O Globo
Nossa vida nas redes segue uma selva digital,
regida pelo autointeresse econômico das plataformas
Na entrevista
que concedeu ao rapper Mano Brown, o presidente Lula defendeu,
mais uma vez, a regulação das mídias sociais. Lula disse que é preciso “regular
o comportamento nas mídias digitais” depois do advento da inteligência
artificial. Enfatizou que isso é especialmente necessário, dada “a desfaçatez
da extrema direita em usar isso”.
Um mês antes, a primeira-dama, Janja da Silva, havia solicitado ao presidente da China, Xi Jinping, apoio na regulamentação das mídias sociais, já que, segundo ela, o algoritmo de plataformas como o TikTok favorece “o avanço da extrema direita no Brasil”.
Não só o casal presidencial tem vinculado a
ascensão da direita à urgência de regulamentar as mídias sociais. Em 2023,
quando ainda era ministro da Justiça de Lula, Flávio Dino disse
num congresso da UNE que “a internet funciona como plataforma das ideias da
direita” e que “é tarefa democrática enfrentar o poder das big techs que
veiculam extremismo e ódio”. Numa entrevista concedida em outubro de 2024, a
então presidente do PT, Gleisi
Hoffmann, disse que “a esquerda vai continuar sendo massacrada nas redes se
a gente não mudar, se a gente não tiver regulação das redes sociais”.
Tornou-se rotina na esquerda justificar a
necessidade de regular as mídias sociais para impedir a ascensão da “extrema
direita”. É como se considerar o adversário “extremo” autorizasse implementar
uma medida para prejudicá-lo. Como tornamos rotineiras alegações tão
antirrepublicanas?
A justificativa mais frequente da esquerda é
dizer que a direita se promove injustamente nas redes difundindo “fake news”.
Se houvesse obrigação de moderação que filtrasse esse tipo de conteúdo ilícito,
esse poder ilícito seria diminuído. Porém o modelo de regulação com que o
Brasil tem flertado, o europeu, não prevê mecanismos para moderação de
conteúdos noticiosos falsos.
Na verdade, nenhum país democrático prevê em
legislação a obrigação de moderar notícias falsas, porque a experiência mostra
que é perigoso dar o poder de definir o que é verdade ou mentira a algum ator
governamental.
Se não se trata de obrigar as plataformas a
retirar do ar notícias falsas, do que se trata então? A esquerda quer impedir
ataques à integridade eleitoral, como alegações não fundamentadas de que as
urnas eletrônicas não são seguras. A direita, por seu lado, quer garantir seu
direito a apontar falhas no sistema atual e a propor o voto impresso como
modelo mais seguro e auditável.
A esquerda quer que a lei obrigue as
plataformas a moderar discursos racistas, homofóbicos e machistas. A direita
teme que essas regras sejam extrapoladas e impeçam críticas ao politicamente
correto, aos cancelamentos e às políticas promovidas pela esquerda — quer
garantir que críticas ao sistema de cotas raciais não sejam excluídas sob a
alegação de que constituem racismo.
Não é de surpreender que o PL 2.630, que
regulamenta as mídias sociais, não tenha alcançado consenso no Congresso e
tenha terminado engavetado. Se quisermos uma regulação que crie regras
equilibradas e republicanas, não podemos pensá-la como freio ao adversário
político. E, se isso vale para o Congresso, vale ainda mais para o Judiciário.
Se o Supremo propuser uma regulação judicial que seja percebida como empecilho
para a direita, a própria legitimidade do Judiciário será prejudicada. Se não
agir com cuidado, pode ampliar a percepção entre os cidadãos de direita de que
é um poder enviesado.
Precisamos urgentemente de um modelo de
regulação que obrigue as plataformas a moderar conteúdos ilícitos, como
pedofilia ou racismo. No modelo atual de autorregulação, as empresas fazem
apenas o mínimo, já que é economicamente oneroso para elas moderar de maneira
eficaz.
Está difícil, porém, encontrar espaço para
discutir a regulação de maneira técnica. A direita teme que, sob o pretexto de
proteger os direitos humanos, a esquerda queira silenciá-la. E a esquerda teme
que, sob o pretexto de defender a liberdade de expressão, a direita queira
agredir as minorias e ameaçar a democracia. Como a polarização erodiu a
confiança entre os atores, não é mais possível discutir a questão da regulação
em si mesma. Enquanto isso, nossa vida nas redes segue uma selva digital,
regida pelo autointeresse econômico das plataformas.
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