David Brooks*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO (4/10/2009)
Alguns séculos atrás, historiadores criaram uma teoria clássica para explicar a ascensão e o declínio das nações. De acordo com ela, as grandes nações, no seu início, são tenazes e plenas de energia. A tenacidade e a energia produzem riqueza e poder. Riqueza e poder conduzem à opulência e luxo, que levam à decadência, corrupção e declínio.
"A natureza humana, sob nenhum aspecto dela, nunca consegue suportar a prosperidade", escreveu John Adams numa carta a Thomas Jefferson, alertando-o da chegada da corrupção no país. Mas, não obstante sua riqueza impressionante, os EUA no geral permaneceram imunes a esse ciclo. O padrão de vida americano ultrapassou o dos europeus em 1740. Mas nos EUA a riqueza não levou à indulgência e declínio.
Isso porque, apesar do notório materialismo do país, sempre existiu uma corrente se contrapondo aos sólidos valores econômicos. Os primeiros colonos do país acreditavam na moderação calvinista. Os pioneiros se candidataram voluntariamente à brutais privações nas suas jornadas para o Oeste. Os primeiros imigrantes trabalharam duro e com abnegação para seus filhos conseguirem ser bem sucedidos. O governo era limitado e não protegia as pessoas das consequências dos seus atos, obrigando com isso a disciplina e a moderação.
Quando os valores econômicos corroeram, o establishment no poder tentou restaurar o equilíbrio. Após a Era de Ouro, (entre 1870 e 1898, quando houve uma grande expansão econômica), Theodore Roosevelt determinou medidas severas contra a intemperança financeira. O establishment protestante tinha muitos defeitos, mas não era decadente, os velhos anglo-saxões protestantes eram avarentos, enviavam seus filhos para internatos de disciplina espartana e mantinham a sobriedade financeira.
Nos últimos anos, contudo, observou-se nitidamente um desgaste dos valores financeiros que ocorreu numa época em que os monitores culturais estavam ocupados com outras coisas. Estavam envolvidos numa guerra cultural envolvendo a oração nas escolas e a teoria evolucionista. Estavam debatendo sobre sexo e a separação entre Igreja e Estado, alheios completamente à ampla corrosão dos valores econômicos que ocorria sob os seus pés.
As evidências dessa mudança de valores estão por toda a parte. Alguns dos sinais eram aparentemente inócuos. Os Estados do país começaram a patrocinar as loterias: jogos de apostas aprovados pelo governo cujas vítimas eram sobretudo os pobres. Executivos e administradores de fundos hedge começaram a se gabar dos seus pacotes de compensação, que seriam considerados vergonhosos algumas décadas antes.
Outros sinais foram maiores. Como observou William Galston, da Brookings Institution, nas três décadas entre 1950 e 1980, o consumo pessoal ficou notavelmente estável, representando 62% do PIB do país. Nas três décadas seguintes ele disparou, atingindo 70% do PIB em 2008.
Durante esse período, a dívida explodiu. Em 1960, a dívida do cidadão americano representava 55% da renda nacional. Em 2007, ela subiu vertiginosamente para 133% da renda nacional.
Nos últimos cinco meses, os níveis da dívida começaram a baixar. Mas isso não quer dizer que retornamos aos padrões de contenção pessoal.
Simplesmente mudamos da dívida privada para a dívida pública. Em 2019, a dívida federal deve atingir o espantoso patamar de 82% do PIB (sem contar os custos da reforma da saúde). Nesse ano, só o pagamento dos juros da dívida federal custará US$ 803 bilhões.
Parecem números secos, de interesse especialmente dos estudiosos de orçamentos. Mas eles são o sinal exterior de uma mudança de valores. Se uma correção tiver de ser feita, ela exigirá um movimento cultural e moral. Nossas politicas culturais vigentes são organizadas em função de uma obsoleta guerra cultural, que colocou liberais seculares de um lado e conservadores religiosos do outro. Mas o deslize da moralidade econômica afligiu tanto conservadores como liberais.
Se houver um movimento para restaurar os valores econômicos, ele terá de transcender as taxonomias atuais. A meta será tornar os EUA novamente uma economia de produção e não uma economia de consumo. E ele terá de defender o autocontrole financeiro.
Esse movimento terá de enfrentar o que podemos chamar de ethos lobista, a convicção justificada de que, desde as associações de aposentados ao agronegócio, seus grupos têm direito a qualquer apropriação possível, independente do quão enorme será o gasto público.
