O Estado de S. Paulo
Querer que um governo liderado pelo PT rompa com seus compromissos históricos é querer mudar o governo. Ainda que sem golpe explícito
Cortar R$ 1 trilhão em gastos do governo
federal em cinco anos? Ou R$ 3 trilhões em dez anos? O anúncio de um programa
com esse feitio provocaria celebrações com champanhe em certas áreas de São
Paulo cujos frequentadores veem o governo de Luiz Inácio Lula da Silva não como
responsável por enfrentar os imensos desafios econômicos e sociais que retardam
o progresso, mas como o maior problema do País.
Se ainda não podem comemorar, pois tal
programa não existe, os que convivem nessa região especial da cidade podem
alimentar alguma esperança. Um grupo de deputados começou, há dias, a coletar
assinaturas para apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) com
essa meta. São necessárias assinaturas de 171 deputados para que a PEC seja
protocolada, primeiro ato formal para o início de sua tramitação. Ainda não há
garantia de que esse número seja alcançado. Mas o anúncio da proposta reforçou
a preocupação com o ajuste das contas públicas. Por seu conteúdo, a PEC mostra
também como se fazem as escolhas políticas que apontam quem vai pagar a conta.
A iniciativa dos deputados – Kim Kataguiri (União-SP), Julio Lopes (PP-RJ) e Pedro Paulo (PSD-RJ) – contém basicamente oito medidas. Parte delas coincide, pelo menos nas intenções, com as que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentou na semana passada e causou tanta revolta em certos meios financeiros, o que empurrou a cotação do dólar para seus recordes históricos.
São propostas destinadas, por exemplo, ao
combate dos supersalários pagos no serviço público, à revisão dos benefícios
vinculados à inatividade dos militares e à definição de um programa minimamente
veraz de equilíbrio financeiro estrutural, sem necessidade de remendos a cada
exercício fiscal. Ainda mais objetivamente do que as medidas anunciadas pelo
governo para conter a evolução dos custos das emendas parlamentares, a PEC
propõe limitar o valor total dessas emendas a um porcentual máximo das despesas
primárias discricionárias do Poder Executivo.
“É preciso ressaltar que a presente proposta,
ao buscar disciplinar o crescimento de despesas com maior responsabilidade
fiscal, guarda uma preocupação intrínseca com a estabilidade macroeconômica e o
desenvolvimento socioeconômico do País”, afirmaram os deputados na
justificativa da proposta.
Nada a discordar até aqui. Mas o grande
ajuste, em valores, não resultará dessas medidas. A pretendida economia de
gastos virá mais fortemente de outras áreas, sobretudo as voltadas para
programas sociais. Para quem se incomoda com as imensas desigualdades do País,
a lista preocupa.
A PEC revoga o dispositivo que obriga a União
a aplicar, no mínimo, 15% da receita corrente líquida em ações e serviços
públicos de saúde e educação. Segundo o Tesouro, essas áreas podem perder R$
500 bilhões em nove anos.
A complementação mínima da União para o Fundo
de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
Profissionais da Educação (Fundeb), atualmente em 23% do fundo, deixa de ser
constitucional e passa a ser definida por lei complementar.
A PEC também estabelece que o salário mínimo
será corrigido somente pela inflação entre 2026 e 2031. Após esse período, o
presidente da República poderá enviar um projeto para revisar os mecanismos de
correção, seguindo as regras do arcabouço fiscal. Além disso, o texto
desvincula do salário mínimo os benefícios do Regime Geral de Previdência
Social (RGPS), os Benefícios de Prestação Continuada (BPC) e o abono salarial.
Atualmente, a Constituição garante que nenhum benefício que substitua o salário
de contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor mensal
inferior ao salário mínimo.
A redução de gastos sociais como parte do
ajuste fiscal é exigida por parte dos que, nos últimos dias, se dedicaram a
bombardear a proposta anunciada pelo ministro Fernando Haddad. Um analista com
algum conhecimento de história e algum senso de realismo político sabe que, se
o presidente se render a demandas como essas, terá destruído sua história
pessoal e a do seu partido. Ainda que tenha percorrido caminhos estranhos ao
longo de sua história, o PT, desde suas origens, é um partido voltado para os
problemas sociais. Um governo de que o PT faça parte não aceitaria cortar
programas sociais do modo pretendido na PEC. Poderia propor com mais clareza a
taxação progressiva sobre a renda: quem ganha mais deve pagar proporcionalmente
mais. Em vez disso, propõe isentar da tributação contribuintes que, mesmo não
ganhando muito, são considerados ricos num país como Brasil.
Mas exigir do governo Lula da Silva um ajuste
com essa conformação é querer impor aos que ganharam a eleição de 2022 parte do
programa dos que foram derrotados nas urnas. Querer que um governo liderado
pelo PT rompa com todos os seus compromissos históricos é querer mudar o
governo. Ainda que sem golpe explícito.
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