O Estado de S. Paulo
Não foi Donald Trump quem inaugurou, mas ele aprofunda a era das incertezas
Uma das imagens mais poderosas que orientaram
os estrategistas republicanos nas três últimas eleições foi a do Voo 93, título
de um famoso (para a direita americana) artigo publicado em 2016. Voo 93 se
refere ao episódio, durante os ataques terroristas do 11 de Setembro, no qual
os passageiros de um dos voos sequestrados se rebelam contra os terroristas e
tentam invadir a cabine.
Os republicanos tinham de tomar o cockpit do avião Estados Unidos ou morrer, pregava a doutrina eleitoral. Pois eles acabam de conseguir. Tomaram o Legislativo, o Executivo e a Suprema Corte que já era conservadora antes das últimas eleições. Mas assumiram o voo no meio de uma era das incertezas.
A primeira delas é doméstica e tem raízes
culturais, daí a gravidade da crise política americana. Trata-se da perda do
consenso sobre o que é ser americano, reflexo de visões irreconciliáveis sobre
o que de fato constitui o país. É esse fenômeno abrangente que explica em boa
parte a desconfiança em relação a instituições, sistema eleitoral, mídia,
políticos, “Washington” e, especialmente, elites tecnocráticas, liberais e
ideológicas dissociadas do “homem comum”.
A segunda incerteza vem de fora e na sua
expressão mais simples é o desafio apresentado pela China. Não há diferenças
entre republicanos e democratas sobre o fato de a China ser considerada inimiga
nem quanto às ferramentas para “sufocá-la”. Mas não existe estratégia “comum”.
O voto popular e o colégio eleitoral têm como
vencedor a figura de um “homem forte” que construiu seu sucesso pregando o
desrespeito à regra e ao que se poderia chamar de convencional. Em seu primeiro
mandato, porém, Donald Trump exibiu comportamento errático, mudanças abruptas
de julgamento e opiniões, estilo no mínimo caótico de administração do próprio
pessoal e profunda desconfiança quanto ao próprio aparato de Estado montado
para servi-lo (como os serviços secretos, por exemplo).
Pode-se discutir ad infinitum quanto Trump é
responsável ou apenas sintoma do que os acadêmicos passaram a chamar de
“políticas do ressentimento cultural”. O fato é que ele soube melhor do que
qualquer outro personagem político expressar a raiva frente às elites
privilegiadas (às quais sempre pertenceu, aliás), ao tal “campo progressista” e
seu apego às ideias identitárias, à mídia, ao circuito da educação superior e
até mesmo indústria do entretenimento e, claro, ao governo federal.
Daí a realizar as promessas empenhadas,
dentro e fora dos EUA, é também grande incerteza. E já que se trata de tomar o
cockpit, paira sobre tudo isso a frase do capitão Sully, quando pousou seu
Airbus no Rio Hudson: “Brace for impact”.
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