Valor Econômico
Vídeo em homenagem ao dia do marinheiro retrata brasileiros na vida boa enquanto os oficiais da Força dão duro na defesa do país
A comemoração do dia do marinheiro, 13 de
dezembro, foi antecipada para domingo, quando a Marinha fez troca da bandeira
no Pavilhão Nacional. A cerimônia foi marcada pela exibição de vídeo de 1min16s
na Praça dos Três Poderes.
Neste vídeo, cuja música de fundo é Cisne
Branco, hino da Marinha, marinheiros tentam evitar que um navio afunde, fazem
exercícios de sobrevivência no mar, salvam vidas nas enchentes e sobrevivem à
selva. No que parece ser um requinte da inteligência artificial, um rosto
assemelhado ao do ministro Fernando Haddad, rasteja na lama. Neste momento,
sobre a música de fundo, aparece uma voz de comando “vocês terão que se
acostumar”.
As cenas são intercaladas com as de um surfista na crista da onda, a praia cheia na zona sul do Rio, a prática de ioga numa praça, jovens no videogame, brinde com cerveja, uma criança soprando velinhas e uma torcida de estádio de futebol. Na cena final, enquanto puxa uma corda com uma cara de poucos amigos, uma marinheira pergunta: “Privilégios? Vem pra Marinha”.
É o segundo ano em que a Marinha exibe um
vídeo alusivo à comemoração. Em 2023, o tom era inverso. A trilha sonora
escolhida foi “Maresia”, poema de Antonio Cícero, musicado por Paulo Machado,
na voz de Adriana Calcanhoto. O vídeo de 3min30s é uma celebração à vida de
marinheiro. Eles aparecem na academia, na cozinha, em volta de um jogo de
tabuleiro, dançando capoeira, conduzindo um leme cantando e batucando no ritmo
da trilha sonora.
O hino da Marinha fala do marinheiro saudoso
da “pátria minha em que tanto penso”. O espírito que embala o vídeo não traduz
esta preocupação. Na proposta de reforma do regime de proteção social contra a
qual a Marinha se rebela, a idade mínima seria de 55 anos, acaba a “morte
ficta”, que é a pensão integral para as famílias de militares expulsos das
Forças Armadas, a contribuição para o plano de saúde é fixada em 3,5% e
limitam-se os graus de parentesco para quem a pensão por morte pode ser
destinada.
Hoje não existe idade mínima. O benefício
advém de 35 anos de serviços prestados, mas como o tempo começa a contar com a
entrada nas academias militares, aos 18 anos, a idade de aposentadoria costuma
rondar os 53 anos. Se o almirante Almir Garnier, ex-comandante da Marinha e
mais afoito, entre as três Forças, na adesão ao golpismo, for condenado sob as
regras vigentes, sua família receberá sua pensão integral. Ele é o único da
Marinha entre os 25 militares indiciados pela PF.
A previdência dos militares é a mais
deficitária do país. Suas contribuições arcam com 15% das despesas para o
sistema de aposentadorias e pensões. No regime dos servidores civis esta
proporção é de 41% e, no Regime Geral de Previdência Social, é de 65%. Quem
sustenta este déficit dos militares são os brasileiros que, na visão da
Marinha, têm vida boa enquanto eles dão duro na defesa do país.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o
ministro da Defesa, José Múcio, não estavam na solenidade em que o vídeo foi
exibido mas, no dia anterior, receberam os três comandantes das Forças para um
almoço no Alvorada. O mal-estar girava em torno da idade mínima para a
aposentadoria que interfere nos sete anos de permanência em cada patente. Nada
que uma regra de transição não resolva.
Surpreende que, passadas 24 horas da primeira
exibição do vídeo, ele ainda esteja disponível nas redes sociais da Marinha
porque é um escárnio com todos os brasileiros chamados a dar sua cota de
sacrifício. Enquanto um em cada cinco brasileiros se evadem das universidades
porque não têm como se manter e vão arrumar um bico qualquer para ajudar suas
famílias, os cadetes do 1º ano das academias militares recebem, em média, R$
1,3 mil, além de alojamento, alimentação, ajuda para uniformes e assistência
médica.
A aposentadoria começa a contar nas
academias, diz-se, porque o regime nelas adotado é de serviço militar. Não
apenas. É também porque nelas são formados a acreditar que a independência, a
unidade nacional, a ordem social interna e a moral da nação lhes é caudatária.
Quem disse isso há quase 100 anos foi Pandiá Calógeras, o único ministro da
Guerra civil do século 20: “Uma sorte de mística corporificou-se e cresceu
lentamente entre os oficiais: estavam predestinados a serem os salvadores do
Brasil das ignomínias partidárias”.
Os privilégios chegaram ao ponto de Médici, o
terceiro dos presidentes da ditadura, pouco antes de morrer, ter fraudado a
adoção da neta de 21 anos, para lhe legar a pensão, uma vez que seus dois
filhos eram homens. Em 2008 a Justiça interrompeu o pagamento.
A pressão contra a reforma do regime de
proteção da Marinha não foi a única energia desperdiçada pela Força neste
governo. Em carta enviada à Câmara, durante as audiências públicas que
discutiram a inscrição do líder da revolta da Chibata, João Cândido, no livro
dos heróis da pátria, o comandante da Marinha, Marco Sampaio Olsen, argumenta
contra a homenagem citando o bombardeio da costa do Rio pelos revoltosos que
resultou na morte de civis.
O almirante Luís Felipe Saldanha da Gama, diretor da Escola Naval, apoiou outra revolta, a da Armada. De tão intensos os bombardeios, foi preciso transferir a capital de Niterói para Petrópolis. Saldanha da Gama é herói da Marinha. João Cândido se insurgiu contra o açoite, foi preso em condições tão duras que 16 dos seus 17 companheiros de cela morreram asfixiados. Banido, morreu na pobreza sem nenhum privilégio.
Um comentário:
Excelente análise e apanhado histórico. Obrigado.
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