• A ideia de uma poderosa união é o único consolo quando o país se vê ameaçado de retrocesso
- O Globo
Trinta anos esta Noite é um filme de Louis Malle que conta a história de um homem que, ao completar essa idade, em crise existencial, revê amigos, atmosferas familiares, e opta pelo suicídio.
O filme é baseado no livro “Fogo Fátuo", de Drieu de La Rochelle, e fez muito sucesso nos anos 60, sobretudo nas plateias do lendário Cine Paissandu.
O processo democrático faz 30 anos e está envolto na sua mais profunda crise existencial. Um dos seus ilustres protagonistas, Fernando Henrique Cardoso, admitiu, na semana passada, que não via saída para o impasse que vivemos hoje.
A crise existencial dos 30 anos precisa ser vivida com intensidade. Mas o suicídio tem de ser evitado porque está em jogo mais do que uma vida humana, mas o destino de todo o país.
A crise é econômica, produzida por uma sequência de erros do governo.
No entanto, crises após rápidos períodos de crescimento não são novidade no Brasil. O que entristece, além de suas consequências materiais, é constatar que, em termos econômicos, não conseguimos superar o chamado voo da galinha.
A crise é política porque um governo com apenas três meses de poder parece ter envelhecido três séculos. O período que corresponde à chamada lua de mel dos governos, os primeiros 100 dias, transcorre na frustração dos eleitores enganados pelas promessas de campanha.
A crise é ética porque as velhas estruturas políticas brasileiras foram questionadas com a vitória do PT em 2002. As forças que se elegeram com a proposta de reformar os costumes políticos no Brasil não só caíram nos mesmos métodos de corrupção, como os ampliaram e os sofisticaram.
Disciplinados e cínicos, os remanescentes de uma esquerda combativa tornaram-se um destaque mundial na busca da roubalheira perfeita. Seus tentáculos, como não poderia deixar de ser, estenderam-se ao Congresso e ao Supremo Tribunal Federal. O sonho de consumo é dominar também a imprensa.
Dito isso, passo a falsa impressão de que achar a saída é simplesmente derrubar o núcleo dominante. Por baixo dela, entretanto, há fórmulas apodrecidas que perpassam todo o período democrático. Uma delas é o presidencialismo de coalizão que, na prática, dinamiza o fisiologismo do toma lá dá cá.
A frustrada expectativa de mudanças chegou a produzir reações como o apelo pela volta dos militares. Não existe esta possibilidade na vida real. Clamar pela volta dos militares é o mesmo que chorar numa cela da PE e esperar que a mãe nos ouça.
O suicídio da jovem democracia brasileira insinua-se também nos projetos bolivarianos de conquista das instituições e da passagem para o socialismo de escassez, como acontece na Venezuela.
O personagem de Malle e La Rochelle buscava um sentido no reencontro com os amigos e com a própria atmosfera do passado.
Isso é decepcionante na crise existencial democrática. No verso de Cazuza, os amigos morreram de overdose e os inimigos estão no poder.
Nesse período, felizmente, muitos poucos morreram. A overdose é de corrupção e de miopia intelectual. Os amigos dizem que é melhor ter uma esquerda corrupta no poder do que uma direita reacionária que, por sua vez, também se corrompe.
É um conformismo que só faz aumentar o desencanto. Estaremos sempre escolhendo entre direita e esquerda, mas não há escolha que nos livre dos ladrões.
Tudo isso converge agora para esse quadro tenebroso. A galinha pousou e cacareja desesperada. A economia está em frangalhos. Na política, os renovadores são vaiados e estigmatizados como os maiores assaltantes da história, a julgar pelo seu feito na Petrobras.
Depois de afastar as ameaças de suicídio, golpe militar de direita ou fuga para o bolivarianismo venezuelano, ainda há um longo caminho a cumprir.
Na economia, é sempre possível recuperar o rumo correto, fazendo cortes de gastos supérfluos e fortalecendo os investimentos. Há uma grande disputa em torno do que é supérfluo. Mas isso faz parte do jogo da austeridade, em todos os países do mundo.
Na política, fala-se de uma reforma conduzida exatamente pelas forças que apodreceram. Uma reforma adequada só é possível quando forem derrotados e a crise os forçar a uma abertura para a sociedade.
Muitos nos ameaçam com o exemplo italiano: olhem o que deu a Operação Mãos Limpas, foi depois dela é que Berlusconi se impôs.
Essas pessoas, na verdade, estão lamentando a Operação Lava Jato como lamentam a Mãos Limpas na Itália. Berlusconi hoje está as voltas com a Justiça, e a Itália, dentro de seus limites, avançou. Quantos italianos hoje diriam que estão arrependidos com a Operação Mãos Limpas?
Toda essa conversa é uma tentativa desesperada de manter o status quo, de realizar o que o bloco no poder almeja: o assalto perfeito. Nele, é temerário investigar políticos corruptos. É preciso manter o fluxo: dinheiro sujo, marqueteiros, mitos e reeleições.
Tenho feito oposição ao longo desses trinta anos. A diferença entre denunciar a roubalheira no passado e no presente é bastante nítida.
Quando você protesta agora com um viés de esquerda, o argumento é de que mudou de lado e faz o jogo do adversário. Lembram-se da época em que qualquer dúvida fazia o jogo da CIA e do imperialismo?
A diferença entre os corruptos do passado e os corruptos de hoje é que os do passado não nos condenavam.
Os de hoje, dizem que somos da elite branca e não estamos conformados com a presença dos pobres nos aeroportos.
Esta é a marca distintiva da esquerda no poder. Ela não suporta a própria decadência. O inferno são os outros, a elite branca de olhos azuis, alta renda, bairros nobres, os coxinhas, as dondocas, todos que se recusam a ver nela o triunfal agente da transformação histórica.
Apesar dos perigos de suicídio, pelo viés golpista ou pelo bolivarianismo, a democracia brasileira vai avançar.
A diferença com o drama individual do filme de Malle é que a crise do personagem durou apenas 48 horas.
A crise da jovem democracia brasileira é bem mais longa. Nesse aniversário de 30 anos, apesar das conquistas, é nela que todos estão pensando quando assopram as velinhas.
Quando fizemos o movimento pelas Diretas Já, estávamos apenas ampliando o conceito de democracia.
A capacidade de união foi invejável. Lembro-me, em Caruaru, de um comício onde estavam Lula, Brizola, Covas, Collor. Era uma frente bastante ampla.
Nunca mais teremos os mesmos personagens, mesmo porque Lula e Collor estão do outro lado. Mas a ideia de uma poderosa união é o único consolo quando o Brasil está em perigo de retrocesso.
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