Há uma diferença crucial entre o bandido,
armado ou desarmado, que o assalta e o sujeito finório que entra em sua casa
como amigo ou por ser parente e, depois, é flagrado furtando um talher de prata
à mesa ou assediando alguma mocinha incauta no sofá da sala. Cada vez que o
cidadão brasileiro toma conhecimento de mais uma falcatrua realizada pelo
ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares em Goiás, Minas ou no Espírito Santo, já
encara o fato com normalidade, assim como normal é a notícia de mais um
descalabro protagonizado por Marcos Valério Fernandes. Esses personagens do
escândalo do "mensalão" já constam da crônica policial. Deles não se
espera outra coisa. Alguém imaginaria um deles patrocinando uma causa
benemérita? Seria como testemunhar Chico Picadinho pedindo doações para a Santa
Casa de Misericórdia. Coisa muito diferente, contudo, é saber que Protógenes
Queiroz teve sua voz reconhecida num grampo de seus colegas federais na
investigação do bando criminoso do contraventor Carlinhos Cachoeira. E, mais
ainda, se deparar com Demóstenes Torres funcionando como despachante do
bicheiro e usando para tal sua condição de parlamentar.
Acontece que Protógenes Queiroz foi agente
federal da lei. E Demóstenes Torres é um representante do povo. Uma coisa é se
assustar com uma pistola imaginária de um assaltante na testa ao acordar no
meio da noite e abrir-lhe o cofre para ter surrupiadas as joias da família.
Outra, muito pior, é ficar sabendo, de repente, que o amigo íntimo tido como o
mais correto, o mais moralista de todos, o que mais parecia ser a favor da lei,
da moral e dos bons costumes não passa de um vulgar serviçal do crime
organizado que assalta a República em proveito pessoal.
A bem da verdade, não é bem esse o caso de
Protógenes. Como delegado da Polícia Federal (PF), ficou famoso depois de
assumir as investigações da Operação Satiagraha. Seus métodos, no mínimo,
heterodoxos de investigar as hostilidades entre os sócios italianos da Italia
Telecom e o administrador de fundos brasileiro Daniel Dantas, cuja prisão lhe
rendeu enorme exposição na mídia, motivaram processo da própria PF, movido
antes de ele se candidatar à Câmara dos Deputados. Eleito pelas sobras dos
votos do palhaço Tiririca, agora tem imunidade.
Ao declarar a investigação ilegal, a Justiça
deu razão ao juiz federal Ali Mazloum, que a questionou por achar que o
policial exacerbou da função em busca de notoriedade para se candidatar a um
cargo político. É, de fato, questionável, para não usar termo mais duro, vender
a imagem de Eliot Ness do Sapopemba para se tornar estrela do noticiário e, com
isso, ganhar notoriedade suficiente para almejar uma cadeira no Legislativo
federal. No entanto, o policial processado pela instituição a que serve conseguiu
legenda no Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e licença da Justiça Eleitoral
para disputar votos. E, não os obtendo em número suficiente para se tornar
representante do povo, teve a preciosa ajuda do palhaço puxador de votos para
atingir seu objetivo político.
Não é de estranhar que, com esse currículo,
ele tenha sido flagrado em conversa telefônica com o sargento da Aeronáutica
Idalberto Matias de Araújo, conhecido como Dadá ou Chico, do estreito círculo
íntimo de Cachoeira. Menos ainda que tenha apelado, como está habituado a
fazer, para a tergiversação ao reagir à denúncia apresentada contra ele pelo
presidente do PSDB, Sérgio Guerra (PE), que pediu sua cassação ao Conselho de
Ética da Câmara. Sua Excelência apresentou como prova de quebra de decoro
parlamentar imagem do tucano indicando ao correligionário Rogério Marinho
(PSDB-RN) cartaz, que este rasgou, à porta de seu gabinete conclamando pela
convocação de uma CPI sobre a "privataria tucana", tema de
best-seller de Amaury Ribeiro Jr., protagonista do nebuloso caso de
falsificação do pedido de quebra de sigilo fiscal de Verônica, filha do tucano
José Serra, candidato a prefeito de São Paulo. Em vez de explicar ao público,
que paga seus proventos de policial e seus vencimentos de parlamentar, que
relações mantém com Dadá ou Chico, o deputado comunista preferiu acusar o
presidente nacional do PSDB de estar a serviço de Daniel Dantas, cujos métodos,
segundo ele, se assemelham aos do bicheiro. Mas o caso do grampeador apanhado
no grampo, como está descrito acima, é muito diferente do de Demóstenes Torres,
embora suas biografias tenham, na origem, pontos comuns. Como Protógenes, o
senador hoje sem partido entrou na política pela porta do combate ao crime, na
Secretaria de Segurança de Goiás.
Aí, contudo, acabam as semelhanças. Até ter
sua intimidade com o bicheiro devassada pelos grampos telefônicos da PF, o
oposicionista não tinha em sua biografia profissional ou política nenhuma
mancha evidente. Ao contrário, ele vendeu à Nação a imagem de cidadão acima de
qualquer suspeita, um Catão moralista implacável que perseguia de forma
exemplar e corajosa os malfeitores (para usar termo da preferência da
presidente Dilma Rousseff) que dilapidam os recursos públicos aproveitando-se
de cargos no governo ou poder político. A revelação de sua dupla face -
perseguidor de criminosos a serviço de um fora da lei - surpreendeu a Nação
inteira, dando-lhe a desconfortável sensação de que ninguém é confiável.
Parafraseando Ivan Karamazov, o personagem de Dostoievski, é como se
subitamente descobríssemos que, não sendo Demóstenes honesto, ninguém jamais o
seria.
Para pôr fim à maligna promiscuidade entre
homens da lei e sequazes do crime os parlamentares de bem devem exigir punição
para o grampeador pilhado no grampo dos colegas e providenciar a exemplar
cassação do falso moralista que fingiu ser santo para servir ao demônio. O
ectoplasma de Demóstenes que desfila no Congresso Nacional é um tumor que
apodrece a política e infecciona a democracia.
Jornalista, escritor, é editorialista do
Jornal da Tarde
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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