O Globo
Uma coisa é um voto de protesto numa figura
pública duvidosa, outra é o voto num homem tão reconhecidamente perverso
“Não acho que quem ganhar ou quem perder, nem quem ganhar nem perder, vai ganhar ou perder. Vai todo mundo perder.” Nunca pensei que um dia diria isso, mas a Dilma tinha razão. Nessa eleição, não houve ganhadores ou perdedores: todos perderam. Mesmo que Kamala Harris tivesse saído vitoriosa (o que teria sido, antes de tudo, um alívio imenso), a realidade é que seria impossível ignorar a quantidade de eleitores americanos – "estadunidenses" – que considerou normal votar em Donald Trump. Ou, dito de outra forma, que achou, e ainda acha, Donald Trump normal.
(Aliás: chamar “americano” de “estadunidense”
é o tipo de preciosismo que ajuda a eleger trumps. É desnecessário, é ridículo
e, sobretudo, como todo jargão identitário, é divisivo, uma sinalização de
virtude cultural acintosa. Ninguém jamais se confundiu, ninguém jamais pensou
num mexicano, num canadense ou num sul-americano ao ouvir “americano”. Todo
mundo sabe que americano é americano – “O americano tranquilo”, “Um americano
em Paris”, “Pastoral americana”. Me avisem quando começarem a cantar “Tu vuò fà
lo statunitense”.)
Essas eleições não foram sobre esquerda ou
direita, dois rótulos gastos e cada vez mais irrelevantes; foram sobre duas
formas de se estar no mundo, sobre os limites do que se entende por sociedade,
civilização, decência.
O problema de Donald Trump não é ser de
direita – é todo o resto. O problema dos seus eleitores não é serem de direita
– é aceitarem que para o seu candidato não existem regras no jogo, e que um
homem despreparado, rancoroso e desprovido de empatia pode ser líder, não
apesar das suas falhas, mas justamente por elas.
Estão comemorando, sem se dar conta da
derrota geral, universal mesmo, que representa essa vitória.
Foi fácil entender quem elegeu Trump pela
primeira vez. Já em 1959, aqui no Brasil, Cacareco, rinoceronte carioca
emprestada ao zoológico paulista, teve mais de 100 mil votos para a Assembleia,
superando qualquer outro candidato. É lógico que os eleitores que escreveram
“Cacareco” nas cédulas não achavam que ela podia fazer um bom trabalho; apenas
tinham certeza de que ninguém na disputa os representava, e deram sua opinião
sincera sobre o establishment.
Em 2016 Trump era um Cacareco, um voto de
protesto que podia ser justificado pela alienação do eleitorado e pela escolha
de Hillary Clinton pelo Partido Democrata.
A reeleição de Trump agora, em 2024, é mais
difícil de entender. Ele conduziu uma política isolacionista que diminuiu os
Estados Unidos no cenário internacional, fez uma administração catastrófica da
pandemia, incitou a invasão do Capitólio. Sabemos o que pensa. Seu caráter é
conhecido – ele é visceralmente mau, e não faz esforço algum para disfarçar a
falta de compromisso com qualquer virtude.
Uma coisa é um voto de protesto numa figura
pública duvidosa, outra é o voto num homem tão reconhecidamente perverso. Achar
graça de Trump ainda podia ser compreensível em 2016; não em 2024. A sua
reeleição esvazia o argumento do Cacareco, e desfaz a narrativa reconfortante
que, da primeira vez, ele foi eleito quase que por acaso.
Não, o eleitor não é inocente.
Um comentário:
Brilhante!! "Dilma tinha razão" na sua confusão... Realmente, (quase) todo mundo vai perder! Se não fosse tão trágico, eu até escreveria uns kazinhos no final.
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