As razões — e os riscos — da vitória de Trump
O Globo
Ele responde a anseios de população
insatisfeita, mas seu novo governo é um mergulho na incerteza
A volta do republicano Donald Trump à Casa Branca foi selada com uma vitória incontestável nas urnas. Ele derrotou a democrata Kamala Harris nos estados decisivos, recuperou a maioria no Senado, caminha para manter também o controle da Câmara e, contrariando as previsões, para vencer até na votação popular, somando confortavelmente mais de metade do total de votos. O mapa de seu desempenho nas urnas lembra o de 2016, quando irrompeu derrotando Hillary Clinton nos bastiões do Meio-Oeste antes tidos como redutos seguros dos democratas. Agora, independentemente da opinião que se tenha sobre a figura de Trump — capaz de despertar paixões antagônicas —, é preciso reconhecer que a democracia funcionou. Mais uma vez, ele chega ao poder por meios legítimos.
A questão mais elementar — quase simplória —
que o resultado da eleição impõe é: por quê? O que levou dezenas de milhões de
americanos a votar em alguém que já sofreu dois impeachments, incitou uma
multidão a invadir e depredar o Capitólio para mantê-lo no poder depois de ter
perdido a eleição de 2020, foi condenado criminalmente por subornar uma atriz
pornô e num caso civil por importunação sexual, ainda enfrenta outros três
processos criminais, 116 acusações na Justiça e, no último mandato, ficou conhecido
pela mendacidade, pela misoginia, pela xenofobia e por ter rebaixado o discurso
político ao nível mais grosseiro?
Há duas respostas — não excludentes — a essa
questão. A primeira tem a ver com o fastio da população com as instituições
convencionais, a classe política de Washington, as elites acadêmicas e
intelectuais, as agruras financeiras, o custo da saúde e da moradia, a profusão
de novos imigrantes no país e com o caráter de ruptura que Trump representa em
relação a tudo isso. Aos 78 anos, sua franqueza, seu tom despachado e
desinibido, sua falta de modos, sua autenticidade e seu discurso populista
trazem alívio à angústia dessa população. Paradoxalmente, ele desperta
confiança, pois todos têm certeza de quem é. Há ainda, nessa escolha, a
sensação de revanche, alimentada pelo ressentimento que, desta vez, não se
limitou aos brancos sem diploma universitário do Meio-Oeste. Trump ampliou sua
votação entre hispânicos, negros, mulheres e árabes-americanos, desfazendo o
agrupamento de minorias que costuma fortalecer o eleitorado democrata.
A segunda razão para sua vitória está
justamente nos erros dos democratas. A impopularidade do presidente Joe Biden e
a idade avançada recomendavam desde o início que não fosse candidato. Mesmo
assim, ele insistiu. Só desistiu depois que suas deficiências cognitivas se
tornaram evidentes no primeiro debate com Trump. A escolha de Kamala foi feita
de modo improvisado, sem abrir espaço a novas lideranças no partido. Ela
carregava o espectro de ter fracassado numa das questões centrais para o
eleitorado: a imigração. Apesar de a economia ter se recuperado depois da
pandemia, a percepção dos eleitores sobre a inflação continuou negativa. Kamala
escolheu um candidato a vice, Tim Walz, que pouco contribuiu para atrair
eleitores onde era mais necessário. Para completar, apostou que o voto
feminino, mobilizado pela defesa do direito ao aborto, bastaria para compensar
as perdas entre as minorias. Como se viu, não bastou.
Outra questão crítica, mas menos óbvia, são
as consequências do novo governo Trump para o país e para o mundo. Pelo
retrospecto de sua primeira gestão e por tudo o que ele prometeu na campanha,
não é difícil prever problemas em várias esferas. Na economia, o protecionismo,
o controle de fronteiras e sua inclinação a distribuir cortes de impostos sem
nenhuma preocupação fiscal permitem antever uma ampliação da dívida pública
superior a US$ 4 trilhões ao longo do mandato. No médio prazo, isso viraria
combustível para a inflação e para os juros, com efeito negativo na perspectiva
de crescimento.
