quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Novo normal da democracia nos EUA e o Brasil - Maria Cristina Fernandes

Valor Econômico

Se a mitigação da verdade, a deportação em massa, o poder desmedido das corporações e o desabrigo das minorias integram a democracia que o eleitor americano quis consagrar, os impedimentos à aproximação do Brasil do mundo autocrático tendem a se arrefecer

De outubro de 2019 para cá, 8.248 brasileiros foram deportados dos Estados Unidos em função de um acordo firmado entre os governos Jair Bolsonaro e Donald Trump. Os consulados brasileiros passaram a enviar ao governo americano, à revelia, documentos dos deportáveis que permitem sua entrada no Brasil. O acordo sobreviveu às posses de Joe Biden e Luiz Inácio Lula da Silva.

Um terço dos voos que pousaram em Confins com os repatriados o fez sob Lula. Pesou sobre a decisão do Itamaraty de manter o acordo, a despeito da mudança dos governos, o fato de os brasileiros já terem recebido a ordem final de deportação. Em última instância, porém, o acordo facilita a deportação em massa e, por isso, enfrentou a resistência do Itamaraty por décadas.

A vitória republicana na Casa Branca a caminho de se estender para as duas Casas do Congresso tem reflexos planetários, mas a continuidade dos pousos, quase quinzenais, ao longo desses cinco anos é uma demonstração de como os confrontos políticos encontram seu ponto de acomodação - nem sempre, é verdade, em benefício do interesse nacional.

A pesquisa de boca de urna da AP (120 mil entrevistados) identificou que, a despeito da preocupação majoritária com um país mais autoritário sob Trump, o rechaço à inflação se sobrepôs. A mitigação da verdade, a deportação em massa, o poder desmedido das corporações e o desabrigo das minorias e dos direitos das mulheres ficam em segundo plano. A vitória estendida ao voto popular não deixa dúvidas de que esta é a vontade da maioria.

Se a democracia fica em segundo plano nos EUA, as últimas resistências à aproximação da política externa brasileira das potências autocráticas tendem a se enfraquecer. Até porque a aproximação, na economia, precede os resultados eleitorais desta terça-feira.

O comércio com a China quadruplicou desde que o país se tornou o principal parceiro comercial do Brasil, em 2009. As exportações brasileiras para a China superaram, nos últimos dois anos, o total somado das exportações para Estados Unidos e União Europeia.

As vendas para cinco parceiros da Asean (Singapura, Indonésia, Tailândia, Malásia e Vietnã) superaram, no ano passado, as vendas do Brasil para cinco do G7 (Alemanha, França, Itália, Japão e Reino Unido). A rápida superação da pobreza nos 11 países da Asean (700 milhões de habitantes) abre novas perspectivas para a relação do Brasil com a região, que foi responsável por 15% do superávit comercial do ano passado.

Este balanço tende a ser enfatizado pelo Itamaraty à medida que se aproxima a visita de Estado de Xi Jiping em 20/11, na sequência do G20. É provável que a amplitude dos acordos a serem anunciados nesta visita seja impactada por uma eleição que substituiu o anticomunismo pelo protecionismo. A ver se a China, sob pressão social de um crescimento mitigado, vai alimentar a hostilidade de Trump e terá fôlego para investir no Brasil.

Cresce a percepção de que com os EUA sob nova direção, a política externa brasileira ficaria mais desobrigada da “dívida de gratidão” com os democratas. A última parcela desta dívida parece ter sido a declaração de apoio a Kamala Harris pelo presidente Lula na véspera da eleição, fugindo à tradição.

Se esta dívida lastreou tentativas do governo Biden de alinhar o Brasil em algumas pautas, não significa que tenha sido bem-sucedido. O maior exemplo foi a aproximação, às vésperas da viagem do presidente a Washington, no início de 2023, de dois navios de guerra iranianos do Porto do Rio. A embaixadora dos EUA, Elizabeth Bagley, verbalizou o contragosto, o governo segurou uma decisão enquanto Lula esteve em solo americano, e depois liberou a atracagem.

Se as concessões a um acordo com a China dividem o governo - e o Itamaraty -, o impacto sobre fóruns como o G20 e a COP30 parece apaziguado. Com a mudança de comando em Washington, as agendas de transição energética e de taxação de fortunas perseguidas pelo Brasil tendem a enfrentar mais resistências.

Uma saída para mitigar esta pressão, que também contrabalanceia o pêndulo chinês, é a aceleração do acordo entre o Mercosul e a União Europeia. Não seria só um acordo comercial mas de paz comercial ante a ascensão do primado protecionista nos EUA. Ainda favorece esta aproximação a iminência de a UE ser deixada a pé na Ucrânia pela persistente postura anti-Otan de Trump.

O Brasil tentará tirar vantagem do apego de Trump à lógica transacional, em detrimento do principismo dos democratas. O que dificulta é a imprevisibilidade do que está por vir, mas esta lógica pode vir a ponderar o impacto de sua eleição para a Venezuela, pedra no sapato do Brasil.

A vitória arrebatadora dos republicanos na Flórida não deixa dúvida de que a pressão é por uma política imigratória mais dura, mas a lógica transacional pode vir a ser conduzida por petroleiras que retomaram, sob Biden, a exploração na Venezuela.

Sobre o Brasil, além da maior parte do mundo, são as “big techs” que vão sobrepujar o peso das petroleiras na diplomacia americana. E pelos valores expressos majoritariamente pelos eleitores, sua desregulamentação, com o previsível impacto sobre a produção da verdade, convergirá com o novo normal da democracia.

 

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