O Globo
É concreto ou abstrato ver um Brasil que não
consegue entender o que é ser progressista, conservador e reacionário?
Um avião que pousa de ponta-cabeça; um calor
desmesurado nos nossos trópicos, que, além de tristes, como disse Lévi-Strauss,
tornaram-se infernais diante de uma fervura de fim de mundo. Tempestades onde
não chovia, seca no pântano, o extraordinário da neve e rios imensos secando.
Começamos a duvidar do nosso seguro e permanente real...
É real essa inversão da rotina durante o batido surrealismo de um carnaval que perdeu sua força ritualística, porque hoje podemos transitar e transar com toda gente, de todo modo, em todo lugar e todo dia porque o proibido tornou-se permitido e — melhor e mais fascistoide — obrigatório?
É real ou surreal testemunhar o presidente de
um país pioneiro na luta e institucionalização da igualdade, verdade,
honestidade e liberdade realizando uma primitiva e errática inundação agressiva
de decretos que ameaçam uma ordem global assentada em valores firmados
precisamente pelo seu país, num avesso do bom senso?
É concreto ou abstrato ver um Brasil que não
consegue entender o que é ser progressista, conservador e reacionário? Os “de
esquerda” insistem em seus credos originais e enxergam seus críticos como
“reacionários”, esquecendo que o partido a que pertencem preserva, intactos,
ideais ultrapassados. Esquecem que o populismo elitista e o apadrinhamento
relacional foram desmontados pela avassaladora rede de comunicação mantida pela
era digital.
Parece surreal que o sistema ideológico
oficial brasileiro ainda não tenha entendido que conservar é tão importante
quanto transformar. É a dialética entre mudar e permanecer que engendra
civilização e história.
É coisa de cinema, ou dura realidade,
eleger-se para “cuidar”, mas morar em palácio como um barão?
Não é surreal viver numa terra com um
presidente preocupado com a crise climática e com a emissão de gases de efeito
estufa no discurso, mas que explorará petróleo na costa amazônica para produzir
a matéria-prima desse veneno por meio de um empresa estatal monopolística e
contrária a seu próprio espírito empresarial?
Não é absurdo viver numa nação onde tribunais
superiores ainda não apreenderam que legislar nepotismo, parentesco, amizade e
reciprocidade é como dar nó em pingo d’água? As relações forjam costumes imunes
e acima das leis. O modo mais razoável de controlá-las — civiliza-te — seria
por meio de ética, exemplo e respeito implacável à lei. Coisa difícil nesta
anistilândia onde um juiz viciado em monocratismo anula delações premiadas,
dissolve por canetada toneladas de falcatruas bilionárias e invalida a história.
Legislar costumes estabelecidos imaginando que decretos mudam hábitos culturais
é arriscar-se a ver esses costumes reforçados ao arrepio da lei no que se chama
de jeitinho, apadrinhamento e malandragem. O resultado desse confronto burro
entre lei e costumes é a desmoralização da lei. Um deboche numa área essencial
para a igualdade perante a lei. Esse valor fundador da democracia. Sem criticar
costumes e ajustá-los às leis ou, ao contrário, realizar o ajuste da lei aos
hábitos vigentes, surge esse clima de cinismo a que, infelizmente, estamos
acostumados.
Seria exagero dizer que vivemos num filme de
Luis Buñuel que não termina? E temos plena consciência de que os representantes
do povo renegam seus eleitores porque representam muito mais suas famílias —
chamadas de “bases” — para as quais fazem transferências de grana sem destino
claro?
É real ou surreal fazer parte de uma nação
com um sistema eleitoral que aristocratiza e enrica seus eleitos? Um sistema
cuja burocracia se funda numa interminável sanha legislativa? Um excesso de
regras que promovem e justificam o engano, o desperdício, a ineficiência e a
descrença na democracia?
Não é surreal testemunhar o ex-presidente
acusado de golpe de Estado exclamando que está “cagando” para as acusações e
uma eventual prisão e banimento da esfera pública, quando deveria estar
revoltado por sua presumível inocência estar ameaçada?
P.S.: Lula precisa
compreender que sua imagem não é mais a daquele que Brizola chamava de “sapo
barbudo”. Hoje, ele é um elegante membro da orgulhosa, milionária e caipira
elite paulista.
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