No cenário internacional, sua
imprevisibilidade não estará submetida às instâncias que funcionaram como freio
aos piores impulsos na gestão anterior. O conflito comercial com a China
tenderá a se agravar com a imposição de tarifas, prejudicando as cadeias
globais de suprimentos. A Ucrânia deverá ser forçada a fazer concessões
territoriais e a compromissos com a Rússia de Vladimir Putin. Israel não deverá
contar com a pressão dos americanos por moderação. A aliança atlântica com os
europeus voltará a se enfraquecer. E a América Latina pode começar a se
preparar para as deportações em massa que Trump promete.
No caso específico do Brasil, a proximidade
que ele mantém da família Bolsonaro poderá significar relações pouco amistosas
com o governo Luiz Inácio Lula da Silva. Apesar de ter cumprimentado Trump pela
vitória, Lula não se ajudou ao ter declarado, antes da eleição, preferir a
vitória de Kamala.
Nada disso, obviamente, é certo ou está
garantido. Com alguém imprevisível como Trump, a única certeza é a incerteza.
Não há, por fim, nenhum exagero retórico em
constatar que Trump representa um risco à democracia americana. A tentativa de
sabotar a vitória de Joe Biden, a invasão do Capitólio e seu desprezo por todos
aqueles que, na maioria conservadores republicanos em posições de autoridade,
tentaram cumprir seu dever cívico e institucional contendo os abusos ou
violações mais flagrantes ao longo de seu primeiro governo — tudo isso
contribui para formar um quadro fidedigno de alguém que menospreza as
instituições e não tem nenhum tipo de constrangimento em usar o poder do Estado
em benefício próprio.
A partir de janeiro de 2025, começa um novo
teste para a democracia americana. O resultado será conhecido até o dia 20 de
janeiro de 2029, quando terminará o segundo — e, de acordo com a Constituição,
último — mandato de Trump.
Trump corteja guerra de tarifas e volta da
inflação
Valor Econômico
Trump radicalizou na campanha e venceu. É
possível, mas pouco provável, que exiba moderação com o poder de volta às mãos
Donald Trump volta à Casa Branca após uma
grande vitória nas urnas. As apurações não terminaram, mas é certo que ele
vencerá a democrata Kamala Harris no voto popular com diferença superior a 5
milhões, o que não ocorrera em 2016, da primeira vez em que foi eleito - ele
perdeu por 3 milhões de votos para Hillary Clinton. As pesquisas se equivocaram
outra vez, ao prever uma disputa acirrada. Na verdade, Trump vencerá nos sete
Estados-pêndulo, melhorou sua margem de votos em relação a eleições anteriores em
todos os Estados (exceto Utah e Washington) e avançou nos segmentos que
costumam apoiar os democratas: negros e latinos. O presidente eleito terá
maioria no Senado, tem chance de levar a Câmara e já ganhou uma carta branca da
Suprema Corte, de maioria conservadora, que sentenciou que no cargo um
presidente pode fazer tudo o que quiser sem que possa ser processado.
Politicamente, a democracia americana navega
em mares desconhecidos. Trump preza autocratas e despreza as instituições. O
caminho está livre, tanto no Legislativo quanto no Judiciário, para que faça
tudo o que prometeu em sua campanha, se quiser. E se, em seu primeiro mandato,
ele cercou-se de republicanos tradicionais, nem todos dispostos a dobrar-se a
suas ordens, agora trará consigo para o governo do país mais poderoso do mundo
uma turma de fanáticos submissos. Se houve alguma chance de sofrer impeachment
no mandato anterior (escapou de dois), agora as chances de que seja punido por
eventuais más condutas é nula. A independência dos poderes sofreu um duro
golpe.
Imigração e economia foram dois temas
interligados que deram vitória ao republicano. Após reiterar sem parar em sua
campanha que colocará tarifas mais altas mesmo para países aliados, como
Canadá, México e União Europeia, e muito mais altas (60%) para a China, é
difícil que deixe de fazê-lo. Dois pontos da plataforma de Trump têm amplos
efeitos econômicos e políticos. Ele deve prorrogar o corte de US$ 1,7 trilhão
em impostos para empresas que expira no ano que vem e, se possível, ampliá-lo.
Segundo o Comitê por um Orçamento Federal Responsável, Trump empilhará em dez
anos mais US$ 7,5 trilhões aos US$ 34 trilhões de dívida pública existente.
