Folha de S. Paulo
Quem olhar por alto os indicadores da
economia dos Estados
Unidos neste 2024 considerará uma tremenda injustiça a vitória do
republicano Donald Trump sobre
a democrata Kamala Harris,
representante de um governo que deve entregar o país com taxas
muito positivas.
Nos últimos meses, os EUA evitaram o pior: um
"hard landing", ou seja, uma recessão para conter a inflação
pós-pandemia. A transição para a normalidade vem se dando de forma suave e
surpreendentemente boa.
Até setembro, a inflação em 12 meses subiu
2,1% (para uma meta de 2%), e a taxa de desemprego era baixíssima, de 4,1%. Só
naquele mês, 254 mil novas vagas de trabalho foram geradas.
Os principais índices do mercado de ações do país, como o S&P 500 e o Nasdaq —em que o grosso dos americanos que têm dinheiro investem— acumulam valorização superior a 30% em um ano.
Se a economia e o bolso geralmente predominam
nas decisões de voto, por que, afinal, Trump prevaleceu num contexto positivo
deixado pelos democratas?
Infelizmente para grande parte dos
americanos, inflação na meta, desemprego baixo e índices de ações
estratosféricos revelam apenas um
lado do percurso da economia dos EUA nos últimos anos. O fato é
que os 50% mais pobres estão praticamente alijados dessa aparente trajetória de
sucesso.
Nesse contexto, a vitória do republicano
em estados
industriais considerados decadentes e vítimas da globalização,
como Pensilvânia, Ohio e, provavelmente, Michigan são uma espécie de vingança
de seus eleitores.
Segundo o World Income Database (WID),
plataforma de dados gerida pela turma do renomado economista francês Thomas
Piketty, autor do
best-seller "O Capital no Século 21" (Intrínseca,
2014), a concentração de renda nos EUA seguiu firme nos últimos quatro anos,
reforçando tendência de décadas.
O WID mostra que enquanto a renda do 1% mais
rico —assim como a dos 10% no topo— continuou aumentando desde a primeira
vitória de Trump em 2016, a metade mais pobre permaneceu estagnada.
No ano passado, enquanto os dois primeiros
grupos (1% e 10% mais ricos) se apropriavam de 20,7% e 46,8% da renda,
respectivamente, a metade "de baixo" ficou com apenas 13,4% do total.
No meio desses grupos, a classe média (renda
anual próxima a US$ 80 mil por ano, ou R$ 460 mil) também não teve alta
significativa em seus rendimentos. O segmento inclusive encolheu de cerca de
60% do total de americanos para 50% desde os anos 1980.
A principal mensagem da
obra de Piketty é que, nos países desenvolvidos, a taxa de
acumulação de renda nas camadas superiores tem sido maior do que os índices de
crescimento econômico. Para o francês, tal tendência seria hoje a maior ameaça
à democracia —um campo fértil para candidatos populistas que prometem trazer de
volta um passado glorioso, como o MAGA, "Make America Great Again",
de Trump.
A vitória do republicano, que tenderá a se
mostrar ainda mais radical do que em seu primeiro mandato, porém, não coloca em
risco somente a mais tradicional democracia do planeta, mas o mundo com suas
propostas até aqui conhecidas.
Na campanha, Trump prometeu renovar até o
final de 2025 o corte de impostos concedido aos americanos em 2017, o que
aumentaria em cerca de US$ 3 trilhões o déficit fiscal do país em dez anos.
Para este ano, o Congressional Budget Office,
um órgão fiscal independente, projeta déficit de 7% do PIB (Produto Interno
Bruto), atingindo US$ 1,9 trilhão; e a escalada do rombo já elevou a dívida
pública bruta americana para US$ 33,1 trilhões, ou 123% do PIB.
Só neste 2024, os EUA estão rolando cerca de
US$ 10 trilhões de sua dívida e, para atrair compradores de seus títulos, vêm
pagando juros de 4,4% ao ano em papéis de dez anos —uma enormidade para os
padrões do país.
Como a taxa desses títulos serve de
referência para o resto do mundo, nações endividadas como o Brasil serão
obrigadas a manter juros também muito elevados para atrair investidores e rolar
suas próprias dívidas.
No caso brasileiro, serão inevitáveis os
impactos negativos sobre o crescimento econômico e a dinâmica do já preocupante
endividamento.
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