O Supremo Tribunal Federal julgará hoje a
constitucionalidade das cotas para afrodescendentes e índios nas universidades
públicas brasileiras. No palpite de quem conhece a Corte, o resultado será de,
pelo menos, sete votos a favor e quatro contra. Terminará assim um debate que
durou mais de uma década e, como outros, do século XIX, expôs a retórica de um
pedaço do andar de cima que via na iniciativa o prelúdio do fim do mundo.
Em 1871, quando o Parlamento discutia a Lei
do Ventre Livre, argumentou-se que libertando-se os filhos de escravos
condenavam-se as crianças ao desamparo e à mendicância. "Lei de
Herodes", segundo o romancista José de Alencar. Quatorze anos depois
tratava-se de libertar os sexagenários. Outro absurdo, pois significaria
abandonar os idosos. Em 1888 veio a Abolição (a última de países americanos
independentes), mas o medo a essa altura era menor, temendo-se apenas que os
libertos caíssem na capoeira e na cachaça. Como dizia o Visconde de Sinimbu:
"A escravidão é conveniente, mesmo em bem ao escravo." A votação do
projeto foi acelerada pelo clamor provocado pelo linchamento de um promotor que
protegia negros fugidos no interior de São Paulo. Entre os assassinos, estava
James Warne, vulgo "Boi", um fazendeiro americano, que emigrara
depois da derrota do Sul na Guerra da Secessão.
As cotas seriam coisa para inglês ver,
"lumpenescas propostas de reserva de mercado". Estimulariam o ódio
racial e baixariam a qualidade dos currículos da universidades. Como dissera o
Barão de Cotegipe, "brincam com fogo os tais negrófilos". Os cotistas
seriam incapazes de acompanhar as aulas. Passaram-se dez anos, pelo menos 40
universidades instituíram cotas para afrodescendentes, e hoje há milhares de
negros exercendo suas profissões graças à iniciativa. O fim do mundo ficou para
a próxima. Para quem acha que existe uma coisa como ditadura dos meios de
comunicação, no século XXI, como no XIX, todos os grandes órgãos de imprensa
posicionaram-se contra as cotas. Ressalve-se a liberdade assegurada aos
articulistas que as defendiam.
Julgando a constitucionalidade das
iniciativas das universidades públicas que instituíram as cotas, o Supremo
tirará o último caroço da questão. No memorial que encaminharam na defesa do
sistema, os advogados Marcio Thomaz Bastos, Luiz Armando Badin e Flávia
Annenberg começaram pelos números:
"Em 2008 os negros e pardos
correspondiam a 50,6% da população e a 73,7% daqueles que são considerados
pobres. (...) Em 1997, 9,6% dos brancos e 2,2% dos pretos e pardos de 25 anos
ou mais de idade tinham nível superior."
E concluíram: "A igualdade nunca foi
dada em nossa história. Sempre foi uma conquista que exigiu imaginação, risco
e, sobretudo, coragem. Hoje não é diferente."
O senador Demóstenes Torres, campeão do
combate às cotas, chegou a lembrar que a escravidão era uma instituição africana,
o que é verdade, mas não foram os africanos que impuseram a escravatura ao
Brasil. Nas suas palavras: "Não deveriam ter chegado aqui na condição de
escravos, mas chegaram..."
Hoje, o Supremo virará a última página dessa
questão. Ninguém se lembra de James Barne, mas Demóstenes será lembrado por
outras coisas.
Elio Gaspari é jornalista.
FONTE: O GLOBO
Nenhum comentário:
Postar um comentário