O forte aumento do endividamento vai tornar
mais cara a rolagem da dívida - os títulos do Tesouro de 10 e 30 anos subiram
ontem, numa antevisão do que ocorrerá com os papéis tidos como mais seguros do
mundo nos próximos anos. O aumento dos juros desses títulos puxará os de maior
risco, encarecendo as emissões corporativas e soberanas dos países emergentes,
aumentando o custo de suas dívidas e do funding para investimentos.
Por outro lado, o abatimento fiscal acaba
sendo um estímulo à economia, que crescerá mais. O efeito conjunto de mais
dívida e novos estímulos a uma economia que não precisa deles é mais inflação.
O Federal Reserve (Fed, o banco central americano) deve hoje reduzir os juros
em mais 0,25 ponto, mas, nos próximos meses, poderá ter de interromper antes do
que pretendia o ciclo de baixa, caso a inflação ameace subir. Não está
descartado que daqui a um ano o Fed cogite elevá-los de novo, se continuar com
autonomia - Trump quer dominá-lo e colocar homens de sua confiança no comando
do banco.
Outro foco inflacionário virá do aumento das
tarifas - 10% para todos e 60% para a China, na hipótese de um Trump moderado.
O aumento será repassado aos preços das mercadorias e aos insumos das
indústrias, que terão majoração de custos. Como a economia está aquecida, o
mercado consumirá mais pagando mais caro pelos produtos, importados ou não,
também por outro efeito da política de Trump: a valorização do dólar. Ontem a
moeda americana deu um salto em relação à cesta de divisas de parceiros
comerciais (1,6%, maior ganho desde setembro de 2022).
A barreira protecionista reforçada nos EUA
provocará retaliações dos atingidos e da China, reduzindo as exportações
globais. E, no caso chinês, freando uma das maiores fontes de dinamismo atual
de sua economia, às voltas com menor crescimento devido ao estouro da bolha
imobiliária. A zona do euro, com baixo crescimento, também será penalizada. A
menor expansão da China reduzirá o crescimento global. Dólar mais caro e
emissões com prêmios de risco maiores, em um horizonte de juros em alta nos
EUA, tendem a elevar os juros no Brasil e reduzir o fluxo de divisas para o
país.
Negacionista, Trump deve retirar novamente os
EUA do Acordo de Paris, como fez no primeiro mandato, e estimular a exploração
de combustíveis fósseis no segundo maior poluidor mundial. Não está claro o que
fará com os US$ 370 bilhões do Inflation Reduction Act destinado a combater as
mudanças climáticas. Ignorará ou tratará com desdém, como já fez, os organismos
multilaterais que os EUA ajudaram a construir, do qual deriva, por exemplo, a
Organização Mundial do Comércio.
Todas as ações não serão feitas da noite para
o dia, embora haja certa urgência - no meio do mandato haverá eleições
legislativas. Seu governo se definirá nos dois primeiros anos, quando estará
livre de amarras. Trump radicalizou na campanha e venceu. É possível, mas pouco
provável, que exiba moderação com o poder de volta às mãos.
Triunfo de Trump eleva incertezas globais
Folha de S. Paulo
Vitória de condenado expõe limites da
política tradicional e deve provocar reviravolta geopolítica, com efeitos para
o Brasil
Por amarga que seja aos olhos de quem preze a
arquitetura da democracia liberal, a vitória
de Donald John Trump, 78, na eleição presidencial norte-americana é
inequívoca.
O ex-mandatário triunfou tanto no arcaico
Colégio Eleitoral dos Estados
Unidos quanto na votação popular, algo que um republicano não
conseguia desde a reeleição de George W. Bush, há 20 anos. Trump pode
ainda obter o controle total do Legislativo por ao menos dois anos.
É um feito maiúsculo do populismo conservador
do século 21. O eleitor recolocou na Casa Branca um mitômano
condenado pela Justiça, às voltas com acusações diversas e que
patrocinou um atentado histórico à liberdade que diz defender, o ataque ao
Capitólio em 2021.
Isso diz muito sobre a inabilidade do
presidente Joe
Biden e de sua vice, a derrotada Kamala Harris,
em galvanizar a mensagem que os elegeu há quatro anos —a de que o arcabouço
institucional trabalha por seus cidadãos.
Mais importante, os democratas não
conseguiram que o manejo bem-sucedido da economia pós-pandemia fosse
percebido como melhorias na vida de todos.