E esse movimento terá de enfrentar também a demanda por impostos mais baixos e gastos mais altos. Uma cruzada pela moderação econômica terá de refazer as atuais alianças e adotar políticas como a implementação de um imposto sobre a energia e cortes de gastos, considerados politicamente impossíveis. O país realmente necessita de um renascimento moral.* David Brooks é analista político
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO (4/10/2009)
Alguns séculos atrás, historiadores criaram uma teoria clássica para explicar a ascensão e o declínio das nações. De acordo com ela, as grandes nações, no seu início, são tenazes e plenas de energia. A tenacidade e a energia produzem riqueza e poder. Riqueza e poder conduzem à opulência e luxo, que levam à decadência, corrupção e declínio.
"A natureza humana, sob nenhum aspecto dela, nunca consegue suportar a prosperidade", escreveu John Adams numa carta a Thomas Jefferson, alertando-o da chegada da corrupção no país. Mas, não obstante sua riqueza impressionante, os EUA no geral permaneceram imunes a esse ciclo. O padrão de vida americano ultrapassou o dos europeus em 1740. Mas nos EUA a riqueza não levou à indulgência e declínio.
Isso porque, apesar do notório materialismo do país, sempre existiu uma corrente se contrapondo aos sólidos valores econômicos. Os primeiros colonos do país acreditavam na moderação calvinista. Os pioneiros se candidataram voluntariamente à brutais privações nas suas jornadas para o Oeste. Os primeiros imigrantes trabalharam duro e com abnegação para seus filhos conseguirem ser bem sucedidos. O governo era limitado e não protegia as pessoas das consequências dos seus atos, obrigando com isso a disciplina e a moderação.
Quando os valores econômicos corroeram, o establishment no poder tentou restaurar o equilíbrio. Após a Era de Ouro, (entre 1870 e 1898, quando houve uma grande expansão econômica), Theodore Roosevelt determinou medidas severas contra a intemperança financeira. O establishment protestante tinha muitos defeitos, mas não era decadente, os velhos anglo-saxões protestantes eram avarentos, enviavam seus filhos para internatos de disciplina espartana e mantinham a sobriedade financeira.
Nos últimos anos, contudo, observou-se nitidamente um desgaste dos valores financeiros que ocorreu numa época em que os monitores culturais estavam ocupados com outras coisas. Estavam envolvidos numa guerra cultural envolvendo a oração nas escolas e a teoria evolucionista. Estavam debatendo sobre sexo e a separação entre Igreja e Estado, alheios completamente à ampla corrosão dos valores econômicos que ocorria sob os seus pés.
As evidências dessa mudança de valores estão por toda a parte. Alguns dos sinais eram aparentemente inócuos. Os Estados do país começaram a patrocinar as loterias: jogos de apostas aprovados pelo governo cujas vítimas eram sobretudo os pobres. Executivos e administradores de fundos hedge começaram a se gabar dos seus pacotes de compensação, que seriam considerados vergonhosos algumas décadas antes.
Outros sinais foram maiores. Como observou William Galston, da Brookings Institution, nas três décadas entre 1950 e 1980, o consumo pessoal ficou notavelmente estável, representando 62% do PIB do país. Nas três décadas seguintes ele disparou, atingindo 70% do PIB em 2008.
Durante esse período, a dívida explodiu. Em 1960, a dívida do cidadão americano representava 55% da renda nacional. Em 2007, ela subiu vertiginosamente para 133% da renda nacional.
Nos últimos cinco meses, os níveis da dívida começaram a baixar. Mas isso não quer dizer que retornamos aos padrões de contenção pessoal.
Simplesmente mudamos da dívida privada para a dívida pública. Em 2019, a dívida federal deve atingir o espantoso patamar de 82% do PIB (sem contar os custos da reforma da saúde). Nesse ano, só o pagamento dos juros da dívida federal custará US$ 803 bilhões.
Parecem números secos, de interesse especialmente dos estudiosos de orçamentos. Mas eles são o sinal exterior de uma mudança de valores. Se uma correção tiver de ser feita, ela exigirá um movimento cultural e moral. Nossas politicas culturais vigentes são organizadas em função de uma obsoleta guerra cultural, que colocou liberais seculares de um lado e conservadores religiosos do outro. Mas o deslize da moralidade econômica afligiu tanto conservadores como liberais.
Se houver um movimento para restaurar os valores econômicos, ele terá de transcender as taxonomias atuais. A meta será tornar os EUA novamente uma economia de produção e não uma economia de consumo. E ele terá de defender o autocontrole financeiro.
Esse movimento terá de enfrentar o que podemos chamar de ethos lobista, a convicção justificada de que, desde as associações de aposentados ao agronegócio, seus grupos têm direito a qualquer apropriação possível, independente do quão enorme será o gasto público.
E esse movimento terá de enfrentar também a demanda por impostos mais baixos e gastos mais altos. Uma cruzada pela moderação econômica terá de refazer as atuais alianças e adotar políticas como a implementação de um imposto sobre a energia e cortes de gastos, considerados politicamente impossíveis. O país realmente necessita de um renascimento moral.* David Brooks é analista político
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