primeiro mandato, dependerá exclusivamente de seu humor. Como Trump é um orgulhoso agente do caos, é impossível fazer qualquer previsão.

Mas então virá o teste da realidade. Se suas políticas resultarem em inflação e desemprego, como alertam economistas de diversas extrações, Trump não terá a quem atribuir a responsabilidade, já que o Congresso e a Suprema Corte estarão sob seu comando. E então as engrenagens do “sistema” voltarão a funcionar, pois é assim que funciona a democracia. Considerando que Trump não pode concorrer a outro mandato e que daqui a dois anos haverá novas eleições, para a renovação de parte do Congresso e de governos estaduais, ele terá esse curtíssimo período para mostrar serviço e entregar a prometida “era de ouro da América”. Do contrário, será apenas um “pato manco” falastrão.

Muito barulho por nada

O Estado de S. Paulo

Após pacto mediado pelo STF para dar fim à crise entre governo e Legislativo, emendas parlamentares mudam para ficar como estavam, exatamente como o Congresso queria

Para quem tinha esperança de que o pagamento de emendas parlamentares seguiria critérios mais transparentes e rastreáveis depois da suspensão dos repasses pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino, a Câmara dos Deputados deu uma contundente resposta nesta semana.

O texto garantiu R$ 50,5 bilhões aos deputados e senadores em 2025, praticamente o mesmo valor deste ano, sem atender às condições impostas pelo ministro para liberar os recursos bloqueados. Era um resultado previsível, como este jornal prenunciava em agosto, após a divulgação dos termos do pacto mediado pelo Judiciário para dar fim à crise entre Executivo e Legislativo (ver o editorial A montanha pariu um rato, publicado em 22/8/2024).

A proposta foi elaborada pelo deputado Rubens Pereira Júnior (PT-MA), aliado do ministro Flávio Dino, e um dos vice-líderes do governo, e acabou por ser relatada por Elmar Nascimento (União-BA).

Elmar estava magoado com seu “melhor amigo”, ninguém menos que o atual presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), após o alagoano ter declarado apoio a Hugo Motta (Republicanos-PB) na disputa pela sucessão da Casa. Lira, então, deu a Elmar a relatoria do projeto, e bastou um dia para que essa bela amizade fosse reconstruída sobre novas bases.

As emendas individuais e de bancada, de execução obrigatória, continuarão a crescer ano a ano. A diferença é que, a partir de 2026, seguirão o arcabouço fiscal, que garante um aumento real, ou seja, acima da inflação, de 2,5%.

Quanto às emendas Pix, um tipo de emenda individual e, portanto, impositiva, os autores deverão indicar o objeto e o valor das indicações, dando preferência a obras inacabadas de Estados e municípios, mas não será exigido cronograma de execução nem assinatura de convênio para o envio dos recursos.

Ainda em relação às emendas de bancada estadual, a exigência de que sejam restritas a projetos e ações estruturantes foi flexibilizada e a lista, ampliada. Os parlamentares poderão dividir os recursos individualmente e também poderão destinar verba para outros Estados.

Herdeiras das emendas de relator, que deram base ao “orçamento secreto”, esquema revelado pelo Estadão, as emendas de comissão partirão do patamar de R$ 11,5 bilhões, serão corrigidas pela inflação – privilégio garantido somente às despesas obrigatórias – e só poderão ser bloqueadas na mesma proporção dos demais gastos discricionários.

Além disso, não será preciso identificar os nomes dos padrinhos das emendas de comissão, uma afronta não só à decisão mais recente de Flávio Dino, como à do plenário do STF em 2022, quando foi reconhecida a inconstitucionalidade do “orçamento secreto”. Caberá aos líderes, e não aos colegiados, determinar o destino do dinheiro.

O texto recebeu 330 votos favoráveis e 74 contrários. Ele ainda será submetido ao Senado, mas por lá tampouco enfrentará problemas. O Congresso tem pressa para liberar os R$ 17,5 bilhões bloqueados pela decisão de Dino e, de acordo com o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a proposta deve ser analisada já na próxima semana.