Resta, por evidente, saber como se comportará
Trump. Na frente doméstica, têm tudo a temer os imigrantes, alvos de uma
campanha violenta. Mas cabe lembrar que os mecanismos de controle do país já
coibiram a aplicação total de ideias que o levaram ao poder em 2016.
Não que eles sejam inquebráveis, e o teste de
estresse está contratado. Assim como a turbulência no cenário internacional,
que não apenas reflete os dilemas da maior economia do planeta, mas também suas
diretrizes geopolíticas.
Aqui, a montanha-russa dos quatro primeiros
anos do republicano faz vislumbrar impactos potencialmente brutais, a começar
pelo negacionismo climático. Mirando sempre a China, rival estratégica dos EUA,
o prometido protecionismo comercial atingirá também países como o Brasil.
Luiz Inácio Lula da Silva
(PT), por sinal,
perdeu há poucos dias nova oportunidade de exercer comedimento ao associar
Trump ao fascismo e ao nazismo. Tratou de cumprimentá-lo nesta quarta (6) pela
vitória, previsivelmente celebrada pela oposição bolsonarista como profecia
para 2026.
Os conflitos que assolam o planeta passarão
por tensão adicional. Quanto à Ucrânia, a
posição sugerida até aqui por Trump tende a favorecer as pretensões
territoriais de Vladimir
Putin. A relação com a Otan estará em xeque, mas a política democrata
anti-China deve seguir.
No Oriente Médio, Israel ganhará
um aliado mais enfático após o apoio relutante, ainda que maciço, de Biden. O
risco de um confronto direto com o Irã cresce.
Sem poder se reeleger e com compreensão
escassa acerca de um mundo mais facetado do que há oito anos, Trump estará
tentado a agir de forma espetacular, ainda que limitado pelas amarras
institucionais que desafia.
É hora de impor a lei às torcidas organizadas
Folha de S. Paulo
Emboscadas como a ocorrida em rodovia em SP,
com 1 homem morto e 20 feridos, são recorrentes; falta rigor para banir
criminosos do futebol
Está longe de ser uma excepcionalidade o ato
bárbaro engendrado por criminosos travestidos de torcedores de futebol que, em
uma emboscada
na rodovia Fernão Dias, atacaram ônibus e deixaram um homem morto e cerca
de 20 feridos.
A selvageria foi comandada por palmeirenses
da Mancha Alviverde contra integrantes da Máfia Azul, torcida do Cruzeiro, no
dia 27 de outubro, em Mairiporã (SP). Cerca de 150 delinquentes lançaram pregos
na pista, o que forçou a parada de dois ônibus.
A investida da choldra, uma possível vingança
motivada por um outro confronto entre os grupos inimigos, há dois anos, incluiu
bombas, rojões, coquetéis molotov e barras
de ferro.
O motoboy
José Victor Miranda, 30, foi espancado e carbonizado. Sete homens sofreram
traumatismo craniano, e um outro foi baleado no abdome. Apenas um suspeito foi
preso, e havia seis foragidos até quarta-feira (6), incluindo o presidente
da Mancha, Jorge Luis Sampaio, 43.
Batalhas campais do tipo, não raro envolvendo
assassinatos, ocorrem há décadas com certa frequência no estado. A reação de
autoridades, clubes e entidades do esporte, contudo, é no mínimo insuficiente.
Desta vez, a Federação Paulista de Futebol proibiu
a entrada da Mancha nos estádios de São Paulo, e a Promotoria de Minas
Gerais pediu
seu banimento no país.
A violência brutal historicamente entranhada
nas ditas "torcidas organizadas" envolve fatores sociais, culturais e
econômicos; rivalidades clubísticas que indevidamente transbordam dos campos
para as ruas; sentimento de identidade, pertencimento de grupo e comportamento
de manada —que talvez não se manifestasse de forma individual.
Questões psicológicas à parte, o fato é que a
adoção da torcida única nos estádios, em 2016, pouco alterou esse quadro
hostil.
Além do comodismo das autoridades paulistas
ao lidar com a questão e da falência civilizatória de imaginar que entusiastas
de agremiações distintas não possam dividir o mesmo espaço, os conflitos apenas
trocaram estádios e cercanias por outros locais —prova disso é que sete
torcedores foram mortos desde então.
