- O Globo
A convite de Suzana Vargas, estive no Salão do Livro de Guarulhos para falar sobre a obra do chileno Pablo Neruda. É um grande poeta, dos maiores da língua espanhola, mas muito injustiçado. Preconceitos de toda sorte cercam sua figura. Alguns o desprezam por ser um poeta extramente fértil, caudaloso, dono de uma escrita torrencial, que muitos consideram prolixa e até exagerada. A esse respeito, o escritor e crítico argentino Juan José Saer - que estou sempre a reler - lembrou, certa vez, que, enquanto alguns escritores lapidam secretamente suas obras até chegar ao osso das palavras (inevitável pensar aqui em um João Cabral), outros trabalham, ao contrário, sempre às claras, fazendo da obra o próprio rascunho. Na pintura, é o caso de Pablo Picasso. Na poesia,sem dúvida Pablo Neruda é um exemplo gritante.
Escreveu Saer: "Que a obra de Neruda é uma das maiores do século 20, e não apenas no nosso idioma, é uma afirmação que, deixadas para trás as circunstâncias históricas, não deveria nos surpreender". Artistas como ele, assim como Picasso, não se envergonham de entregar ao público, diz Saer, "todas as suas hesitações, sobressaltos e inquietações". São, em geral, artistas que trabalham com alta dose de emoção e de lirismo -, e aqui está a origem do segundo preconceito. Neruda é, sem dúvida, um grande poeta lírico. E o lirismo, desde a metade do século 20 _ quando surgiram as vanguardas e os experimentalismos -, é, em geral, visto com forte suspeita. Tido como fácil e até desprezível. Pelo menos dois grandes poetas brasileiros vivos sofrem com o mesmo descaso: Adélia Prado e Manoel de Barros.
Pablo Neruda sempre viu a poesia como canto - e não custa lembrar que, na Antiguidade, a lírica era uma composição poética para ser cantada, com o acompanhamento da lira, um instrumento de cordas dedilháveis que, muitos séculos depois, originou a rabeca, e outros séculos após, o violino. Um de seus livros mais importantes, o "Canto geral", basta para comprovar essa escolha. Trata-se de uma longa homenagem à história do continente - e aqui aparece o terceiro preconceito: o político. Neruda foi militante do Partido Comunista Chileno, chegou a ser deputado e a candidatar-se à presidência da República. A política estava em seu sangue - o que não significa dizer que escrevesse poemas panfletários, ou de propaganda. Ao contrário: recusava, enfaticamente, a poesia feita em nome do "realismo socialista". Não foi um poeta de escola - e, por isso mesmo, esse terceiro preconceito também é injustificável.
Faleceu num em 23 de setembro de 1977 - ontem, portanto, se completaram 41 anos de sua morte. A respeito de Pablo Neruda, escreveu Antonio Skarmeta: "Não só foi Neruda um homem que produziu metáforas, graças às quais a América Latina conheceu melhor a si mesma. Mas a sua própria vida foi uma metáfora". Skarmeta, como se sabe, é o autor de "O carteiro e o poeta", livro inspirado na breve temporada em que Neruda viveu na Itália, no início dos anos 1950, e que depois mereceu uma celebrada adaptação para o cinema. Apesar de sua incondicional adesão à história do continente, Neruda considerava a si mesmo, antes de tudo, um poeta "das pequenas coisas". Três livros fabulosos escritos entre 1951 e 57 - "Odes elementares", "Novas odes elementares" e "Terceiro livro das odes" - bastam como prova.
Poeta engajado, não se considerava, porém, um romântico. Foi, talvez, um místico da matéria _ um poeta capaz de extrair da realidade o assombro da poesia. Foi, ainda, um poeta de invenção, e isso já aparece em seu nome. Chamava-se, na verdade, Neftali Ricardo Reyes mas, aos 16 anos de idade, ao publicar seu primeiro livro, adotou o nome de Pablo Neruda _ que só registrou em cartório, porém, na década de 1940. Inspirou-se, provavelmente, no poeta checo Jan Neruda (1834-1891), filho do funcionário de uma tabacaria. O pai de Neruda trabalhou como ferroviário do sul chileno. Não se sabe de onde se originou o nome Pablo. Foi, de todo modo, um homem que veio do chão. A respeito disso, escreveu ainda Saer: "O mais provável é que seus detratores, julgando sem matizes as posições políticas do poeta, se tenham negado a refletirseriamente sobre sua poesia". No Brasil, infelizmente, a publicação da obra de Neruda é dispersa e inconstante. No Chile, sua "Poesia completa" está publicada em uma bela edição de cinco volumes.
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