quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Exemplo prático de dano da ‘fake news’ do Pix - Fernando Exman

Valor Econômico

Norma revogada da Receita seria um instrumento importante para combater o crime organizado

Hydra era um monstro gigante parecido com uma cobra d’água que, dependendo da versão, tinha sete ou mais cabeças. Representava o mal e ameaçava tudo destruir, diz a mitologia grega. Qualquer um que tentasse decapitá-la iria descobrir que, assim que uma cabeça qualquer era cortada, outras emergiam do ferimento. Só uma das cabeças era a “verdadeira”, aquela que, ceifada, levaria à sua morte. Milhares de anos depois de sua concepção, a história inspirou o nome da operação contra duas “fintechs” que operavam para o crime organizado.

Deflagrada na terça-feira (25) em conjunto pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) e a Polícia Federal (PF), a Operação Hydra prendeu um policial civil, apontado como CEO de uma das “fintechs”, e cumpriu dez mandados de busca e apreensão em São Paulo, Santo André e São Bernardo. A Justiça também determinou o bloqueio de valores existentes em oito contas bancárias, além da suspensão temporária das atividades das instituições de pagamento que foram alvo.

A investigação foi iniciada a partir das declarações prestadas por Antônio Vinicius Gritzbach, o delator do PCC assassinado em novembro do ano passado no Aeroporto Internacional de Guarulhos, um episódio que ainda pode ter desdobramentos por muito tempo. Mas que já expôs duas das cabeças da serpente.

Lamentavelmente, é possível afirmar que outras cabeças surgirão para operar em substituição às que foram atacadas.

É esta a certeza de autoridades que ainda lamentam a revogação da instrução normativa da Receita Federal que ampliava a fiscalização sobre as transferências mensais superiores a R$ 5 mil realizadas por pessoas físicas. O recuo se deu na esteira de uma avalanche de notícias falsas sobre suposta intenção do poder público de visar microempreendedores. No limite, acrescentavam as “fake news”, o ato culminaria na taxação do Pix. Um de seus principais alvos da medida, contudo, eram justamente as “fintechs” que operam de forma obscura.

Um estrategista do Palácio do Planalto explica o recuo. Neste caso, a decisão foi “tirar o objeto” que alimentava a “fake news” para arrefecer a crise. Avalia-se que o governo precisa apresentar ao público em geral “a verdade” antes da publicação de qualquer ato sensível. Dessa forma, não há vazio quando a mentira for posta por adversários e detratores. O erro a ser evitado é publicar medidas em um vazio informacional.

Faz sentido. Há quem concorde, inclusive na equipe econômica, que dificilmente será possível prever o que ocorreria com a imagem do governo se a medida fosse mantida. O antídoto não estava adiantando e já havia um efeito prático deletério em avanço: a redução do uso do Pix por pessoas mal informadas e que acreditaram na “fake news”.

Por outro lado, pode-se argumentar que a anulação de um ato legítimo, em razão de uma onda de críticas impulsionadas por notícias falsas nas redes sociais, não é um sinal positivo dado por quem muitas vezes precisa tomar medidas impopulares.

É um fato que a norma da Receita seria um instrumento importante para combater o crime organizado. Sem ela, os órgãos de controle terão mais trabalho para fazer repressões pontuais.

Agora, uma ideia alternativa que circula no governo é articular um movimento de conformidade com grandes empresas do setor, que já queriam ser diferenciadas daquelas que fazem algo de errado, e as pequenas que fazem o certo. Ficariam expostas aquelas que têm ligação com atividades ilegais, como o crime organizado. O governo também descobriu que casas de “bets” ilegais, que não aderiram à regulamentação do setor criada para separar o joio do trigo, também operavam com “fintechs”. O mesmo pode estar ocorrendo nos setores de distribuição de combustíveis e venda de cigarros falsificados.

Outro desafio do governo nesta frente é aprovar o projeto do Devedor Contumaz, aquele que não paga imposto de forma recorrente, usa a inadimplência como prática de negócio e desequilibra a concorrência no mercado.

O tema está parado no Congresso. Travou na Câmara dos Deputados, onde um pedido de vista suspendeu sua tramitação no fim do ano passado. O texto havia sido enviado ainda no primeiro semestre de 2024, em regime de urgência, mas foi encaminhado para as comissões por pressão de setores que criticavam a amplitude de quem poderia ser considerado um devedor contumaz. Ou seja, ficaria proibido de abrir novas empresas e aproveitar benefícios fiscais, por exemplo.

O governo fez concessões ao texto, como para permitir que as confederações empresariais retirassem da lista empresas ou pessoas do rol de devedores contumazes e, dessa forma, impedissem eventuais injustiças. Mas mesmo assim o projeto não andou.

Agora há a possibilidade de os governos federal e estaduais darem novo impulso a uma proposta parecida e que tramita no Senado. Mas ela pode ser endurecida, uma vez que as concessões não fizeram o projeto que está na Câmara andar. A blindagem ao empresariado que trabalha na legalidade pode ser mantida, mas eventuais brechas ao crime organizado retiradas.

A destruição de Hydra tornou-se um dos 12 trabalhos de Hércules, missões que só alguém com força sobre-humana poderia executar. Algo como combater o crime organizado no Brasil.

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