O combate à violência impõe o fim de vínculos com os clubes, que não raro subsidiam organizadas com ingressos e viagens; emprego de tecnologia, com câmeras de reconhecimento facial nos estádios e o consequente banimento dos jogos; atuação rigorosa das forças de segurança, com uso da inteligência, identificação das lideranças criminosas e a criação de um cadastro nacional.
Americanos escolhem o populismo autoritário
O Estado de S. Paulo
Trump provou que americanos estão realmente
aborrecidos com o establishment, que os democratas bem representam. Ele ganhou
amplo poder, mas terá pouco tempo para mostrar serviço
O demagogo Donald Trump voltou à Casa Branca
após dois processos de impeachment, quatro indiciamentos, uma condenação
criminal, dissidências republicanas, a repulsa na mídia e em Hollywood, milhões
de dólares a mais doados aos democratas e comparações com Hitler. Sobreviveu
ainda a um atentado e, suspeita-se, a uma tentativa. As urnas falaram em alto e
bom som.
Não foi um resultado da “desinformação” das
redes sociais, como ultimamente têm dito os que perdem eleições para os
populistas de direita. Foi uma vitória tão acachapante que os eleitores, ao
contrário, demonstraram estar muito bem informados – sobretudo em relação à
incapacidade dos democratas de enfrentar o que a maioria dos americanos enxerga
como os principais problemas do país.
Com isso, Trump ganhou de Kamala Harris no
voto popular por larga margem e o Partido Republicano parecia estar a caminho
de conquistar a maioria no Congresso. Considerando-se que Trump já controla a
Suprema Corte, o futuro presidente americano terá a faca e o queijo nas mãos
para implementar suas promessas de campanha, que incluem deportar milhões de
imigrantes ilegais, colocar o Departamento de Justiça a serviço de seu desejo
de vingança contra seus adversários, transformar os EUA numa ilha protegida por
tarifas e abandonar alianças e acordos militares, comerciais e ambientais,
tornando o mundo consideravelmente mais instável.
Se os democratas quiserem atribuir o desastre
à misoginia, ao racismo, ao fascismo, o farão por sua conta e risco. O fato é
que o presidente Joe Biden falhou em reunir as condições necessárias para
reduzir rapidamente a inflação que castigou a classe média americana nos
últimos anos. Os índices só começaram a ceder recentemente, com pouco efeito
prático sobre os preços, e é provável que seja Trump a colher os louros
populares de uma recuperação econômica que já se verifica agora.
Ademais, ao invés de fazer um governo de
transição, como prometido, Biden aferrou-se ao sonho da reeleição até se
espatifar contra a realidade. Por anos, qualquer um que questionasse suas
capacidades mentais era vilipendiado como um agente de desinformação da
“extrema direita”. Quando ficou claro que Biden não tinha condições de
concorrer, Kamala Harris foi coroada candidata pela elite democrata sem um
único voto em eleições primárias. As únicas certezas em sua campanha eram a
defesa do direito ao aborto e sua luta contra as ameaças à democracia,
preocupações absolutamente secundárias para a maioria do eleitorado, como agora
está claro. Ou seja, os democratas abusaram do direito de errar.
Já Trump provou que os americanos estão
realmente aborrecidos com o establishment, que os democratas tão bem
representam. Para a maioria dos eleitores, não importa que Trump seja um
criminoso e um golpista, que não reconheceria o resultado da eleição se lhe
fosse desfavorável, como fez há quatro anos. Aliás, já parece suficientemente
claro que fazer troça da lei e da Constituição tornou-se um ativo
político-eleitoral para Trump, visto como o outsider capaz de
desafiar a estrutura jurídica e institucional do “sistema” – nome genérico para
designar tudo aquilo que, segundo o discurso trumpista, frustra o sonho de
“fazer a América grande de novo”, como diz o slogan de sua campanha e de seu
movimento.
Ao desmoralizar espetacularmente o “sistema”,
Trump praticamente não terá oposição ao assumir seu novo mandato. Isso
obviamente lhe dá enorme liberdade para implementar sua agenda – que, a julgar
pelo seu primeiro mandato, dependerá exclusivamente de seu humor. Como Trump é
um orgulhoso agente do caos, é impossível fazer qualquer previsão.
