"Ideologia, eu quero uma para viver". Se Cazuza estivesse vivo,
talvez se interessasse por uma palavra que rima com ideologia e ocupa novo
espaço no cenário político brasileiro. Hegemonia é um termo que assusta os
adversários do PT e preocupa seus aliados. Embora ninguém se tenha dedicado a
defini-la, todos temem perder a independência.
Que tipo de hegemonia está em jogo? A palavra, na teoria leninista,
significa a tomada do poder político e a instalação da ditadura do
proletariado. Na versão de Antonio Gramsci, a hegemonia faz-se por um processo
cultural, implica concessões e tem como perspectiva a introjeção pela sociedade
das ideias do partido revolucionário.
Não creio que o PT trabalhe com essas duas perspectivas de hegemonia. Na
verdade, pouquíssimos leram Lenin, não só pela distância no tempo, mas pela
aridez do seu estilo. O próprio Gramsci é muito mais conhecido por citações
esparsas.
Dentro da simplicidade que rege o pensamento do militante comum, a ideia de
hegemonia nasce da definição do papel da classe operária. Se, por força
teórica, essa classe deve ser hegemônica, nada mais razoável do que ser
hegemônico também o partido que a representa.
Essa coreografia fantasmagórica não teria palco em outros países onde não se
vê a classe operária com potencial hegemônico e se tem consciência das próprias
transformações que ela viveu, com o crescimento do trabalho intelectual. Para
ser mais simples: já no início do exílio, quando perguntávamos aos operários
suecos por seus correspondentes russos, eles suspiravam, não de admiração, mas
de pena por suas precárias condições de vida e, sobretudo, de liberdade.
Mas se o tema volta à cena no Brasil, é porque tem importância. As
constantes vitórias eleitorais do PT e a ocupação de cada milímetro da máquina
estatal fortalecem o medo. O avanço da esquerda latino-americana sobre a
imprensa e a Justiça nutrem a impressão de que estamos diante de uma nova onda
histórica.
Mas será que estamos mesmo diante de uma nova onda histórica ou é apenas
ilusão de ótica de quem tem uma visão parcial do mundo? A classe operária
brasileira, assim como a dos outros países, quer basicamente melhoria de vida.
E contempla com seu voto, como o fez com a social-democracia, os partidos que
trabalham para isso quando assumem o governo.
A sede de poder do PT deve produzir uma nova frente anti-hegemônica,
composta por aliados e adversários do partido, uns querendo derrotá-los, outros
apenas buscando uma relação mais favorável. Isso talvez ajude a pôr as coisas
num patamar mais realista. Em primeiro lugar, a classe operária não é idêntica
à fantasia militante. Em segundo lugar, numa sociedade complexa como a nossa, a
palavra cooperação tem um alcance maior do que hegemonia.
Será um trágico erro histórico tentar aplicar no Brasil critérios do século
passado, pensar em governá-lo com estruturas fechadas e hierárquicas num
momento em que a sociedade tende a se organizar em redes. Não só o desempenho
das redes se choca com a ideia de hegemonia. Os partidos políticos, num regime
democrático, devem denunciar as intenções do parceiro quando sua visão teórica
aponta para a hegemonia.
Não sabemos o nível de intimidade do PT com a obra de Gramsci. Ele falava de
uma hegemonia ética política. O PT jogou esse primeiro termo no lixo e adotou a
perspectiva dos fins justificando os meios. Também não há uma ampla divisão de
mundo em que o PT busque a hegemonia.
Teses como casamento gay e descriminalização de drogas, constantemente
apresentadas como cavalos de Troia do socialismo, na verdade não foram criadas
por ele. E no íntimo são repudiadas por muitos dos seus líderes. Em Havana, no
início dos anos 1970, um militante gay perguntou sobre o tema ao embaixador
norte-coreano e ele respondeu: "Homem com homem? Isso não existe".
Gramsci vivia num país católico e pensava em saídas para o comunismo que
acabaram, de certa forma, inspirando mais tarde a proposta de compromisso
histórico entre Partido Comunista e Democracia Cristã. As grandes lutas
ideológicas no exterior estão hoje mais concentradas em impor limites e mais
racionalidade ao capitalismo. Não têm muito que ver com Gramsci. E, creio, nada
têm com Lenin, que previa pura e simplesmente a ditadura do proletariado. Essa
os próprios chineses foram obrigados a desmontar no campo econômico, mantendo-a
no político.
Não quero dizer que as pretensões hegemônicas de um partido sejam tão
anti-históricas que não valha a pena combatê-las. Adversário ou aliado, o PT
está no poder pelo poder. Lenin e Gramsci não tinham problema de eleições de
dois em dois anos. Se o tivessem, entenderiam a força da máquina e da grana.
Lenin faria uma nova revolução se lhe apresentassem a conta de uma produção de
TV. Gramsci voltaria de bom grado para o cárcere se lhe dissessem que as ideias
agora se produzem no departamento de marketing.
As forcas que se opunham ao PT foram sendo enfraquecidas pelas constantes
derrotas eleitorais e, naturalmente, pelo crescente distanciamento da máquina e
da grana. Nunca foram realmente forças de oposição, mas atuavam como um governo
no exílio, à espera de voltar ao poder. Fazer oposição dá mais trabalho e traz
inúmeros riscos.
Ao contrário do que possa se imaginar, a ascensão do PT e a queda dos
adversários não significam o fim da história. As eleições municipais no Brasil,
sobretudo nas grandes cidades, mostraram que milhões de pessoas não se
identificam nem com o PT, desfigurado pela corrupção, nem com seus adversários.
A distância entre a política tradicional e os eleitores abre um caminho de reflexão.
Ela pode crescer até os limites da legitimidade. Ou pode ser superada por
forças que tenham uma resposta para esse desencanto.
Quem falará aos ausentes e aos que votaram sem entusiasmo? O que dizer a
eles?
Fonte: O Estado de S. Paulo
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