quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Nelson Rojas de Carvalho - Dilma: direita, vou ver

• Déficit político é um dos principais obstáculos do governo

- Valor Econômico

Equivocaram-se aqueles que criticaram de forma raivosa a composição da nova equipe econômica da presidente Dilma Rousseff e as duras medidas de contenção de gastos e de aumento de receita recém-editadas pelo ministro Joaquim Levy, crente devoto da cartilha de Chicago. Equivocaram-se pelo tom raso e moralista das críticas: a presidenta teria mentido sobre a situação do país, traído seus compromissos de campanha e seria portadora de mandato destituído de legitimidade - bravejaram em uníssono tanto os derrotados à direita como os deslocados à esquerda. Ora, muito bem sabem políticos da estirpe do ex-ministro Rubens Ricupero e do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que a política pode - e muitas vezes deve - conviver com a mentira e com a traição. Em momento inspirado de pragmatismo, Ulysses Guimarães assim descreveu a natureza da sua atividade: "A política se assemelha ao manejo do violino: ganha-se a eleição com a esquerda e toca-se o governo com a direita." Se parecem impróprios e, sobretudo, rasos os questionamentos à legitimidade do mandato de Dilma -, cabe a indagação, muito mais relevante, sobre as possibilidades de êxito, na atual conjuntura, da guinada à direita do governo.

Se a presidenta e sua equipe fiarem-se na história e em um conjunto razoável de experiências internacionais, haverá razões de sobra para otimismo em relação ao desfecho do enredo agora iniciado e abençoado em Davos: não foram poucos os partidos e lideranças que, nas últimas décadas, anunciaram projetos de governo progressistas - ousados em seu arsenal regulatório e em suas finalidades redistributivas -, mas que no percurso acabaram por se guiar pela bússola da ortodoxia econômica. 

Vale aqui trazer à memória o primeiro mandato do presidente Bill Clinton: eleito em 1992, em sintonia com o "leitmotiv" tradicional dos democratas - "tax and spend" -, e orientado por ambiciosa agenda de reestruturação do sistema de saúde, Clinton sofreu dura derrota em 1994 e reciclou sua agenda na direção de corte de gastos e do orçamento equilibrado. Em balanço da reorientação do governo Clinton, o então presidente do FED, Alan Greenspan comentou: "Foi o melhor presidente republicano que já tivemos".

Exemplo ainda mais contundente de deslocamento de um governo para as águas da direita teve por palco nosso vizinho de Mercosul, a Argentina. Poucos hoje se recordam que, no ano de 1989, o então desconhecido governador da província de La Rioja, Carlos Saúl Menem derrotou a versão renovada do peronismo, encarnada no governador da província de Buenos Aires, Antonio Francisco Cafiero, com recurso a uma retórica de campanha ultraperonista, por meio de promessas de políticas redistributivas e da implantação de um modelo econômico produtivista. 

A guinada à direita no caso argentino foi imediata: a pasta da Economia esteve desde a primeira hora nas mãos da corporação Bunge & Born e mais à diante, se viu delegada a Domingos Cavallo, mago da convertibilidade e das políticas de liberalização adotadas no país. François Mitterrand em 1984, Felipe González em 1982, Tony Blair em 1997, François Hollande em 2012 são tantos outros exemplos de lideranças socialistas que, em menor ou maior grau, redirecionaram a bússola dos seus respectivos governos numa direção centrista. 

Ora, a conversão de Dilma à ortodoxia econômica se ampara assim em forte jurisprudência extraída das regras próprias da vida política. A se fiar somente pela história, a presidenta e sua equipe podem não só ter a certeza da legitimidade da nova agenda, mas também a esperança sobre seu sucesso; a despeito dos efeitos sociais e econômicos do receituário ortodoxo - como o desemprego e a desindustrialização -, não foram poucos os líderes que acabaram por extrair dividendos políticos dos caminhos sugeridos por Chicago.

Se a história pode confortar a Dilma e sua equipe, a conjuntura política e o cenário externo não poderiam ser mais hostis à reorientação em curso. Sem qualquer dúvida hoje um dos principais obstáculos ao equacionamento do déficit nas contas do governo consiste em sua situação de déficit político. Vejamos: 1) embora os partidos que apoiam o governo tenham sido agraciados com pastas ministeriais, a fragilidade da base de sustentação de Dilma Rousseff nunca foi tão acentuada. Principal partido da base, o PMDB está em vias de alçar ao comando da Câmara uma liderança dissidente, que anuncia desde já, que presidirá a Casa de maneira autônoma, ou seja, pressionará por gastos. Interpretam assim a vida e o Orçamento não só o PMDB, mas partidos como o PP, PRB ou PSD, os quais vivem e sobrevivem pela canalização contínua de recursos para os seus respectivos grotões; 2) nas hostes petistas, a insatisfação manifesta com a montagem da equipe e com a repercussão das medidas de ajuste transformou a certeza do apoio à presidenta em interrogação. Não são poucos os que já se afastam do governo, engajados no retorno de Lula em 2018; 3) diferentemente da conduta dos republicanos na era Clinton, é de esperar do PSDB e do DEM, por razões eleitorais, franca oposição às medidas de ajuste; 4) verifica-se por fim, um déficit inconteste de liderança para se negociarem as medidas de Levy. Além das conhecidas limitações da presidenta no trato da política, desde o mensalão não restou ao governo senão a opção de recrutar seus líderes na segunda divisão das hostes petistas.

Em meio a um cenário econômico de recessão, com a retração dos preços das commodities no mercado internacional, não é de se descartar que a guinada à direita do governo se traduza num cenário futuro de crise política. A classe média que foi às ruas em 2013, já afetada pela inflação, se verá diretamente atingida pela retração da atividade econômica e pelas medidas ortodoxas; silenciados e cooptados por anos de bonança fiscal, os movimentos sociais organizados podem finalmente sair às ruas. Se é verdade que presidente ainda goza do trunfo da caneta, todos sabem que, em segundo mandato sem reeleição, a caneta presidencial é dada a falhar.
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Nelson Rojas de Carvalho é professor da UFRRJ, pesquisador do Observatório das Metrópoles/Ippur/UFRJ

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