quarta-feira, 3 de outubro de 2012

À prova, STF exibe resistência e tolerância - Rosângela Bittar


Difícil imaginar, por seu perfil e a pesada rotina processual, que o Supremo Tribunal Federal tivesse fôlego para levar até o fim tão exaustivo julgamento de ampla e complexa ação penal, a do mensalão. Não só está conseguindo avançar dia a dia, voto a voto, com método e ritmo, como os juízes têm se dado ao luxo de brindar o público com reflexões de verdadeiros virtuoses. A ministra Cármen Lúcia entrou para os anais ao fazer o apelo candente à fé na política apesar do lamaçal ali exposto, e o ministro Celso de Mello, em voto desabrido que culminou com a definição rasgada de confirmação do mensalão, de tão negada existência, como ato de corrupção e compra de apoio político.

Já são maioria os juízes que rechaçam a tese formulada pelo advogado e ex-ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, para uso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva desde o início: a de que o mensalão foi um crime de caixa dois para financiar campanhas eleitorais. Não foi, diz o STF. O presidente-poeta Carlos Ayres Britto praticamente encerrou a discussão desse assunto em afinada sintonia com o decano do tribunal, recomendando que não se cogite de caixa dois nem mesmo coloquialmente. O tribunal não chegou a este momento de definições embasadas e corajosas sem turbulências. Ao contrário, as pressões não lhe deram trégua, sofreu-as todo o tempo, e uma a uma as foi afastando, com calma e eficácia.

Provavelmente, enquanto não encerrar o julgamento do mensalão, após o derradeiro recurso e a declinação das penas, o Supremo Tribunal Federal não se livrará dos desafios. Decidiu resistir às provocações, sabe que qualquer exagero na sua reação caracteriza-se como o passo em falso que levará à ruína o julgamento.

A maior carga contra os juízes tem origem, mais que na luta partidária, na defesa dos réus. É de sua natureza. Existem, porém, as pressões que surgem repentinamente, até dos canais internos, sem que se saiba como nasceram e como devem ser combatidas.

Obstáculo número um, o Supremo teve que enfrentar a demora do ministro revisor do processo, Ricardo Lewandowski, a devolver o caso à agenda de votações, de modo que ainda fosse possível ao presidente do Supremo que acolheu a denúncia, Cezar Peluso, já aposentado hoje, participar em parte. Bem como evitar que o atual presidente da Corte, Carlos Ayres Britto, se visse impedido de votar por uma aposentadoria cuja data limite chega em novembro próximo. O revisor vacilou mas acabou entregando o trabalho à votação.

Depois, o STF viu ser criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito, com apoio e inspiração do ex-presidente Lula, com a missão de, funcionando concomitantemente ao julgamento, atingir o denunciante do mensalão, o procurador-geral, e os adversários político-eleitorais do principal partido em julgamento, o PT. Com base na CPI, o poder ainda imenso do ex-presidente foi aplicado à manobra de protelação do trabalho do Supremo para fazer descoincidir as eleições do julgamento. Nesse quesito inclui-se o já famoso encontro do ex-presidente Lula com o ministro Gilmar Mendes, no escritório do amigo e ex-ministro Nelson Jobim, em que tudo até agora é suposto: teriam tratado de proteção contra uma nunca explicada citação do ministro do STF no inquérito da polícia que alimentou a CPI.

De todos os obstáculos, reais ou falsos, a CPI foi o mais barulhento mas com facilidade superado até ver seus trabalhos suspensos por falta de eficácia. Na disputa com o julgamento do mensalão, a CPI não fez vento para mover uma folha.

Questões de ordem da defesa foram os passos seguintes na criação de dificuldades ao julgamento, algumas inclusive repetindo iniciativas já votadas e recusadas, numa clara manobra para protelar o trabalho dos ministros. Superaram também os ministros as contestações da defesa sobre o andamento técnico do julgamento, a metodologia, a exposição de jurisprudência que, embora antiga e experimentada em processos anteriores, foi considerada inovação dolosa. O STF foi acusado de exigir do réu provas de sua inocência, de não aceitar álibis, de dispensar provas, de fazer vista grossa para a ausência do ato de ofício, enfim, um tal número de críticas à argumentação contida nos votos que obrigou o tribunal a explicitar e explicar sua argumentação.

O Supremo foi aos poucos apresentando suas razões, sem recuos, para reconhecer o mensalão como ato de corrupção, condenando os corruptos e abrindo caminho à identificação dos corruptores.

O julgamento está ainda longe de terminar. Embora os réus e sua defesa já demonstrem não ter esperança na absolvição, dão sinais de que ainda revolverão céus e terras nesta última fase. A tentativa agora é a de armar-se para influir na definição das penas, e a condução dos trabalhos é decisiva.

Pelo sistema de rodízio, com a aposentadoria do ministro Ayres Britto em novembro próximo, o sucessor será o relator do mensalão, Joaquim Barbosa. Seu nome teria que ser votado pelos demais ministros, praticamente um ato formal, de referendo, mas Barbosa está longe de ser unanimidade.

O ministro Marco Aurélio Mello já levantou a hipótese de ele não ser eleito presidente tal o atrito que estabeleceu nas relações com vários dos juízes integrantes da Corte.

Nenhuma das rasteiras sofridas pelo STF foi capaz de melar o julgamento ou criar-lhe dificuldades insuperáveis. A obstrução à presidência de Barbosa, porém, embora improvável do ponto de vista político, pode desestabilizar o relator. O ministro Joaquim Barbosa tem abalado os nervos mais relaxados do universo advocatício que acompanha o julgamento. Tem provocado reações do mais "cool" ao mais mercurial dos integrantes da Corte. Personalidade irritadiça, não cultiva a polidez. Tem o humor destruído por uma permanente dor nas costas. Precisa conter-se para não perder a razão e nas tensões do julgamento esteve perto de afastar seguidores pelo estilo. Mas evitar o ciclo natural da alternância de poder no Supremo Tribunal Federal é golpear a instituição.

Fonte: Valor Econômico

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