Se aprovada, a medida deve referendar as mudanças iniciadas pelo Congresso há quase dez anos. Foi em março de 2015, logo após a reeleição da então presidente Dilma Rousseff, que a primeira de uma série de emendas constitucionais que alteraram a execução das emendas parlamentares foi aprovada, em uma sessão da Câmara liderada por aquele que se tornaria o algoz da petista, Eduardo Cunha (MDB-RJ), líder do mesmo grupo político de Arthur Lira e de Hugo Motta.

O impacto desse movimento no processo eleitoral não pode ser desprezado. Enquanto essas indicações abocanhavam um espaço crescente do Orçamento Geral da União, deputados e senadores consolidavam suas bases eleitorais. Na disputa deste ano, a proporção de prefeitos reeleitos foi de 80%, a maior dos últimos 20 anos, e, nas 112 cidades mais contempladas com emendas, o sucesso foi ainda maior e alcançou impressionantes 93,7%.

Com o projeto aprovado nesta semana, tudo muda para continuar como está, exatamente como a cúpula do Legislativo desejava.

Os antissemitas estão à vontade

O Estado de S. Paulo

Extremistas interrompem evento na Federal do Ceará. Para a turma que se diz ‘antissionista’, não há debate com judeus

O vírus da intolerância ideológica que contamina universidades encontrou no Ceará mais um hospedeiro, desta vez oferecendo evidências de algo impensável, porém cada dia mais real: o recrudescimento do antissemitismo no Brasil. No dia 30 de outubro, estudantes pró-Palestina organizaram um protesto na Universidade Federal do Ceará (UFC) contra um evento acadêmico que se propunha a discutir o atual conflito no Oriente Médio e que tinha entre seus participantes dois autodeclarados sionistas – isto é, que defendem o direito dos judeus à autodeterminação e a um Estado soberano no território que corresponde ao antigo Israel.

Organizado pelo curso de pós-graduação em Sociologia, o evento tinha como palestrante Michel Gherman, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador da questão judaica e do antissemitismo. Ele se declara “sionista de esquerda” e frequentemente manifesta duras críticas ao atual governo de Israel. Os debatedores eram o doutorando Matheus Alexandre, que integra a StandWithUs, uma ONG internacional que se dedica a defender Israel e a combater o antissemitismo, e Jawdat Abu-El-Haj, professor da UFC e palestino nascido em Jerusalém. Participava da mesa, ainda, o professor Fabio Gentile, coordenador do programa e pesquisador da extrema direita.

Ou seja, se havia algum desequilíbrio na mesa, era em favor do viés de esquerda na análise do presente conflito no Oriente Médio. No entanto, os debatedores não foram hostilizados pelas ideias que defendem, pois nem tiveram tempo de enunciá-las, e sim pelo que são: judeus (chamados de “sionistas”) ou supostamente rendidos a grupos sionistas. O nome disso é antissemitismo.

Para esses arruaceiros judeofóbicos, a existência de Israel é afrontosa porque simboliza não só a capacidade dos judeus de se defenderem depois de séculos de perseguição, como também o avanço dos valores ocidentais em território que sempre foi hostil à democracia, ao liberalismo e aos direitos humanos.

Nada disso é novo. Foi sob Stalin que o termo “sionismo” passou a ser usado para designar uma espécie de complô ocidental contra os povos árabes e muçulmanos, distorcendo grosseiramente o sentido original justamente para disfarçar o óbvio antissemitismo – afinal, não pegava bem para a URSS ser abertamente antissemita depois de ter lutado contra Hitler. Não é à toa que a convocação para o ato dizia que “o sionismo é uma ideologia racista e supremacista branca” e que, “junto do nazismo, é uma das piores e mais sanguinárias criações humanas”. Stalin não teria dito melhor.

Para não deixar dúvidas sobre o espírito que os movia, os manifestantes interromperam o evento portando uma imagem de Yahya Sinwar, o líder terrorista do Hamas que arquitetou o massacre de centenas de israelenses inocentes em 7 de outubro de 2023.

Infelizmente, a truculência deu resultado, e o evento foi suspenso. Em nota, os organizadores lamentaram o desfecho e alertaram: “O perigo é desencadear um mecanismo de autocensura no corpo docente e no discente, preocupados, doravante, em evitar algumas temáticas para não provocar episódios semelhantes, alimentando assim uma visão única e acrítica dos processos sociais”. É assim que funciona em regimes totalitários.

 

 

 

 

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