quinta-feira, 7 de novembro de 2024

‘Brace for impact’ - William Waack

O Estado de S. Paulo

Não foi Donald Trump quem inaugurou, mas ele aprofunda a era das incertezas

Uma das imagens mais poderosas que orientaram os estrategistas republicanos nas três últimas eleições foi a do Voo 93, título de um famoso (para a direita americana) artigo publicado em 2016. Voo 93 se refere ao episódio, durante os ataques terroristas do 11 de Setembro, no qual os passageiros de um dos voos sequestrados se rebelam contra os terroristas e tentam invadir a cabine.

Os republicanos tinham de tomar o cockpit do avião Estados Unidos ou morrer, pregava a doutrina eleitoral. Pois eles acabam de conseguir. Tomaram o Legislativo, o Executivo e a Suprema Corte que já era conservadora antes das últimas eleições. Mas assumiram o voo no meio de uma era das incertezas.

A primeira delas é doméstica e tem raízes culturais, daí a gravidade da crise política americana. Trata-se da perda do consenso sobre o que é ser americano, reflexo de visões irreconciliáveis sobre o que de fato constitui o país. É esse fenômeno abrangente que explica em boa parte a desconfiança em relação a instituições, sistema eleitoral, mídia, políticos, “Washington” e, especialmente, elites tecnocráticas, liberais e ideológicas dissociadas do “homem comum”.

A segunda incerteza vem de fora e na sua expressão mais simples é o desafio apresentado pela China. Não há diferenças entre republicanos e democratas sobre o fato de a China ser considerada inimiga nem quanto às ferramentas para “sufocá-la”. Mas não existe estratégia “comum”.

O voto popular e o colégio eleitoral têm como vencedor a figura de um “homem forte” que construiu seu sucesso pregando o desrespeito à regra e ao que se poderia chamar de convencional. Em seu primeiro mandato, porém, Donald Trump exibiu comportamento errático, mudanças abruptas de julgamento e opiniões, estilo no mínimo caótico de administração do próprio pessoal e profunda desconfiança quanto ao próprio aparato de Estado montado para servi-lo (como os serviços secretos, por exemplo).

Pode-se discutir ad infinitum quanto Trump é responsável ou apenas sintoma do que os acadêmicos passaram a chamar de “políticas do ressentimento cultural”. O fato é que ele soube melhor do que qualquer outro personagem político expressar a raiva frente às elites privilegiadas (às quais sempre pertenceu, aliás), ao tal “campo progressista” e seu apego às ideias identitárias, à mídia, ao circuito da educação superior e até mesmo indústria do entretenimento e, claro, ao governo federal.

Daí a realizar as promessas empenhadas, dentro e fora dos EUA, é também grande incerteza. E já que se trata de tomar o cockpit, paira sobre tudo isso a frase do capitão Sully, quando pousou seu Airbus no Rio Hudson: “Brace for impact”.

 

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