• Tancredo foi maior do que apareceu à época e, mesmo 30 anos depois, ainda não é visto na sua grandeza
- O Globo
Hoje completam-se 30 anos da manhã em que o último general da ditadura deixou o Palácio do Planalto pela porta lateral e o Brasil retornou ao regime democrático. Foi um dos melhores momentos da história nacional. O país estava arruinado, o governo não tinha rumo, a divisão entre a rua e o "sistema" (nome dado ao aparelho de segurança do regime) parecia irremediável. A campanha pelas eleições diretas para presidente, a maior mobilização popular de todos os tempos, atolara no Congresso. Durante o governo do general João Figueiredo, tudo o que podia ter dado errado, errado dera. As coisas iam tão mal que, um ano antes, Paulo Maluf parecera um candidato imbatível na disputa pela Presidência da República. E deu tudo certo. Tancredo Neves foi eleito.
Aquele homem suave costurara a maior conciliação política da história brasileira. A conciliação de Tancredo foi a única que partiu da oposição. Isso diferenciou-a de episódios anteriores. D. Pedro 1º proclamara a Independência, mas era o herdeiro da coroa portuguesa. O marquês de Paraná pacificara o Império, mas estava na chefia do governo. Os generais derrubaram Getúlio Vargas em 1945, mas haviam ajudado a fazer o Estado Novo. Tancredo jamais aproximou-se da ditadura. Como o meia direita Didi, jogou parado ("quem tem que correr é a bola"), e o arco de interesses que chegou ao poder em 1964 teve que se aproximar dele.
Tancredo conseguiu isso porque seu jeito modesto escondia uma rara cultura, conhecimento histórico e extensa experiência administrativa. Ninguém prestou atenção quando ele se despediu do Senado, em 1982, louvando o marquês de Paraná. Ele fora primeiro-ministro, diretor do Banco do Brasil, numa função que hoje é desempenhada pelo Banco Central, ocupara a Secretaria de Finanças de Minas Gerais e governara o Estado por pouco mais de um ano. Num tempo de sôfregos como Lula, Maluf, Figueiredo e Leonel Brizola, deixou a bola correr.
Como as colunas quebradas das ruínas romanas, Tancredo tornou-se uma peça incompleta, até enigmática, pois não tomou posse e só chegou ao Planalto morto. Como é impossível saber-se o que seria o governo de quem não o exerceu, a restauração democrática confundiu-se com a anarquia econômica e administrativa deixada pelos generais. Não era pouca coisa: a maior dívida externa do mundo, inflação de 226.7% ao ano e uma queda 19,1% na renda per capita dos brasileiros.
Passaram-se 30 anos e o êxito dessa grande figura --a restauração democrática-- é ofuscada pelo desapreço que os radicalismos dedicam à maneira como se chegou a ela --a conciliação.
A transação do PT
Em 1984, às vésperas da votação que derrubou a emenda constitucional que restabelecia a eleição direta para a Presidência, o nome de Tancredo surgiu como uma alternativa para um governo de transição.
Lula, grão-senhor do PT, fulminou a ideia: "A proposta de Tancredo Neves não é de governo de transição coisa nenhuma. É uma proposta de transação".
Ele atirou no que viu e acertou no que não viu. A brincadeira com as duas palavras estava no título de um grande livrinho publicado pela primeira vez em 1855 e reeditado em 1956. Chamava-se "Ação, Reação, Transação", do jornalista Justiniano José da Rocha. É quase certo que Tancredo o lera. À ação democrática dos primeiros anos da independência correspondera uma reação absolutista, aplacada pela necessária transação da política de conciliação do marquês de Paraná. Tancredo era, queria ser e foi o homem da transação que levou à restauração democrática.
A memória petista tem o desconforto de lembrar que o partido ameaçou expulsar os três deputados que votaram em Tancredo: Bete Mendes, Airton Soares e José Eudes. Para não serem expulsos, desfiliaram-se.
Em 2005, passados 20 anos, o PT informou que aceitava reincorporá-los.
Delúbio Soares, o tesoureiro do PT à época do mensalão, teve sorte melhor. Ele foi expulso do partido em 2006 e readmitido pelo Diretório Nacional em 2011. Um ano depois Delúbio foi condenado a oito anos e 11 meses de prisão pelo Supremo Tribunal Federal. Desde o ano passado ele está em regime semiaberto e trabalha na CUT.
'O resto'
Como os políticos mineiros da época, Tancredo foi acompanhado por um conjunto de tiradas folclóricas. Em muitos casos, os personagens tinham folclore e mais nada. No de Tancredo havia uma mistura de elegância e doçura. Um exemplo:
O deputado Marcelo Cerqueira presidia uma comissão mista do Congresso na qual articulava-se o abrandamento de um projeto da ditadura. Tancredo apoiou a apresentação de um substitutivo e Cerqueira propôs que o caso fosse a voto: "Nós votamos com o nosso substitutivo e o resto vota como quiser".
Tancredo corrigiu-o:
"Não devemos dizer 'o resto'. Digamos 'os demais'".
Desde então Marcelo Cerqueira diz "os demais".
Fala Tancredo
Uma das melhores peças da oratória política de Tancredo é um discurso que não fez, o da cerimônia de sua posse. Alguns trechos:
"Esta solenidade não é a do júbilo de uma facção que tenha submetido a outra, mas festa de conciliação nacional".
"Nosso progresso político deveu-se mais à força reinvidicadora dos homens do povo do que à consciência das elites."
"Desprovido de fortuna, o trabalhador só pode sentir como seu o patrimônio comum da nação [...]. Nada tendo de seu, ou tendo muito pouco, está poupado do egoísmo dos que possuem e disposto a defender a esperança, que para ele está no crescimento do Brasil."
"A pátria dos pobres está sempre no futuro e, por isso, em seu instinto, eles se colocam à frente da história".
"A história nos tem mostrado que, invariavelmente, o exacerbado egoísmo das classes dirigentes as tem conduzido ao suicídio total."
Tancredo e Ulyssess, a rivalidade benigna
Tancredo Neves jamais chegaria à Presidência da República sem a ajuda de Ulysses Guimarães, o campeão da batalha pelas eleições diretas. Eram rivais. Assim como a conciliação de 1985 é um grande momento, a rivalidade desses dois homens tem uma linda história. Rivalidades fazem parte da vida. Na política, predominam as malignas: a de Lula com Fernando Henrique Cardoso, a de Carlos Lacerda com quem quer que fosse, ou a de Leonel Brizola com seu cunhado, João Goulart. O deputado Thales Ramalho, um dos sábios de sua geração, dizia que Tancredo e Ulysses dançavam conforme uma coreografia que só eles conheciam.
No ocaso da ditadura os dois estavam juntos. Se a campanha pelas eleições diretas fosse vitoriosa (coisa em que Tancredo não acreditava), o candidato a presidente seria Ulysses Guimarães. No Colégio Eleitoral, Tancredo poderia derrotar Maluf. Pela lógica antropofágica, um poderia sabotar o outro. Deu-se o contrário, ambos apoiaram os movimentos do outro. Com uma coreografia especial, nenhum dos dois tentou crescer reduzindo o tamanho do outro.
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