quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Nosso país é real ou surreal? – Roberto DaMatta

O Globo

É concreto ou abstrato ver um Brasil que não consegue entender o que é ser progressista, conservador e reacionário?

Um avião que pousa de ponta-cabeça; um calor desmesurado nos nossos trópicos, que, além de tristes, como disse Lévi-Strauss, tornaram-se infernais diante de uma fervura de fim de mundo. Tempestades onde não chovia, seca no pântano, o extraordinário da neve e rios imensos secando. Começamos a duvidar do nosso seguro e permanente real...

É real essa inversão da rotina durante o batido surrealismo de um carnaval que perdeu sua força ritualística, porque hoje podemos transitar e transar com toda gente, de todo modo, em todo lugar e todo dia porque o proibido tornou-se permitido e — melhor e mais fascistoide — obrigatório?

É real ou surreal testemunhar o presidente de um país pioneiro na luta e institucionalização da igualdade, verdade, honestidade e liberdade realizando uma primitiva e errática inundação agressiva de decretos que ameaçam uma ordem global assentada em valores firmados precisamente pelo seu país, num avesso do bom senso?

É concreto ou abstrato ver um Brasil que não consegue entender o que é ser progressista, conservador e reacionário? Os “de esquerda” insistem em seus credos originais e enxergam seus críticos como “reacionários”, esquecendo que o partido a que pertencem preserva, intactos, ideais ultrapassados. Esquecem que o populismo elitista e o apadrinhamento relacional foram desmontados pela avassaladora rede de comunicação mantida pela era digital.

Parece surreal que o sistema ideológico oficial brasileiro ainda não tenha entendido que conservar é tão importante quanto transformar. É a dialética entre mudar e permanecer que engendra civilização e história.

É coisa de cinema, ou dura realidade, eleger-se para “cuidar”, mas morar em palácio como um barão?

Não é surreal viver numa terra com um presidente preocupado com a crise climática e com a emissão de gases de efeito estufa no discurso, mas que explorará petróleo na costa amazônica para produzir a matéria-prima desse veneno por meio de um empresa estatal monopolística e contrária a seu próprio espírito empresarial?

Não é absurdo viver numa nação onde tribunais superiores ainda não apreenderam que legislar nepotismo, parentesco, amizade e reciprocidade é como dar nó em pingo d’água? As relações forjam costumes imunes e acima das leis. O modo mais razoável de controlá-las — civiliza-te — seria por meio de ética, exemplo e respeito implacável à lei. Coisa difícil nesta anistilândia onde um juiz viciado em monocratismo anula delações premiadas, dissolve por canetada toneladas de falcatruas bilionárias e invalida a história. Legislar costumes estabelecidos imaginando que decretos mudam hábitos culturais é arriscar-se a ver esses costumes reforçados ao arrepio da lei no que se chama de jeitinho, apadrinhamento e malandragem. O resultado desse confronto burro entre lei e costumes é a desmoralização da lei. Um deboche numa área essencial para a igualdade perante a lei. Esse valor fundador da democracia. Sem criticar costumes e ajustá-los às leis ou, ao contrário, realizar o ajuste da lei aos hábitos vigentes, surge esse clima de cinismo a que, infelizmente, estamos acostumados.

Seria exagero dizer que vivemos num filme de Luis Buñuel que não termina? E temos plena consciência de que os representantes do povo renegam seus eleitores porque representam muito mais suas famílias — chamadas de “bases” — para as quais fazem transferências de grana sem destino claro?

É real ou surreal fazer parte de uma nação com um sistema eleitoral que aristocratiza e enrica seus eleitos? Um sistema cuja burocracia se funda numa interminável sanha legislativa? Um excesso de regras que promovem e justificam o engano, o desperdício, a ineficiência e a descrença na democracia?

Não é surreal testemunhar o ex-presidente acusado de golpe de Estado exclamando que está “cagando” para as acusações e uma eventual prisão e banimento da esfera pública, quando deveria estar revoltado por sua presumível inocência estar ameaçada?

P.S.: Lula precisa compreender que sua imagem não é mais a daquele que Brizola chamava de “sapo barbudo”. Hoje, ele é um elegante membro da orgulhosa, milionária e caipira elite paulista.

 

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