Valor Econômico
Se a mitigação da verdade, a deportação em
massa, o poder desmedido das corporações e o desabrigo das minorias integram a
democracia que o eleitor americano quis consagrar, os impedimentos à
aproximação do Brasil do mundo autocrático tendem a se arrefecer
De outubro de 2019 para cá, 8.248 brasileiros
foram deportados dos Estados Unidos em função de um acordo firmado entre os
governos Jair Bolsonaro e Donald Trump. Os consulados brasileiros passaram a
enviar ao governo americano, à revelia, documentos dos deportáveis que permitem
sua entrada no Brasil. O acordo sobreviveu às posses de Joe Biden e Luiz Inácio
Lula da Silva.
Um terço dos voos que pousaram em Confins com
os repatriados o fez sob Lula. Pesou sobre a decisão do Itamaraty de manter o
acordo, a despeito da mudança dos governos, o fato de os brasileiros já terem
recebido a ordem final de deportação. Em última instância, porém, o acordo
facilita a deportação em massa e, por isso, enfrentou a resistência do
Itamaraty por décadas.
A vitória republicana na Casa Branca a caminho de se estender para as duas Casas do Congresso tem reflexos planetários, mas a continuidade dos pousos, quase quinzenais, ao longo desses cinco anos é uma demonstração de como os confrontos políticos encontram seu ponto de acomodação - nem sempre, é verdade, em benefício do interesse nacional.
A pesquisa de boca de urna da AP (120 mil
entrevistados) identificou que, a despeito da preocupação majoritária com um
país mais autoritário sob Trump, o rechaço à inflação se sobrepôs. A mitigação
da verdade, a deportação em massa, o poder desmedido das corporações e o
desabrigo das minorias e dos direitos das mulheres ficam em segundo plano. A
vitória estendida ao voto popular não deixa dúvidas de que esta é a vontade da
maioria.
Se a democracia fica em segundo plano nos
EUA, as últimas resistências à aproximação da política externa brasileira das
potências autocráticas tendem a se enfraquecer. Até porque a aproximação, na
economia, precede os resultados eleitorais desta terça-feira.
O comércio com a China quadruplicou desde que
o país se tornou o principal parceiro comercial do Brasil, em 2009. As
exportações brasileiras para a China superaram, nos últimos dois anos, o total
somado das exportações para Estados Unidos e União Europeia.
As vendas para cinco parceiros da Asean
(Singapura, Indonésia, Tailândia, Malásia e Vietnã) superaram, no ano passado,
as vendas do Brasil para cinco do G7 (Alemanha, França, Itália, Japão e Reino
Unido). A rápida superação da pobreza nos 11 países da Asean (700 milhões de
habitantes) abre novas perspectivas para a relação do Brasil com a região, que
foi responsável por 15% do superávit comercial do ano passado.
Este balanço tende a ser enfatizado pelo
Itamaraty à medida que se aproxima a visita de Estado de Xi Jiping em 20/11, na
sequência do G20. É provável que a amplitude dos acordos a serem anunciados
nesta visita seja impactada por uma eleição que substituiu o anticomunismo pelo
protecionismo. A ver se a China, sob pressão social de um crescimento mitigado,
vai alimentar a hostilidade de Trump e terá fôlego para investir no Brasil.
Cresce a percepção de que com os EUA sob nova
direção, a política externa brasileira ficaria mais desobrigada da “dívida de
gratidão” com os democratas. A última parcela desta dívida parece ter sido a
declaração de apoio a Kamala Harris pelo presidente Lula na véspera da eleição,
fugindo à tradição.
Se esta dívida lastreou tentativas do governo
Biden de alinhar o Brasil em algumas pautas, não significa que tenha sido
bem-sucedido. O maior exemplo foi a aproximação, às vésperas da viagem do
presidente a Washington, no início de 2023, de dois navios de guerra iranianos
do Porto do Rio. A embaixadora dos EUA, Elizabeth Bagley, verbalizou o
contragosto, o governo segurou uma decisão enquanto Lula esteve em solo
americano, e depois liberou a atracagem.
Se as concessões a um acordo com a China
dividem o governo - e o Itamaraty -, o impacto sobre fóruns como o G20 e a
COP30 parece apaziguado. Com a mudança de comando em Washington, as agendas de
transição energética e de taxação de fortunas perseguidas pelo Brasil tendem a
enfrentar mais resistências.
Uma saída para mitigar esta pressão, que
também contrabalanceia o pêndulo chinês, é a aceleração do acordo entre o
Mercosul e a União Europeia. Não seria só um acordo comercial mas de paz
comercial ante a ascensão do primado protecionista nos EUA. Ainda favorece esta
aproximação a iminência de a UE ser deixada a pé na Ucrânia pela persistente
postura anti-Otan de Trump.
O Brasil tentará tirar vantagem do apego de
Trump à lógica transacional, em detrimento do principismo dos democratas. O que
dificulta é a imprevisibilidade do que está por vir, mas esta lógica pode vir a
ponderar o impacto de sua eleição para a Venezuela, pedra no sapato do Brasil.
A vitória arrebatadora dos republicanos na
Flórida não deixa dúvida de que a pressão é por uma política imigratória mais
dura, mas a lógica transacional pode vir a ser conduzida por petroleiras que
retomaram, sob Biden, a exploração na Venezuela.
Sobre o Brasil, além da maior parte do mundo,
são as “big techs” que vão sobrepujar o peso das petroleiras na diplomacia
americana. E pelos valores expressos majoritariamente pelos eleitores, sua
desregulamentação, com o previsível impacto sobre a produção da verdade,
convergirá com o novo normal da democracia.
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