CartaCapital
Mais do que administrar contradições, o desafio do governo é reorganizar alianças em torno de um projeto claro de reconstrução social e democrática
O debate em torno da reforma
tributária torna evidentes não apenas os desafios técnicos de
reconfigurar um sistema regressivo e desigual, mas os limites de um modelo
político exaurido. A dificuldade do governo Lula 3 em fazer a reforma avançar
no Congresso não resulta de falhas circunstanciais na articulação. É, antes,
expressão de algo mais estrutural: a falência do presidencialismo de coalizão,
tal como operado durante a Nova República.
Desde as reformas institucionais de 2015, que ampliaram as emendas impositivas, fortaleceram o poder do Legislativo sobre o orçamento e enfraqueceram os mecanismos tradicionais de cooptação, o Executivo passou a operar sob condições profundamente alteradas. Se, antes, o presidencialismo de coalizão garantia algum grau de previsibilidade mediante a troca de cargos e recursos, hoje sobrevive em versão precária e disfuncional.
A eleição de Jair
Bolsonaro acelerou esse processo de transformação. De um lado,
as instituições foram esvaziadas de instrumentos centrais de governabilidade.
De outro, consolidou-se uma nova gramática política, pautada pela radicalização
discursiva, pelo antipetismo e pela lógica da guerra cultural, que segue a
estruturar o comportamento de parcelas expressivas do Congresso e da sociedade.
O Orçamento público, antes ferramenta de
coordenação política e formulação de políticas públicas, encontra-se hoje
capturado. A margem de ação do Executivo é mínima, comprimida por despesas
obrigatórias, vinculações constitucionais e pela apropriação crescente dos
recursos via emendas parlamentares. O pouco espaço restante é disputado por
atores que tratam o Orçamento não como meio de implementação de políticas, mas
como ativo de poder e sobrevivência eleitoral.
Diante desse cenário, a estratégia adotada
por Lula, baseada na ampliação da coalizão, na distribuição de espaços no
governo e na aproximação com o Supremo Tribunal Federal, começa a dar sinais
claros de esgotamento. As vitórias legislativas são episódicas, frequentemente
custosas, e insuficientes para sustentar uma agenda de reformas estruturais. A
reforma tributária escancara essas limitações: esbarra tanto na resistência das
elites econômicas quanto na dificuldade do governo de construir uma maioria parlamentar
consistente para pautas que confrontam privilégios. A busca por consensos com
setores que lucram com a desigualdade revela-se, no máximo, uma estratégia
defensiva.
Ainda assim, é preciso reconhecer que o
presidencialismo de redução de danos não é uma estratégia trivial. Como
demonstram os autores do recém-lançado Governo Lula 3: Reconstrução Democrática
e Impasses Políticos (Autêntica, 2025), esse arranjo foi decisivo para conter
os efeitos mais destrutivos do bolsonarismo, proteger a ordem constitucional e
garantir a sobrevivência institucional da democracia brasileira. Foi graças a
ele que o governo conseguiu reconstruir políticas públicas desmanteladas,
recompor partes do aparato estatal e estabilizar o ambiente político diante de
uma extrema-direita ainda mobilizada e ativa.
O que se mostrou eficaz para reconstruir e
proteger a democracia revela-se insuficiente quando o desafio passa a ser sua
transformação. A lógica da acomodação permanente aprisiona o governo em
consensos conservadores que bloqueiam avanços substantivos, como a justiça
tributária. Ainda assim, o quadro não é imobilizante. As alternativas existem,
mas exigem escolhas mais ousadas e disposição para enfrentar os
constrangimentos impostos pelo novo desenho institucional. É indispensável
investir na recomposição do tecido estatal, fortalecer vínculos com a sociedade
civil e ativar novos instrumentos de participação e deliberação. Será
igualmente necessário disputar a arena digital, enfrentar a concentração
midiática e politizar o debate econômico, tornando explícito quem se beneficia
quando se bloqueia a justiça fiscal.
Mais do que administrar contradições, o
desafio do governo é reorganizar alianças em torno de um projeto claro de
reconstrução social e democrática. Isso implica reduzir a dependência da lógica
orçamentária capturada, investir na mobilização popular e recuperar, no
presente, a capacidade de imaginar e construir futuros.
O presidencialismo de redução de danos pode
ter sido uma contingência necessária para a defesa da democracia, mas não pode,
e não deve, ser o destino do País.
*Professora de Ciência Política da UNIRIO e pesquisadora do QualiGov - Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Qualidade de Governo e Políticas Públicas para o Desenvolvimento Sustentável.
Publicado na edição n° 1367 de CartaCapital,
em 25 de junho de 2025.
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