O Globo
Falta representatividade (cadê o casamento
homoafetivo na roça?), sobra machismo estrutural no ‘changez de dame’
Tudo começou, possivelmente, no início dos anos 1970, quando descobrimos o jeito certo de ler o Pato Donald. Para muitos, a leitura decolonial daqueles ratos, patos e cachorros antropomorfizados, que não tinham pais nem filhos (só tios e primos) foi um choque. O deliciosamente rabugento Tio Patinhas não passava de um velho muquirana acumulador (com certeza preso na fase anal retentiva, como todo capitalista), empenhado em se apossar de tesouros de tribos incapazes de administrar as próprias riquezas (opressores do Primeiro Mundo x oprimidos do Terceiro). Talvez houvesse etarismo e misoginia envolvendo Madame Min e Maga Patalójika, exploração do cão pelo cão na relação entre Pateta e Pluto e racismo no fato de alguns personagens pretos serem ratos. A imaginação infantil e sua prodigiosa capacidade de não dar a mínima para ideologias, entretanto, nos tinha protegido da verdade.
Pouco depois o ataque se deu por outro
flanco, com a releitura psicanalítica dos contos de fadas. Disfarces seculares
foram arrancados: “Chapeuzinho Vermelho” não era sobre os perigos de ir pela
estrada afora, bem sozinha, levando doces para a vovozinha, sem saber
distinguir um nariz de um focinho. Bastava ter olhos bem grandes para perceber
que tudo girava em torno da entrada na puberdade, do impulso sexual
inconsciente e do desejo edipiano de sedução.
Daí à problematização da questão indígena e
da apropriação cultural nas marchinhas e fantasias de carnaval, passaram-se
umas quatro décadas — tempo suficiente para a queda do Muro de Berlim e a
ascensão da China como superpotência, o acesso quase irrestrito à informação
via internet e a disseminação maciça da desinformação pelo mesmo canal, a
eclosão da aids, do politicamente correto e da Covid-19. Praticamente 400 anos
em 40.
Ainda não nos recuperamos da condenação ao
índio de esparadrapo no bloquinho infantil — e mesmo da palavra “índio” nas
falas dos adultos —, e chegou a vez das festas juninas.
Comprovando novamente a teoria da ferradura,
ei-los juntinhos, na mesma trincheira, os mais reacionários dos evangélicos
(que enxergam diabo e pecado em tudo) e os mais progressistas dos militantes
(que detectam estadunidentismo e opressão imperialista por toda parte). O alvo
é reprodução de estereótipos (o caipira ingênuo, de roupa remendada, botina
ringideira, dentição incompleta), a naturalização das desigualdades sociais e a
apropriação agricultural — milho, amendoim, mandioca e batata-doce pertencem aos
povos originários; a canjica aos povos da diáspora africana. Falta
representatividade (cadê o casamento homoafetivo na roça?), sobra machismo
estrutural no changez de dame — e pode ser que o termo “quadrilha”
evoque, de forma pouco lisonjeira, os governos do PT. Pelo lado evangélico, a
celebração de São-João é uma forma de idolatria e reencena uma festa pagã (a
quem aquela fogueira pensa que engana?).
Mais um pouco, e hão de desvendar o
preconceito por trás da mula sem cabeça (ser do sexo feminino, sem cérebro,
que, devido a alterações hormonais, solta fogo pelas ventas) e do saci-pererê
(fosse branco, louro e de olhos azuis, já teria ganhado uma prótese há muito
tempo).
Pode ser que proponham folhas de parreira
cobrindo os balões nas obras de Guignard, Volpi, Djanira, Anita Malfatti. Até o
dia 24, dá tempo.
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