Difícil imaginar, por
seu perfil e a pesada rotina processual, que o Supremo Tribunal Federal tivesse
fôlego para levar até o fim tão exaustivo julgamento de ampla e complexa ação
penal, a do mensalão. Não só está conseguindo avançar dia a dia, voto a voto,
com método e ritmo, como os juízes têm se dado ao luxo de brindar o público com
reflexões de verdadeiros virtuoses. A ministra Cármen Lúcia entrou para os
anais ao fazer o apelo candente à fé na política apesar do lamaçal ali exposto,
e o ministro Celso de Mello, em voto desabrido que culminou com a definição
rasgada de confirmação do mensalão, de tão negada existência, como ato de
corrupção e compra de apoio político.
Já são maioria os
juízes que rechaçam a tese formulada pelo advogado e ex-ministro da Justiça,
Márcio Thomaz Bastos, para uso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva desde
o início: a de que o mensalão foi um crime de caixa dois para financiar
campanhas eleitorais. Não foi, diz o STF. O presidente-poeta Carlos Ayres
Britto praticamente encerrou a discussão desse assunto em afinada sintonia com
o decano do tribunal, recomendando que não se cogite de caixa dois nem mesmo
coloquialmente. O tribunal não chegou a este momento de definições embasadas e
corajosas sem turbulências. Ao contrário, as pressões não lhe deram trégua,
sofreu-as todo o tempo, e uma a uma as foi afastando, com calma e eficácia.
Provavelmente,
enquanto não encerrar o julgamento do mensalão, após o derradeiro recurso e a
declinação das penas, o Supremo Tribunal Federal não se livrará dos desafios.
Decidiu resistir às provocações, sabe que qualquer exagero na sua reação
caracteriza-se como o passo em falso que levará à ruína o julgamento.
A maior carga contra
os juízes tem origem, mais que na luta partidária, na defesa dos réus. É de sua
natureza. Existem, porém, as pressões que surgem repentinamente, até dos canais
internos, sem que se saiba como nasceram e como devem ser combatidas.
Obstáculo número um,
o Supremo teve que enfrentar a demora do ministro revisor do processo, Ricardo
Lewandowski, a devolver o caso à agenda de votações, de modo que ainda fosse
possível ao presidente do Supremo que acolheu a denúncia, Cezar Peluso, já
aposentado hoje, participar em parte. Bem como evitar que o atual presidente da
Corte, Carlos Ayres Britto, se visse impedido de votar por uma aposentadoria
cuja data limite chega em novembro próximo. O revisor vacilou mas acabou
entregando o trabalho à votação.
Depois, o STF viu ser
criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito, com apoio e inspiração do
ex-presidente Lula, com a missão de, funcionando concomitantemente ao
julgamento, atingir o denunciante do mensalão, o procurador-geral, e os
adversários político-eleitorais do principal partido em julgamento, o PT. Com
base na CPI, o poder ainda imenso do ex-presidente foi aplicado à manobra de
protelação do trabalho do Supremo para fazer descoincidir as eleições do
julgamento. Nesse quesito inclui-se o já famoso encontro do ex-presidente Lula
com o ministro Gilmar Mendes, no escritório do amigo e ex-ministro Nelson
Jobim, em que tudo até agora é suposto: teriam tratado de proteção contra uma
nunca explicada citação do ministro do STF no inquérito da polícia que
alimentou a CPI.
De todos os
obstáculos, reais ou falsos, a CPI foi o mais barulhento mas com facilidade
superado até ver seus trabalhos suspensos por falta de eficácia. Na disputa com
o julgamento do mensalão, a CPI não fez vento para mover uma folha.
Questões de ordem da
defesa foram os passos seguintes na criação de dificuldades ao julgamento,
algumas inclusive repetindo iniciativas já votadas e recusadas, numa clara
manobra para protelar o trabalho dos ministros. Superaram também os ministros
as contestações da defesa sobre o andamento técnico do julgamento, a
metodologia, a exposição de jurisprudência que, embora antiga e experimentada
em processos anteriores, foi considerada inovação dolosa. O STF foi acusado de
exigir do réu provas de sua inocência, de não aceitar álibis, de dispensar
provas, de fazer vista grossa para a ausência do ato de ofício, enfim, um tal
número de críticas à argumentação contida nos votos que obrigou o tribunal a
explicitar e explicar sua argumentação.
O Supremo foi aos
poucos apresentando suas razões, sem recuos, para reconhecer o mensalão como
ato de corrupção, condenando os corruptos e abrindo caminho à identificação dos
corruptores.
O julgamento está
ainda longe de terminar. Embora os réus e sua defesa já demonstrem não ter
esperança na absolvição, dão sinais de que ainda revolverão céus e terras nesta
última fase. A tentativa agora é a de armar-se para influir na definição das
penas, e a condução dos trabalhos é decisiva.
Pelo sistema de
rodízio, com a aposentadoria do ministro Ayres Britto em novembro próximo, o
sucessor será o relator do mensalão, Joaquim Barbosa. Seu nome teria que ser
votado pelos demais ministros, praticamente um ato formal, de referendo, mas
Barbosa está longe de ser unanimidade.
O ministro Marco
Aurélio Mello já levantou a hipótese de ele não ser eleito presidente tal o
atrito que estabeleceu nas relações com vários dos juízes integrantes da Corte.
Nenhuma das rasteiras
sofridas pelo STF foi capaz de melar o julgamento ou criar-lhe dificuldades
insuperáveis. A obstrução à presidência de Barbosa, porém, embora improvável do
ponto de vista político, pode desestabilizar o relator. O ministro Joaquim
Barbosa tem abalado os nervos mais relaxados do universo advocatício que
acompanha o julgamento. Tem provocado reações do mais "cool" ao mais
mercurial dos integrantes da Corte. Personalidade irritadiça, não cultiva a
polidez. Tem o humor destruído por uma permanente dor nas costas. Precisa
conter-se para não perder a razão e nas tensões do julgamento esteve perto de
afastar seguidores pelo estilo. Mas evitar o ciclo natural da alternância de
poder no Supremo Tribunal Federal é golpear a instituição.
Fonte: Valor Econômico
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