Mas então virá o teste da realidade. Se suas
políticas resultarem em inflação e desemprego, como alertam economistas de
diversas extrações, Trump não terá a quem atribuir a responsabilidade, já que o
Congresso e a Suprema Corte estarão sob seu comando. E então as engrenagens do
“sistema” voltarão a funcionar, pois é assim que funciona a democracia.
Considerando que Trump não pode concorrer a outro mandato e que daqui a dois
anos haverá novas eleições, para a renovação de parte do Congresso e de
governos estaduais, ele terá esse curtíssimo período para mostrar serviço e
entregar a prometida “era de ouro da América”. Do contrário, será apenas um
“pato manco” falastrão.
Muito barulho por nada
O Estado de S. Paulo
Após pacto mediado pelo STF para dar fim à
crise entre governo e Legislativo, emendas parlamentares mudam para ficar como
estavam, exatamente como o Congresso queria
Para quem tinha esperança de que o pagamento
de emendas parlamentares seguiria critérios mais transparentes e rastreáveis
depois da suspensão dos repasses pelo ministro do Supremo Tribunal Federal
(STF) Flávio Dino, a Câmara dos Deputados deu uma contundente resposta nesta
semana.
O texto garantiu R$ 50,5 bilhões aos
deputados e senadores em 2025, praticamente o mesmo valor deste ano, sem
atender às condições impostas pelo ministro para liberar os recursos
bloqueados. Era um resultado previsível, como este jornal prenunciava em agosto,
após a divulgação dos termos do pacto mediado pelo Judiciário para dar fim à
crise entre Executivo e Legislativo (ver o editorial A montanha pariu um rato, publicado em 22/8/2024).
A proposta foi elaborada pelo deputado Rubens
Pereira Júnior (PT-MA), aliado do ministro Flávio Dino, e um dos vice-líderes
do governo, e acabou por ser relatada por Elmar Nascimento (União-BA).
Elmar estava magoado com seu “melhor amigo”,
ninguém menos que o atual presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), após o
alagoano ter declarado apoio a Hugo Motta (Republicanos-PB) na disputa pela
sucessão da Casa. Lira, então, deu a Elmar a relatoria do projeto, e bastou um
dia para que essa bela amizade fosse reconstruída sobre novas bases.
As emendas individuais e de bancada, de
execução obrigatória, continuarão a crescer ano a ano. A diferença é que, a
partir de 2026, seguirão o arcabouço fiscal, que garante um aumento real, ou
seja, acima da inflação, de 2,5%.
Quanto às emendas Pix, um tipo de emenda
individual e, portanto, impositiva, os autores deverão indicar o objeto e o
valor das indicações, dando preferência a obras inacabadas de Estados e
municípios, mas não será exigido cronograma de execução nem assinatura de
convênio para o envio dos recursos.
Ainda em relação às emendas de bancada
estadual, a exigência de que sejam restritas a projetos e ações estruturantes
foi flexibilizada e a lista, ampliada. Os parlamentares poderão dividir os
recursos individualmente e também poderão destinar verba para outros Estados.
Herdeiras das emendas de relator, que deram
base ao “orçamento secreto”, esquema revelado pelo Estadão, as emendas de
comissão partirão do patamar de R$ 11,5 bilhões, serão corrigidas pela inflação
– privilégio garantido somente às despesas obrigatórias – e só poderão ser
bloqueadas na mesma proporção dos demais gastos discricionários.
Além disso, não será preciso identificar os
nomes dos padrinhos das emendas de comissão, uma afronta não só à decisão mais
recente de Flávio Dino, como à do plenário do STF em 2022, quando foi
reconhecida a inconstitucionalidade do “orçamento secreto”. Caberá aos líderes,
e não aos colegiados, determinar o destino do dinheiro.
O texto recebeu 330 votos favoráveis e 74
contrários. Ele ainda será submetido ao Senado, mas por lá tampouco enfrentará
problemas. O Congresso tem pressa para liberar os R$ 17,5 bilhões bloqueados
pela decisão de Dino e, de acordo com o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco
(PSD-MG), a proposta deve ser analisada já na próxima semana.
Se aprovada, a medida deve referendar as
mudanças iniciadas pelo Congresso há quase dez anos. Foi em março de 2015, logo
após a reeleição da então presidente Dilma Rousseff, que a primeira de uma
série de emendas constitucionais que alteraram a execução das emendas
parlamentares foi aprovada, em uma sessão da Câmara liderada por aquele que se
tornaria o algoz da petista, Eduardo Cunha (MDB-RJ), líder do mesmo grupo
político de Arthur Lira e de Hugo Motta.
