Folha de S. Paulo
Até na Alemanha, onde qualquer discurso
extremista de direita dispara mil alarmes
A eleição de domingo para o Parlamento Alemão
deve, enfim, encerrar qualquer dúvida sobre o fato de que, nas grandes
democracias da América e da Europa, o voto
na extrema
direita está consolidado. Ou não?
Não há dúvida de que a AfD —que dobrou de tamanho entre uma eleição e outra e foi a legenda preferida de um em cada cinco alemães— é um partido extremista de direita, tanto no discurso eleitoral quanto na proposta política. Dificilmente se pode ser mais radical à direita do que ele, dentro dos limites das regras da democracia liberal. Além disso, não se pode subestimar o fato de que esse crescimento ocorreu na Alemanha, um país onde, devido à memória de sua tragédia política no século 20, qualquer discurso extremista de direita dispara mil alarmes.
Nem mesmo se pode recorrer, com a mesma
plausibilidade, à hipótese de uma manipulação digital desgovernada das pobres
almas iletradas e desinformadas pelos discursos extremistas. Os alemães nunca
revelaram a mesma paixão de brasileiros e americanos pela plataformização das
interações sociais. Além disso, mantêm alguns poucos jornais e telejornais como
principal fonte de informação e possuem uma das legislações mais rigorosas do
mundo sobre dados e comportamento online.
Claro, ainda há quem explique mudanças
eleitorais e viradas políticas exclusivamente com base em fatores econômicos. A
percepção de uma crise econômica sem precedentes nesta geração certamente
bagunçou os cálculos eleitorais dos alemães. Também há fatores sociais
importantes, como a leitura coletiva, amplamente disseminada, sobre o impacto
da convivência com tantos migrantes. Mas, se isso explica por que houve uma
mudança, não ajuda a entender por que essa mudança resultou em uma guinada para
a ultradireita nem por que a maior democracia europeia deixou de ser uma
resistência ao canto da sereia da direita radical.
Se nem a Alemanha, com suas rigorosas
cláusulas de barreira, que evitam surtos de aventureirismo político e protegem
suas instituições, conseguiu resistir ao impacto dos novos ventos, talvez seja
hora de considerar seriamente que o extremismo de direita entrou no sistema das
democracias liberais. Falta ainda alguma coisa para que se possa dizer que as
populações desses países decidiram considerar a extrema direita como uma
alternativa política normal em seu consumo eleitoral?
Além disso, na Alemanha e na França, duas
coisas curiosas aconteceram. De um lado, foram os tradicionais partidos de
direita que apareceram como principal contenção eleitoral às ofertas radicais,
enquanto os partidos de centro-esquerda se tornaram opções esquecidas. Essa
contenção implica, no entanto, assumir algum compromisso com pautas populares
dos radicais, ainda que de forma mitigada.
De outro lado, há um voto de esquerda que
também se radicaliza, principalmente entre os mais jovens —embora em menor
escala do que a virada à ultradireita. Isso sinaliza que, mais do que uma
guinada conservadora, há um movimento em direção ao radicalismo, ao
antissistema e à rejeição do convencionalismo político.
A esta altura, a questão importante já não
pode mais ser se é legítimo considerar natural a extrema direita como
alternativa eleitoral e política. Os eleitores de quase todas as maiores
democracias dos dois continentes já decidiram que sim, independentemente de o
quanto colunistas e intelectuais vejam nisso um crime de lesa-democracia.
A realidade é quem põe os pratos na mesa e
escolhe o cardápio, não o nosso desejo. O que realmente importa, para quem se
ocupa da extrema direita como fato político, é se as pessoas estão de fato
apostando em saídas políticas não convencionais e radicais, seja de direita,
seja de esquerda, ou se simplesmente preferem explicações, interpretações e
narrativas radicais e não convencionais —ainda que nem todas impliquem,
deliberadamente, uma aposta em soluções antidemocráticas.
Caso esta última hipótese seja considerada,
então as perguntas a serem feitas são: em que problemas da ordem da realidade
esses eleitores estão prestando atenção e por que nós não? Por que eles
preferem as explicações e interpretações fornecidas pelos extremos e não os
diagnósticos convencionais da direita e da esquerda? Por que a defesa dos
combinados democráticos está sendo negligenciada ou subestimada em suas
preferências eleitorais diante das narrativas e interpretações radicais?
Não basta rejeitar e condenar o radicalismo
—é preciso entender por que seus diagnósticos e propostas ressoam tão
profundamente e o que eles enxergam que os demais insistem em ignorar.
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