O impacto desse movimento no processo
eleitoral não pode ser desprezado. Enquanto essas indicações abocanhavam um
espaço crescente do Orçamento Geral da União, deputados e senadores
consolidavam suas bases eleitorais. Na disputa deste ano, a proporção de
prefeitos reeleitos foi de 80%, a maior dos últimos 20 anos, e, nas 112 cidades
mais contempladas com emendas, o sucesso foi ainda maior e alcançou
impressionantes 93,7%.
Com o projeto aprovado nesta semana, tudo
muda para continuar como está, exatamente como a cúpula do Legislativo
desejava.
Os antissemitas estão à vontade
O Estado de S. Paulo
Extremistas interrompem evento na Federal do
Ceará. Para a turma que se diz ‘antissionista’, não há debate com judeus
O vírus da intolerância ideológica que
contamina universidades encontrou no Ceará mais um hospedeiro, desta vez
oferecendo evidências de algo impensável, porém cada dia mais real: o
recrudescimento do antissemitismo no Brasil. No dia 30 de outubro, estudantes
pró-Palestina organizaram um protesto na Universidade Federal do Ceará (UFC)
contra um evento acadêmico que se propunha a discutir o atual conflito no
Oriente Médio e que tinha entre seus participantes dois autodeclarados
sionistas – isto é, que defendem o direito dos judeus à autodeterminação e a um
Estado soberano no território que corresponde ao antigo Israel.
Organizado pelo curso de pós-graduação em
Sociologia, o evento tinha como palestrante Michel Gherman, professor da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador da questão judaica
e do antissemitismo. Ele se declara “sionista de esquerda” e frequentemente
manifesta duras críticas ao atual governo de Israel. Os debatedores eram o
doutorando Matheus Alexandre, que integra a StandWithUs, uma ONG internacional
que se dedica a defender Israel e a combater o antissemitismo, e Jawdat
Abu-El-Haj, professor da UFC e palestino nascido em Jerusalém. Participava da
mesa, ainda, o professor Fabio Gentile, coordenador do programa e pesquisador
da extrema direita.
Ou seja, se havia algum desequilíbrio na
mesa, era em favor do viés de esquerda na análise do presente conflito no
Oriente Médio. No entanto, os debatedores não foram hostilizados pelas ideias
que defendem, pois nem tiveram tempo de enunciá-las, e sim pelo que são: judeus
(chamados de “sionistas”) ou supostamente rendidos a grupos sionistas. O nome
disso é antissemitismo.
Para esses arruaceiros judeofóbicos, a
existência de Israel é afrontosa porque simboliza não só a capacidade dos
judeus de se defenderem depois de séculos de perseguição, como também o avanço
dos valores ocidentais em território que sempre foi hostil à democracia, ao
liberalismo e aos direitos humanos.
Nada disso é novo. Foi sob Stalin que o termo
“sionismo” passou a ser usado para designar uma espécie de complô ocidental
contra os povos árabes e muçulmanos, distorcendo grosseiramente o sentido
original justamente para disfarçar o óbvio antissemitismo – afinal, não pegava
bem para a URSS ser abertamente antissemita depois de ter lutado contra Hitler.
Não é à toa que a convocação para o ato dizia que “o sionismo é uma ideologia
racista e supremacista branca” e que, “junto do nazismo, é uma das piores e mais
sanguinárias criações humanas”. Stalin não teria dito melhor.
Para não deixar dúvidas sobre o espírito que
os movia, os manifestantes interromperam o evento portando uma imagem de Yahya
Sinwar, o líder terrorista do Hamas que arquitetou o massacre de centenas de
israelenses inocentes em 7 de outubro de 2023.
Infelizmente, a truculência deu resultado, e
o evento foi suspenso. Em nota, os organizadores lamentaram o desfecho e
alertaram: “O perigo é desencadear um mecanismo de autocensura no corpo docente
e no discente, preocupados, doravante, em evitar algumas temáticas para não
provocar episódios semelhantes, alimentando assim uma visão única e acrítica
dos processos sociais”. É assim que funciona em regimes totalitários.
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